Terá a minha voz o mesmo poder que a tua?
Ao olharmos e lermos tudo o que está a ocorrer, a primeira coisa que devemos perguntar, tanto homens como mulheres, é se as celebridades de Hollywood, no fim de contas, representam uma realidade social mais vasta. Isto é, se as alegadas vítimas representam outras vítimas, de todos os contextos sociais, como também se os alegados agressores representam outros homens. Será que uma mulher que sofre violência doméstica se sente representada por este movimento e pelos casos que o ilustram? E esta questão é crucial, porque é à volta dela que se criam extremismos e conflitualidades.
Em Portugal, um dos crimes com maior ocorrência e com maior reincidência, é o da violência doméstica. Um outro caso é o assédio moral ou sexual que ocorre principalmente no sector privado, onde a vítima tem, habitualmente, muita dificuldade em se defender em termos legais. No século XXI, ainda existe uma cultura de domínio, a um nível dramático, visível não só no local de trabalho. A vítima não tem formas de se proteger muito menos de provar o que lhe aconteceu. A vítima é chantageada e, como não tem recursos legais e financeiros para se proteger, aceita entrar num ciclo degradante a título individual, traumatizante e vicioso. Existe, assim, um fosso colossal entre o mundo que está agora em foco e o resto, o mundo do comum dos mortais.
A forma como estas denúncias se propagaram também é assustadora. Parece que já não vivemos num estado de direito e os tribunais não têm qualquer função na nossa sociedade. Não é preciso ir a tribunal desde que tenhamos acesso fácil aos media ou às redes sociais. Já não vale a pena utilizar a palavra “alegada” e tanto a vítima como o agressor em causa não têm o mesmo direito de se defender. Cada um à sua maneira lança a desconfiança e, o mais preocupante, é que não há forma possível do alegado agressor ou criminoso se defender. Por duas razões simples: é impossível defendermo-nos de uma enchente de notícias e críticas que, em geral, não têm quaisquer provas fundamentadas e a sua defesa é sempre relacionada directamente com o seu estatuto pré-estabelecido de culpado: o culpado nunca vai responsabilizar-se pelos seus crimes, tentará sempre escapar incólume. Os próprios media não respeitam quaisquer regras deontológicas pelas quais, supostamente, têm que basear as suas publicações. Não são imparciais e ajudam a criar confusão na informação, porque tanto publicam inúmeros artigos por dia ou mesmo por hora que são uma verdadeira avalanche informativa para o cidadão comum, como também estão a dar um poder enorme às redes sociais, ou seja, são as publicações nessas mesmas redes sociais (principalmente tweets) que depois são republicadas nos jornais como verdadeiras provas judiciais. Substituem a sua obrigação em investigar os casos para desvendarem os factos, como em outros casos estariam obrigados. Caem no facilitismo. De outra perspectiva, é através das mesmas redes sociais, onde vemos Donald Trump a criar fake news, que nós vamos retirar a veracidade dos factos. Esta dinâmica imparável de informação tem como consequência retirar qualquer valor à vítima e à sua experiência pessoal, porque ela é só um número. Mas, na realidade, é uma experiência pessoal que, independente, da gravidade moral, física ou psicológica, é traumatizante e cada uma lida com ela à sua maneira. Os media não podem olhar somente para as vítimas como números para acrescentar a outros tantos de forma a criar uma consistência à temática, porque isso tem um problema, o do esquecimento: os esquecimentos dos casos a título individual e o respectivos nomes das vítimas. Por maior que seja o número de vítimas, elas têm o direito de ser recordadas e não serem um simples objecto em que os media se focam durante umas horas ou dias.
Cabe também a cada um de nós ter uma responsabilidade moral e ética, independentemente do nosso estrato social. Temos o dever de debater sobre o assunto. O silêncio é uma posição de direito, mas criticável. O problema é como distinguir o dever moral do legal. Qual é o dever de outros actores e actrizes de falarem sobre o assunto e apoiarem a causa ou pelo menos as vítimas? Mas não nos enganemos. Tanto homens como mulheres têm o dever moral de falar sobre o assunto, mesmo que hoje em dia esse dever tenha perdido algum valor. Tanto é hipócrita o homem que fica calado como a mulher. Mas nunca devemos concluir, de forma precipitada, que esse silêncio tem como significado uma escolha de lado. Devemos ser muito cuidadosos para não cairmos em extremismos. Uma acção moralmente reprovável não é necessariamente ilegal. Um outro aspecto que incide na obrigação moral e ética, é o de reportar os casos. Em tantos anos e num meio tão pequeno, apesar de tudo, como é que foi possível estas acções terem passado por debaixo das nossas barbas? É verdadeiramente horripilante pensar que o poder estava tão centralizado em redor de um número muito reduzido de pessoas ao ponto de nunca terem sido revelados estes casos, pelo menos com esta intensidade e números. É um dos aspectos a debater e que todas as pessoas do meio em questão deveriam reflectir, porque elas próprias, num certo sentido, ajudaram a criar este ambiente altamente poluído por ideais possessivos, sexistas e retrógrados. Tanto homens como mulheres foram parceiros de supostos criminosos e isso devia pesar-lhes nas consciência. Não é possível aceitarmos que os nossos maiores ídolos eram amigos próximos de Harvey, por exemplo. Da mesma forma que para o cidadão comum o deveria ser, porque olha para aquele mundo como se fosse a verdadeira utopia do Homem moderno, onde as pessoas mais incríveis do mundo se reúnem para nos divertirem e para nos darem experiências satisfatórias.
A meu ver, um dos problemas futuros e que já se está a notar no movimento #MeToo é que ele não tem uma liderança. É uma onda de casos atrás de casos, onde não existe uma direcção e um objectivo realmente concreto. Ainda não é visível que se esteja a propagar noutros estratos sociais. E isso era possível através da comunicação com sindicatos, governos, grupos parlamentares, outros países ou organizações, como também outras vítimas que não fazem parte do mundo do cinema ou das artes. Não existe uma tentativa clara em tornar este movimento num verdadeiro empowerment a todas vítimas, homens ou mulheres, pobres ou ricas, do sector privado ou público do trabalho ou que sofreram maus tratos nas suas próprias casas. Está demasiado dependente dos agressores e de frases slogan. Da mesma forma que a luta pelos direitos dos negros não pode ser feita somente por negros, mas sim por toda a sociedade, de forma a não serem criadas leis ou ideias só para eles, que, na realidade, só os iriam prejudicar e segrega-los ainda mais. Esta luta tem de dizer respeito a toda a sociedade, para todas as vítimas se sentirem representadas e apoiadas; isto para que todos os agressores possam ser julgados, socialmente e legalmente. Não é necessária uma caça às bruxas ou uma purga, mas sim uma revolução cultural e ideológica. Sem nunca perder o rumo para que quase ninguém fique de fora e a luta não se torne hipócrita. Lutar pelas vítimas, não lutar pelas polémicas.
E em resposta ao movimento #MeToo, um grupo de cem personalidades francesas escreveu uma carta aberta ao jornal francês Le Monde. A carta tem argumentos interessantes e, em alguns casos, tendo a concordar com eles, mas os exemplos tendem a cair num extremismo fácil. Tendo a concordar que a evocação de acontecimentos passados é, pelo menos, estranha e muitas vezes com um timing incorrecto ou duvidoso, mas distancio-me completamente do argumento de que “o desejo sexual é por natureza selvagem e agressivo” e que as mulheres sabem disso e, nessa medida, têm que se acomodar. Os exemplos enumerados não corroboram com o argumento anterior, porque por mais que o amor ou o desejo sexual seja agressivo ou apaixonado, a vítima não tem que aceitar uma agressividade física ou psicológica. Isso seria roçar numa espécie de “ideologia possessiva” de que se um indivíduo nascer num estatuo social considerado inferior tem de aceitar a sua posição como algo natural e imutável. Lutar contra isso é hipócrita e contranatura. É um argumento em si machista e que é utilizado para justificar o fosso entre pobres e ricos ou entre brancos e outras, ditas, raças. Isso está muito longe do puritanismo que, em certos casos, está a ser criado. Isto não se trata de um simples toque ou uma dick pick. Esses casos devem ser tratados como tais, há quem misture tudo, mas estas mesmas personalidades já não o podem fazer.
Assim, uma das formas de combater este problema, que está enraizado em sociedades desenvolvidas como a nossa, é através de uma consciencialização da necessidade de uma grande mudança da legislação e de uma mudança na educação tanto em casa como na escola. É um movimento cívico, que deve estar na esfera pública, política e judicial. Da mesma forma que para mudar os hábitos quase inexistentes de separação do lixo e de reciclagem os governos tiveram de investir enormemente nestes aspectos e agora já é possível existirem gerações que aceitam de forma natural este processo. Este é um trabalho de equipa que não pode ficar por um grupo de mulheres de um estrato social. Este não é o problema do século XXI, mas certamente uma das grandes lutas do tempo presente.
Crónica de João Francisco Pinho