Em busca do(s) tempo(s) de Marcel Proust

por Lucas Brandão,    16 Agosto, 2021
Em busca do(s) tempo(s) de Marcel Proust
Marcel Proust / Fotografia de Otto Wegener
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Marcel Proust surge como uma das referências máximas da literatura francesa na viragem do século XIX para o XX, numa altura em que os fluxos de consciência e as divagações pelo psicológico humano começavam a dominar. No entanto, a sua carreira é, somente, marcada por uma grandiosa obra: “Em Busca do Tempo Perdido”, ela própria, todavia, segmentada em sete volumes. São sete dos mais prestigiados e influentes livros alguma vez escritos, transportando uma poderosa influência sobre como escrever sobre o ser humano, dentro e fora de si, para as futuras gerações. Contudo, é, desde logo, um desafio, encontrar aquele que tenha lido os sete momentos, munidos de tamanha riqueza e densidade que, por si só, colhem tamanhos méritos.

Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust nasceu em Passy-Auteil, nos arredores de Paris, a 10 de julho de 1871 e morreria nesta cidade, capital francesa, em 18 de novembro de 1922, aos 51 anos. Proust nasceu num contexto sociopolítico turbulento, que trouxe a transição da monarquia para a Terceira República, no pós-Guerra Franco-Prussiana. São estas turbulências que desenham muito daquilo que é a sua magnum opus vezes sete, perante a queda da aristocracia da sociedade francesa e a emergência das classes trabalhadores e proletárias, envolvendo, pelo meio, uma burguesia à procura de se encontrar nesta afirmação das classes médias. “Em Busca do Tempo Perdido”, dividido na sua publicação entre 1913 e 1927, por entre as suas estimadas 3200 páginas, percorre as vivências e as memórias produzidas por estas do narrador, que permanece sem se identificar. Elas assumem lugar na alta sociedade francesa, nessa exigente transição entre séculos, o XIX e o XX.

Proust extrai muito daquilo que traz para esta obra da sua própria vivência, dado que cresceu numa família com possibilidades sociais e económicas. O seu pai, Adrien, fora um epidemiologista de renome, que desenvolveu trabalho científico sobre a cólera. A sua mãe, Jeanne, foi determinante pelo interesse prematuro do jovem Marcel na literatura, dado que era letrada e muito hábil com o inglês. Foi ela que o inspirou a ir arriscando em revistas de pequena dimensão, de cariz escolar. De valores católicos, inicialmente, este viria a desenvolver a sua fé numa rota oposta, mais de encontro ao próprio ateísmo. Não obstante, era contra um laicismo radical, que pudesse tornar a sociedade ainda mais intolerante e fanática, em muito conduzida pelo socialismo. Defendia, antes, uma República liberal avançada e pluralista, com respeito pelo legado da Igreja Católica em França.

A sua saúde começou, desde cedo, a dar-lhe preocupações, dado que começou a padecer de asma na sua infância. Na sua formação, em muito beliscada pelos problemas de saúde, foi-se destacando no capítulo da literatura e foi criando algumas relações de amizade com jovens burgueses que se encontravam ligados aos tais salons literários e culturais. Conhece-los-ia, assim, de perto e de frente para poder escrever sobre eles e reimaginá-los na imortalidade do seu imaginário. Estes conhecimentos permitiram-lhe, também, encontrar um lugar no qual escrever e no qual desenvolver a sua criatividade, resultando, daí, “Os Prazeres e os Dias” (1896), a sua verdadeira estreia na literatura. Trata-se quase, na forma de poemas em prosa filosófica, de uma antevisão daquilo que seria o monumento de “Em Busca do Tempo Perdido”, dado que também se debruça nos temas passionais, sociais, íntimos e intelectuais dos membros desses salons, sem nunca deixar de descurar, quando necessário de uma sátira tão rasgada e premente.

“Assim, os que produzem obras geniais não são aqueles que vivem no meio mais delicado, que têm a conversação mais brilhante, a cultura mais extensa, mas os que tiveram o poder, deixando subitamente de viver para si mesmos, de tornar a sua personalidade igual a um espelho, de tal modo que a sua vida aí se reflecte, por mais medíocre que aliás pudesse ser mundanamente e até, em certo sentido, intelectualmente falando, pois o génio consiste no poder reflector e não na qualidade intrínseca do espaço reflectido.”

“À Sombra das Raparigas em Flor” (1919)

Também nesse ano, começou a redigir um romance que não chegaria a acabar, mas que seria, na mesma, lançado em 1952. “Jean Santeuil” também acompanha a vida de um jovem que se vai deixando levar pela força das suas paixões literárias e poéticas até à adultidade, na qual vive entusiasmantes aventuras um pouco por toda a França, sempre com Paris como epicentro dessa inquebrantável relação entre a escrita e a sociedade. No entanto, seriam outras leituras, nomeadamente de autores anteriores a si, que lhe permitiriam amadurecer a sua ideia de literatura como arte, como resultado de uma análise aprofundada da natureza da realidade e da sua comunicação por intermédio da narrativa. Para si, fundamental seria John Ruskin, o autor inglês que traduziu para o francês e que foi quase o seu guru neste captar e abraçar a natureza e, dela, extrair a sua essência. De igual modo, influentes seriam os seus compatriotas Michel de Montaigne, Stendhal e Gustave Flaubert, mas também, por exemplo Dostoieski, Tolstoi e Ralph Waldo Emerson.

Proust serviria no exército francês por um breve período, que, não obstante, não o tornou mais disciplinado. Pelo contrário, deu azo a uma vida boémia e de excessos, vida essa que seria um obstáculo para a sua publicação inicial de “Do Lado de Swann”, dado que não trabalhava. Dentro desses salons, o mais assíduo era o de Madame Straus, que seria inspiração para duas das suas personagens da sua obra imortal: Orlane, a duquesa de Guermantes, uma referência na alta sociedade parisiense; mas também Odette de Crécy, a famosa Madame Swann. Desta feita, como se pode evidenciar, todos os contactos e todas as vivências de Proust seriam hiperligações para a construção da sua majestosa literatura, como a ligação entre algumas das musas desses salons e Sidonie Verdurin (Madame Verdurin), outra desses vultos femininos fictícios que coordenava os salons da obra.

Era a sua mãe que lhe ia dando apoio nas suas investidas literárias, dado que o seu pai se preocupava mais com que o filho conseguisse um emprego estável, que lhe permitisse segurança e sustento. Essa sua mãe morreria ainda antes de Proust lançar qualquer uma das partes da sua obra, falecendo em 1905. O seu pai partira dois anos antes, no ano em que o seu irmão, Robert, se tinha casado. Apesar da herança avultada com que havia ficado, Marcel deparar-se-ia com uma saúde cada vez mais débil, padecendo, para além das habituais dificuldades respiratórias, de um hábito profundamente nocivo: confinara-se em casa nos seus últimos anos, com um regime de vida notívago, no qual dormia de dia e escrevia à noite. Em 1922, uma pneumonia ser-lhe-ia fatal.

Porém, foi nestes anos tão conturbados que, numa entrega compulsiva à escrita, desde imitações de outros autores, até ensaios, cuja coleção “Contra Sainte-Beuve” (1954) faz uma profunda refutação da crítica literária do seu compatriota Charles Augustin Sainte-Beuve, negando a sua ideia de que a biografia do autor é nuclear para o entendimento da sua obra. Esta redação motivaria múltiplas ideias para novos ensaios por parte de Proust, sobre diversos temas. Porém, para quê redigi-los quando os poderia condensar numa obra monumental. Assim, e pegando num narrador numa insónia profunda, em busca de um tempo em que a sua mãe o ia despertar pela manhã e na ânsia que o preenche, e, ele próprio, com ambições como escritor, foi colhendo e preparando aquela que seria a tão célebre procura.

Muita da escrita desta obra foi retrabalhada e rebuscada, dada a precária saúde do autor, sendo o seu irmão mais novo, Robert, o responsável por grande parte dos arranjos e da futura estruturação da obra, baseada na intenção de Marcel. O primeiro destes momentos é “Do Lado de Swann” (1913), onde está o âmago do nascimento e crescimento precoce do narrador na sua infância, em torno da sua família (os pais, a avó, Bathilde, a tia Léonie, o tio Adolphe e a empregada, Françoise) e seus amigos e vizinhos (como a família Swann, do casal Charles e Odette e de sua filha Gilberte, o primeiro amor do narrador Essas memórias são desencadeadas pelo inconsciente, depois de saborear uma madalena molhada em chá, transportando-o para a cidade fictícia de Combray, que se inspirou na de Illiers, onde o autor usufruiu de largos períodos de férias. É esta viagem que vai seguindo e pautando a magia da busca pelo tempo perdido (e esquecido) da personagem. Esta primeira edição seria rejeitada para publicação à primeira, mas passaria, depois, no crivo, abrindo as portas para que o trama se pudesse ampliar.

O segundo é “À Sombra das Raparigas em Flor” (1919), o retrato da adolescência e da descoberta do ser homem e do ser mulher, em muito catapultado pela relação com a sua avó e com o surgimento de duas personagens que marcam o percurso de vida do narrador: o barão de Charlus, membro da família Guermantes, uma das mais fundamentais no trama. Este não é mais do que um aristocrata em decadência, com grande gosto pela estética, embora profundamente antisocial, apesar de ter o irmão Basin e a tia, a Marquesa de Villeparisis, uma grande amiga da avó do protagonista. Esta parte dá a conhecer, de igual modo, Albertine, a grande paixão do narrador, uma orfã de um bando de raparigas com quem trava conhecimento, no qual também se integram Andrée, Gisèle e Rosemonde, mas também dando a conhecer o abastado Octave, inspirado na figura de Jean Cocteau.

O terceiro é “O Caminho de Guermantes” (dois volumes publicados entre 1920 e 1921), que abre a porta à movida literária e cultural da cidade Paris naquele final frenético do século XIX. É a emancipação social do narrador, que se vê entregue a si mesmo na descoberta da sua personalidade cultural, artística e intelectual, numa afirmação que é resultado da conjugação dos seus saberes e das suas ligações. É aqui que surgem Elstir, um pintor inspirado em Monet, Bergotte, escritor baseado em Anatole France, escritor com quem Proust conviveu assiduamente, o músico Vinteuil (que compõe uma sonata na própria narrativa) e a atriz Berma, especialista em papéis de peças de Jean Racine. No ambiente dos salons, também está o clã dos Verdurins, protagonizado pela Madame Verdurin, mas também pelo seu marido, pelo médico Cottard, pelo académico Brichot e pelo paleógrafo Saniette.

Outros dois volumes surgiriam em “Sodoma e Gomorra” (1921-22), aqui devolvendo o protagonismo a Charlus e a Albertine, já que são ambos os que dominam o caráter mais lascivo da obra. Charlus, na sua fama de conquistador e de galante, arrecadando o coração de vários homens (Proust era, também ele, homossexual, havendo alguma inspiração na construção da personagem na própria figura do autor). Uma destas relações será com o violinista Charles Morel, que é apoiado também por Charlus, como por Roberto de Saint-Loup, um membro do exército ligado aos Guermantes. Por sua vez, é Albertine que desperta a sexualidade mais profunda e oprimida pelo narrador, roçando o destrutivo. São estas pulsões sexuais (que, em boa verdade, são transversais um pouco por toda a obra, desde entre homens até entre mulheres) que fazem estremecer a sociedade aparentemente requintada que Proust tão bem carateriza até ao momento e que abrem as portas à sua decadência. A própria sexualidade na sua orientação torna-se cada vez mais ambígua, dada a bissexualidade de algumas das personagens, conforme o trama se vai desconstruindo. Aliás, a premência da homossexualidade não é virgem em Proust, que já havia procurado trabalhá-la nas suas primeiras experiências literárias, mencionadas anteriormente.

Os seres não cessam de mudar de lugar em relação a nós. Na marcha insensível mas eterna do mundo, nós consideramo-los como imóveis num instante de visão, demasiado breve para que seja percebido o movimento que os arrasta. Mas basta escolher na nossa memória duas imagens suas, tomadas em instantes diferentes, bastante próximos no entanto para que eles não tenham mudado em si mesmo, pelo menos sensivelmente, e a diferença das duas imagens mede a deslocação que eles operavam em relação a nós.

“Sodoma e Gomorra” (1921-22)

Postumamente, seria publicado “A Prisioneira” (1923, o afirmar e, por sua vez, o quebrar de uma relação sempre em interrogação entre o narrador e Albertine). Segue-se o penúltimo, “A Fugitiva – Albertine Desaparecida” (1927), que a “fuga” da relação por parte de Albertine, que desaparece e que, por entre cartas trocadas entre ambos, acaba por morrer, para um desespero vivido na primeira pessoa pelo narrador, apesar de se reencontrar com o que sente, ou seja, o não amor. De igual modo, vê a sua primeira paixão, Gilberte, casar com o seu melhor amigo, o marquês (Robert) de Saint-Loup. É um enlace que une os Swanns e os Guermantes, as duas grandes famílias que estão sempre presentes na vida do seu redator. Por fim, “O Tempo Reencontrado” (1927) conclui já em plena I Guerra Mundial, culminando a ação num conflito em o que narrador vê colher as vidas de alguns daqueles com quem havia privado, para além de, nos eventos sociais, fazer um balanço que é quase chocante: ninguém se encontra da forma como começou. A sociedade tornou-se completamente subvertida, assim como os seus membros, resultados das transformações vividas pela força dos tempos e dos espaços, que se adaptaram e se reconstruíram. Embora o passado esteja, inequivocamente, no semblante das personagens, é inevitável conceder a vitória a essa inabalável força que é o tempo.

Seria a tradução para o inglês protagonizada pelo escocês C. K. Scott Moncrieff – que morreu sem acabar a do último volume – que faria catapultar a obra de Proust para um estatuto de imortalidade tamanho que Proust se foi perpetuando, a partir dessa década de 1930, como um dos autores mais capazes até então. É, de facto, uma obra que traz perspetivas completamente novas para a discussão literária, já que é na pluralidade destas perspetivas moralmente decadentes que se encontra a coerência discursiva e narrativa, que, por si só, forma a experiência literária. É uma experiência catapultada pelo poder da memória, a verdadeira narradora dos acontecimentos do trama, já que é na “violência” involuntária que a história é forçada a saltar de momento em momento, de espaço em espaço, de realidade em realidade. São pequenos fragmentos sensoriais que obrigam o trama a desenhar as trajetórias, que, na verdade, são quase constelações de sinais, que se interligam e que, nesta fragmentação contínua do tempo, permite que se assista à transformação da obra numa peça de arte, numa autêntica concretização. É essa mesma arte que Proust procura que as personagens alcancem, pelo meio dos seus génios e dos seus saberes, pegando nas suas experiências e transformando-as em impulsos que revelam a maturação destes artistas.

“Somente pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que um outro vê desse universo que não é o mesmo que o nosso e cujas paisagens permaneceriam tão desconhecidas para nós quanto as que podem existir na lua. Graças à arte, em vez de ver um único mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e quantos artistas originais existiem tantos mundos teremos à nossa disposição, mais diferentes uns dos outros do que aqueles que rolam no infinito e, muitos séculos após se ter extinguido o foco do qual emanavam, chamasse ele Rembrandt ou Ver Meer, ainda nos enviam o seu raio especial.”

“O Tempo Reencontrado” (1927)

Marcel Proust foi em busca do tempo perdido e, nessa viagem, criou aquele que é considerado, unanimemente, como um dos monumentos literários do ocidente europeu. Entre sete partes cronologicamente ligadas, assiste-se àquilo a que muitos poderiam caraterizar como uma análise sociológica arguta e detalhada, desde o mais íntimo do subconsciente até ao mais amplo da sociedade. Trata-se, pois, de um prodigioso trabalho que só é verdadeiramente compreendido indo em busca da sua vida, das suas experiências e das suas aptidões literárias na própria raiz. Proust alcançou a imortalidade, por entre mais de 3000 páginas, por conseguir fazer a literatura que poucos fizeram e que outros poucos farão no futuro: a literatura que absorve, que abrange, que aglutina, mas que também evolui por meio de transformações e de deformações. Em suma, que constrói um imaginário tão real que faz com que a realidade seja quase imaginária. Nessa busca pelo tempo perdido, Proust fez o impensável: recuperou-o e multiplicou-o.

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