‘Quem faz um festival como o Tremor fá-lo com muita urgência, num contexto que não tem o ritmo da urgência’
Nós próximos dias 20 a 24 de Março de 2018 há nova edição do Festival Tremor, em São Miguel, nos Açores. É já a quinta edição, aquela em que que nomes do panorama nacional, como Dead Combo, Ermo, 10000 Russos ou Três Tristes Tigres, se mostram ao lados de nomes do panorama internacional, como Boogarins, Mykki Blanco, Liima, Baby Dee ou Mal Devisa, entre outros (o cartaz completo está disponível no vídeo no fim da entrevista).
Encontrámo-nos, numa tarde chuvosa, em Lisboa, com o António Pedro Lopes, co-director do Festival Tremor, com quem falámos sobre o que esperar da edição deste ano do festival, o balanço que faz do caminho já percorrido, e o que se avizinha naquele que é, seguramente, o festival mais marcante dos Açores, e um dos mais interessantes a nível nacional. A entrevista é longa, mas tal extensão só lhe traz ainda mais interesse.
É frequente ouvir dizer que o país está cheio de festivais. O que distingue o Tremor dos restantes festivais do panorama nacional? Por exemplo, como explicarias a alguém que frequenta o NOS Alive o que é o Tremor?
Não tem nada a ver com o Alive, em circunstância nenhuma, porque para já o Alive acontece num recinto, o Tremor acontece numa ilha. Se pensarmos num recinto, a ilha será o recinto, sendo que há momentos de intensidade em duas cidades, que é Ponta Delgada e este ano pela primeira vez na Ribeira Grande, também. À parte disso é um festival que dura cinco dias, tem uma programação com artistas regionais, nacionais, internacionais. São 50, ao todo e tem uma dimensão que é interdisciplinar, no sentido em que convoca outras disciplinas artísticas como cinema, fotografia, ou trabalhos que existem um pouco mais nas fronteiras com a performance, as artes visuais, etc.
Ao contrário do Alive, o Tremor é super ligado ao lugar em que acontece, mesmo. Não só do ponto de vista espacial, os lugares em que acontece pela ilha fora, mas também do ponto de vista da experiência, portanto das circunstâncias experienciais que os lugares oferecem, e daquela comunidade que está ali, e quando digo comunidade digo comunidade artística, mas também a comunidade num sentido mais lato, cidadãos, associações, restaurantes, hóteis, cafés, lojas, etc etc, que estão ali e tentam num grande jogo de articulação, de sinergias, e que se juntam todos em torno de uma ideia que cria, como o nome do próprio evento, tremor num sentido de vibração, de um movimento qualquer colectivo que cria uma vibração que assola o lugar de uma ponta à outra, assim com uma determinada intensidade.
Acho também que diria que acontece nos Açores, e, portanto, que esse local é mesmo muito diferente de Lisboa, e é muito especial, muito também pela paisagem que oferece, pelo verde, pelas lagoas, pelas aguas quentes, pelas praias, pelas florestas. É um cenário muito único, muito paradisíaco.
Faz tudo parte do Tremor, não é?
Sim, faz. O festival tem uma intensidade no programa, mas também dá um espaço, a quem queira, de explorar e entrar um pouco pela ilha.
Há muita gente que vem ao Tremor fazer turismo, que junta às suas férias o festival?
Sim, muito, muito. Não diria, por exemplo, pessoas das outras ilhas, mas qualquer pessoa que venha de fora, seja Portugal continental ou de um país estrangeiro, vem exactamente um bocado nessa perspectiva. Também entendem que aquele festival oferece isso, não só dentro do programa, mas se não querem estar sempre no programa podem ir à descoberta, à aventura, e perder-se num carro, e fazer uma coisa qualquer lúdica em ligação ao espaço. É super forte, isso.
E como é que surgiu a ideia do Tremor?
Aconteceu pela primeira vez em 2014, vem de uma conversa entre mim e o Luís Banrezes, que dirige uma agenda cultural que existe nas ilhas de São Miguel e Santa Maria [Yuzin Azores], em formato físico, e reunimo-nos um dia, olhando para a cidade e para como ela estava. Eu já tinha colaborado na agenda dele, através de um editor, nem tinha sido com ele directamente. Eles apresentaram-nos, nós reunimo-nos e a ideia era olhar um bocado à volta e sentir que a cidade estava uma desgraça, no sentido em que estava muito cidade fantasma, ias à baixa da cidade e não tinhas ninguém a circular na rua, havia uma grande falência do centro histórico, lojas e comércio tradicional, e eram os Açores a sentir a crise nacional à sua dimensão, e isso afectava de uma maneira muito forte a baixa. Ele sugeriu fazer um festival que se chamasse okupa, muito junto dos movimentos okupa em Nova Iorque e Barcelona, por exemplo, e a ideia dele era potenciar ou dar vida aos espaços que estavam devolutos ou abandonados no centro da cidade. Ao que eu lhe propus “Não, bora lá talvez encontrar outro nome” (já não sei de onde é que vem o nome, originalmente, se foi da boca dele que saiu, se fui eu), mas um que de certa forma resume aqui uma característica desta terra, e ao mesmo do que este projecto pode ser, e ficámos pela ideia de, em vez de dar vida a espaços que estão mortos, de fortalecer e potenciar os espaços que resistem, desde espaços comerciais, espaços alternativos, espaços institucionais, galerias, teatros, coliseus, lojas, cafés, padarias, lojas dos correios, auditórios, centros comerciais dos anos 80 [risos], tudo, sem limites, desde que não tivesse vidros e que o som pudesse funcionar, ou nós achássemos que funcionasse. Depois percebemos que há lugares em que não funciona, mas aprendemos fazendo, não é? [risos]
Foi essa a ideia, e daí juntámo-nos à Lovers & Lollypops, nesse mesmo mês desta conversa, e em quatro meses montámos um festival à suicida, de um dia, 24 horas e música portuguesa. Começou assim.
E que diferenças vês entre essa primeira e a edição deste ano?
Tudo. Para já passaram cinco anos e o festival tem cinco dias [risos]. Foi no terceiro ano que decidimos assumir o formato de cinco dias, porque no segundo ano começámos a fazer uma coisa que depois se tornou muito determinante para a identidade do festival, que é o Tremor na Estufa. São concertos surpresa em lugar surpresa, não sabes quem toca e normalmente são muito associados a uma experiência de atravessamento de sentidos.
Mas são nomes que estão no cartaz?
São nomes que estão no cartaz, mas que não têm um slot atribuído. Então há sempre um jogo de gato e rato, de perceber quem não está; quem está listado, mas não está colocado em lado nenhum. Neste caso há três, portanto aqueles três que não estão vão tocar nalgum desses dias, nalgum daqueles lugares que ninguém sabe onde é. Portanto aquilo começou a ser super forte. Começou por ser numa estufa de ananases, depois foi metade num terraço, metade dentro de um quarto de hotel, em que, imagina, a meio do concerto, que era Emperor X, o serviço de quartos batia à porta e servia cocktails para toda a gente, ou no da estufa de ananases, eles serviam licores de ananases, e compotas de ananases, e não sei quê, esse tipo de delírio, de brincar com o lugar, mas também com o que ele oferece, qual é a experiência que ele propõe.
A partir daí fomos estendendo, basicamente. Inventámos o ano passado, por exemplo, uma nova secção que se chama Tremor Todo-o-Terreno, e que são trilhos pedestres em que convidamos um artista para criar uma composição para ser ouvida a percorrer esse trilho pedestre, sendo que no final esse artista completa aquilo que propõe inicialmente para ser ouvido em headphones. Portanto, sempre em ligação a um trilho, que também nunca ninguém sabe qual é, ou onde é que fica. E depois também fomos entendendo que nos últimos dois anos, também pelo aumento do público, principalmente durante a semana, que era importante de alguma forma equilibrar esse programa e não pôr tanta sobrecarga programática no sábado, e estendê-lo ao longo da semana. Daí vieram conversas, exposições, residências artísticas, que criam coisas novas, seja montar um espectáculo, seja alguém que vem fazer alguma coisa com um artista que lá está, seja artistas que estão lá a fazer encontros um bocado improváveis. Foi-se caminhando para perceber o que nós precisamos, para de alguma forma dar corpo a esse desfile que dura cinco dias e que também a determinado ponto da história fez duas decisões, que são: o palco é a ilha, não é só o centro histórico de Ponta Delgada, portanto toda a ilha passa a ser um possível espaço de apresentação, e que o festival é um espaço também de criação, onde criamos coisas específicas para aquela situação, cria-se ali um produto. Já se fizeram videoclips, já se montaram espectáculos, já se fizeram publicações, fanzines, já se montaram exposições. Então isso foi super determinante para entender o que é que isto é. Em cinco anos o festival descobriu-se como um festival elástico, e isso é uma ideia importante, que é ele ter cinco dias, ele ter um sábado que vai manter essa característica de intensidade e centrado num lugar, mas tudo o resto é um formato que nós vamos brincando, criando secções, variações. Está sempre à procura de si, aprendendo com os erros e reinventando-se.
Quanto ao cartaz, além de eclético, é marcado por nomes menos conhecidos do grande público, entre nomes mais consagrados como os Dead Combo, na edição deste ano, por exemplo. Essa escolha em termos de curadoria é deliberada ou também fruto do acaso de, sendo um festival relativamente pequeno em termos orçamentais, ter de se limitar às contingências?
Não, é uma escolha, é quase uma marca, ao longo dos anos. Porque nunca foi diferente e acho que nunca vai ser doutra maneira. Acho que, um, o ecletismo vem da diferença de quem o programa. Somos quatro, eu, o Luís Banrezes, o Márcio Laranjeira e o Joaquim Durães, da Lovers & Lollypops. Portanto, a programação é feita numa conversa. O outro é efectivamente entender que é um festival de música, mas é um festival que propõe uma experiência de ligação com o território, logo, a música existe nesse acordo, e nesse compromisso. A dimensão de defender a música açoriana é muito importante, ela em si é super diversa, não é como cidades como Coimbra, onde há uma cena rock, ou Barcelos. Não é que sejam todos iguais, não é isso, mas há uma cena qualquer, associas a uma imagem, a um estilo. Se pensares tipo aqui à volta, nos subúrbios [de Lisboa], a cena da Príncipe [Discos], tu associas a um tipo de música. Nos Açores não, há uma cena qualquer que pode estar em vias de emergência, mas que tem muitos autores diferentes, com muitas maneiras de explorar diferentes. Logo, tendo como missão para nós defender, apostar nessa música, criar plataforma para ela ter visibilidade, sendo ela assim, variada, eclética, a bater em todos os lados. Então interessa-nos que o resto do cartaz também seja demonstrativo exactamente disso, de diversidade, de ecletismo, de muitas mundividências diferentes. Acho que é outro lado que é importante, além de haver grandes e pequenos, lado a lado, e de haver uma espécie de horizontalidade. Claro que há nomes que têm maior legitimação mediática, ou até público, do que outros, e isso de alguma forma manifesta-se na dimensão do espaço em que actuam, mas depois naquele espaço não existe uma zona VIP, não existe uma separação entre a estrela e o menos famoso. Todos coexistem no mesmo programa, e contribuem para uma mesma acção. E depois acho que a nós interessa-nos a música como fenómeno cultural, e isso tanto serve o hip-hop, como serve a música exploratória, como serve a música que existe na relação com a performance, como serve a música contemporânea ou o jazz, colar-se modelos mais clássicos a outros géneros. Acho que há muito artista neste cartaz que fala por si, independentemente do género que representa ou da dimensão que tem, e isso é também uma coisa que nós procuramos muito. Também é fruto da contingência, não diria de ser pequeno, mas do possível, porque estamos nos Açores e isso possibilita muita coisa e impossibilita muita coisa, e acontecemos numa altura em que muitas pessoas não estão em tour, em que não é o auge dos festivais de verão, onde há montes de artistas a girar porque vão rodando as capelinhas todas. As contingências são exactamente as contingências do possível, e eu acho que isso determina no seu todo quem vem e quem não vem e a composição que se faz ali.
Nós reparámos que há uma coisa forte de músicas do mundo, no sentido não do festival de Sines, mas assim Dead Combo, The Mauskovic Dance Band, ou artistas como Altin Gün, têm uma coisa ali, estão assim nessa zona. Como há uma coisa ligada à performance muito forte. Tens tipo Lone Taxidermist, que se montam todos, ou tipo Zulu Zulu, Snapped Ankles, têm uma dimensão visual muito forte, têm figurinos, têm espectáculo. Aïsha Devi igual, Baby Dee, Mykki Blanco. Há uma coisa do quão importa a ideia da performance, também como o palco que pode mostrar todas as idiossincrasias do universo, que não tem a ver só com música, mas também com cultura, no sentido mais lato.
Sobre que actuações depositas maiores expectativas na edição deste ano?
Não sei, é difícil, porque vou sempre puxar pelo meu gosto pessoal, e quem eu pus lá [risos]. Há tanta, coisa, é tão diverso. Por exemplo, a Mal Devisa é uma artista americana, de Boston, que seguimos todos há um tempo, sempre foi difícil acontecer e agora de repente vai acontecer. Há um lado ali de nunca ninguém a ter visto ao vivo, vimos vídeos, comentários, reviews, e não sabemos o que é que dá. Acho que há um lado de uma mulher com um baixo, com uma máquina de loops e um vozeirão que nunca mais acaba, numa igreja monumental, que me interessa ver, especialmente quando ela vem de pequenos clubes, do circuito de Nova Inglaterra, super underground, do qual, sobretudo ela sobrevive, a tocar ao vivo. E tem 22 anos.
Depois também ter uma artista como a Baby Dee também é todo um imaginário, uma artista ligada bastante ao Antony (Anohni), toda a fundação de uma cena nova iorquina, à volta dos pares, à volta dos primeiros discos do Antony. Ela é harpista, pianista, acordeonista, fez um freak show em Coney Island, foi tratadora de árvores até que um dia uma árvore que ela tratava caiu sobre um telhado, destruiu a casa e ela teve que voltar a fazer discos para pagar as despesas, assim uma história mega mirabolante, uma pessoa com muitas vidas, uma mulher que já foi um homem, também, existiu entre Nova Iorque e Cleveland no Ohio. Ela esteve aqui [em Lisboa] a abrir Swans na tour que eles fizeram de fim, reunião, não sei muito bem já, portanto estou com uma expectativa de vê-la ali, que pode ser absolutamente incrível como pode não ser, não faço a mínima ideia, espero que sim. Mas depois também assim bem mais pequenas, tenho sempre curiosidade de ver como é que os açorianos se saem e este ano temos de novo uma banda que são os We Sea que tem um imaginário super ligado a ser-se insular, a ter o mar como limite, assim uma coisa entre Mac DeMarco e Connan Mockasin, mas assim super açoriano ao mesmo tempo. É uma banda que já tocou o ano passado, mas têm feito novas músicas e fico sempre curioso para perceber como, dando-lhes um palco maior, aquilo cresce, no que é que aquilo vai dar, quando é que se pode caminhar para se fazer um disco e eles circularem ou até sair dali. Aquela música vem dali, mas não é só dali.
Achas que o Tremor foi importante para fazer surgir novas bandas nos Açores?
Acho que sim. Mais não seja serviu de estímulo, e também de uma janela possível para muita gente apresentar música num contexto que quase sempre era exclusivo a bandas de covers. Desde que nós começámos apareceram, desapareceram, transformaram-se projectos novos. Em cinco anos passaram quarenta, então é muito incrível ver como os projectos vão aparecendo, vão evoluindo. Havia uma cantora e compositora, tinha 16 anos quando começou connosco, tocou na primeira edição porque nós a desafiámos a fazer originais, ela só tocava covers. É a Sara Cruz, e hoje em dia ela só toca as suas próprias músicas. Para ali fez meia dúzia de canções, foi o seu primeiro concerto de originais, e já tocou duas ou três vezes mais [no festival], foi até nossa artista embaixadora. Então sim, acho que sim.
São muitos os jovens açorianos que, ao entrarem na faculdade, vêm para o continente. Tu próprio saíste. Achas que agora há mais razões para poder ficar nos Açores, menos necessidade de ir embora? Ainda que haja esse gosto de conhecer outras coisas, claro.
Não sei responder-te a isso, sabes? Tenho trinta e tal anos, já fui adolescente, já tive vinte anos, já tive muitas fases na relação com aquela ilha, com aquele arquipélago. Neste momento tenho uma relação muito mediada por este festival. Acho que há coisas incríveis que não existiam há vinte anos atrás quando eu estava a crescer e a formar-me adulto. Nomeadamente há mais oferta do ponto de vista escolar, académico, podes fazer uma formação ali, desde jornalismo a arquitectura. Tens do ponto de vista da cultura muito mais equipamentos, tens espaços com programação, tens o Teatro Micaelense, tens o Coliseu Micaelense, tens o Centro de Artes Contemporâneas [Arquipélago], que é um acontecimento do ponto de vista arquitectónico, que tem cada vez mais um programa multidisciplinar. Não havia nada disso, não é? Tens estes festivais, que são bastante experimentais naquilo que propõem, na relação com o espaço e nos artistas que apresentam. O Tremor, na música, não querendo ser pretensioso, faz isso. O Walk & Talk numa perspectiva mais multidisciplinar, nas artes visuais, tem diálogo com a música, a dança, artes performativas. Tens uma agenda cultural, os dois espaços nocturnos. Sim, acho que da minha adolescência para cá há muito mais motivos para que eu olhe para São Miguel e o sinta como lugar interessante.
Não sentias, quando vieste embora?
Não sei, foi há vinte anos e o que eu senti era que precisava de vir embora e de expandir o meu sentido de mundividência. E que ali, naquela altura, a ilha era só um limite, limite físico e um limite de cabeça. Não só para mim, mas também para quem estava à minha volta. Quando tu vives num contexto assim há tanta intensidade ali. Há uma realidade própria, há notícias próprias, há o canal da televisão de lá, de rádio, há não sei quantos jornais. Eu já vivi no Rio de Janeiro e há qualquer coisa. Porque o Rio de Janeiro é uma cidade tão intensa, tem um canal de televisão próprio que bomba só sobre a cidade, a cidade oferece tanta tanta coisa, é tão viva, é tão complexa. Os Açores têm qualquer coisa de muito vivido, muito complexo e uma realidade. Talvez por isso ser uma Região Autónoma, tem o seu contexto próprio, tem o seu imaginário próprio, problemas próprios, então há ali uma intensidade que é diferente da de estar aqui, que nem sequer é comparável porque muda mesmo radicalmente. Agora, acho que também é um outro tempo, não é? (A rádio começa a tocar Everyday is Like Sunday, do Morrissey) Pois, nos Açores Everyday is Like Sunday. [risos] Há um outro tempo também, há uma outra ideia de tempo, há uma outra ideia de urgência. Quem faz um festival como o Tremor fá-lo com muita urgência, num contexto que não tem o ritmo da urgência. Eu não estou mais descansado em São Miguel do que estou em Lisboa, porque é um quebra-portas, estamos a falar de um formato, de artistas, de ideias, de identidades, que não cabem nos formatos daquela sociedade. Então é um abre-cabeças, é de um evangelismo que não acaba. Dar a entender a todos sobre o que é que é essa experiência e que convite é que ela faz.
Como é que reagem esses locais, que se calhar não teriam como ter uma ligação com essa música, ao facto do Tremor estar a acontecer? O típico idoso que está na baixa da cidade, como é que reage a isto?
Há de tudo, não dá para generalizar. Mas tens o que se junta, o que procura, dentro daquele programa e daquela experiência, onde é que cabe. É muito bonito ver. Não vais ver aquela pessoa em todas as propostas, mas vais vê-la naquelas x e y. Tens os que estranham, tipo “O que é isto, do Tremor?”, há uns que lhe chamam festival “do Tremor”, nem sabe muito bem o que é, sabem que é uma cena que faz cenas em vários lugares e tem assim uns artistas marados. Tens os que se aproximam por curiosidade, e também pela repetição daquilo continuar. Tens os que recusam, por não reconhecerem nada, por ninguém lhes dizer nada, por não haver uma dimensão comercial muito evidente. Porque eu acho que até existe uma dimensão comercial evidente, há nomes ali que são mais reconhecíveis, agora efectivamente, mais do que tudo, convida à descoberta, e é um jogo de desvendar e conhecer aqueles artistas. Temos sobretudo um público que é crescente, local, que é muito variado, vem desde o adolescente, aos novos pais, com filhos, até ao idoso.
Vês uma mudança, ao longo destes cincos anos, em quem vai ao Tremor?
Localmente sinto que há um alargamento do espectro. Depois, do ponto de vista de quem visita, sim, bate para todos os lados, não há uma regra. Não sei de onde vêm, como descobriram aquilo, provavelmente através dos artistas, e de alguns meios, mas são homens, mulheres, na casa dos vinte, trinta, quarenta, que vêm de Portugal continental, da Europa, dos Estados Unidos. Também há os que tropeçam no festival e o descobrem porque estão lá de férias. É muito variado.
E achas que o facto de os Açores estarem a ficar na moda tem alguma relação com o Tremor?
Ficarem? Já estão, não é… É assim, o Tremor tem uma dimensão mediática grande. Se pensares nos festivais que acontecem nos Açores e perguntares aqui à volta vão te falar talvez do Tremor, de um que acontece em Santa Maria que é o festival Maré de Agosto, super antigo, e se calhar vão falar do Walk & Talk, mas se calhar nem vão pensar aquilo como festival, mas mais como uma cena de arte urbana e artes visuais. Então nesse sentido [o Tremor] comunica muito os Açores, o que são agora ou podem ser numa perspectiva mais contemporânea, de alguma forma a renovar a ideia do que é que os Açores são como experiência. Então acho que tem sido positivo, espero que ajude de uma forma positiva mesmo que seja para um nicho relativo, pequeno, não estamos a falar de um evento de massa, estamos a falar de um festival pequeno, que leva no máximo 1500 pessoas por dia. Não estamos a falar de uma coisa abrasiva, ou que vai deixar um lastro, ou uma pegada no território. Mas acho que, sobretudo mais do ponto de vista da comunicação, da forma como reinventa o imaginário, abre novas possibilidades.
E quais são os próximos passos para o Tremor? O que gostarias de ver o Tremor fazer que ainda não faça?
Para já é fazê-lo acontecer em 2018, de 20 a 24 de Março [risos]. Depois acho que o Tremor tinha de ser um projecto de ano todo, como projecto de cultura que é, na associação ao seu território e comunidade. Ele precisa de uma cultura de fruição em continuidade e que se alargue por outro tipo de propostas, não só centrada em dois, três meses muito intensos no ano, e numa semana em que há uma cereja no topo do bolo para todos virem ali.
Ter por exemplo concertos com curadoria Tremor?
Sim, fazer curadoria Tremor, fazer extensões, as residências artísticas poderem ter vida além do festival e ser desenvolvidas também numa outra perspectiva de tempo e qualidade. Que há tempo, há qualidade, mas também há uma certa rapidez, há muitos projectos que necessitam de várias visitas, de várias etapas, nós estamos ali muito a segurar uma etapa, duas no máximo, porque tudo custa dinheiro. Portanto eu diria curadorias, extensões do programa, assim concertos especiais. Tudo o que a gente faz no território, seja no meio da natureza, seja esses surpresa, podem ter mil e uma declinações. Por exemplo, esses surpresa têm uma que é, no mínimo têm de ter mais de quinhentas pessoas ali dentro. No início eram cinquenta, hoje em dia não dá. E isso elimina logo muitas coisas possíveis. Tem de haver um trabalho contínuo, que é também um trabalho de educação, de programação, de sentir que aquilo está ali, faz parte. Mais do quotidiano e menos só do inverno/primavera. Eu acho que o Tremor precisa disso. A partir do momento que ganhar isso na ilha de São Miguel, o nosso sonho é que possa acontecer noutras ilhas, noutros formatos não franchisados. Somos anti-franchising, no sentido em que o Tremor é como é porque é em São Miguel, se for noutra ilha vai ser outra coisa qualquer. Grande parte dele é o modo de operação, como é construído, que é com quem lá está. Ele usa do que lá está, de quem está no terreno, para se construir. Ou seja, nenhuma realidade é igual. E ainda que possas fazer o concerto em circulação entre salas, bom, o principal na verdade não está aí, está numa outra coisa maior que o torna uma experiência.
E não tens medo que fique demasiado grande?
Para o que nós podemos, ele já é demasiado grande. Já estamos aí. Agora ele tem limites, as salas têm limites, os lugares têm limites. A maior lotação do Tremor leva 3000 pessoas.
Vamos ver o Tremor a esgotar em Dezembro?
O Tremor só esgotou uma vez, em quatro edições, e foi a primeira, curiosamente. [risos] O ano passado esteve muito próximo de, no próprio dia. Não sei, claro que seria um descanso de alma, para nós.
Mas há essa vontade de o manter dentro de determinados limites?
Ele nunca será uma experiência massificada, ele não tem por onde crescer em termos de público, a não ser que a gente um dia decida ter um recinto. Mas aí ele não vai ser este festival. Então os limites dele também são as suas potências, que residem na diversidade que existe ali, a oferta de espaços que permitem experiências, e é isso. O nosso maior espaço é de 3000 pessoas, mas já fizemos um concerto num estádio, que dá para alguns milhares, mas estavam tipo 300 pessoas a ver. Mas o jogo era exactamente esse, era essa a piada, de pôr os Capitão Fausto a tocar num estádio gigante e a ocupar um cantinho perante um monumento enorme, vazio lá atrás. [risos] Não tem por onde ser o NOS Alive, nem nenhum formato de recinto.
E o que recomendas a quem esteja a pensar deslocar-se até São Miguel para o Tremor, que dicas é que dás?
Que levem fato de banho, toalha, guarda-chuva e casaco. [risos] Que sejam nice uns com os outros, que não stressem. Porque nós somos amigos e aquilo tem uma dimensão familiar que é fixe, e também é fixe por ter essa dimensão humana. Tem uma máquina, claro, mas são pessoas, e vê-se quem são as pessoas que estão ali a fazer a coisa acontecer. E que venham no sentido também de se deixarem descobrir, e pensarem que esta é uma experiência que propõe uma ideia de um encontro, em que toda a gente pode compartilhar o mesmo espaço, vivendo uma experiência e reconhecendo-se ao longo do programa porque se vão cruzar muitas vezes. A ilha é grande, mas, lá está, os espaços não são tão grandes que tu não te cruzes com a mesma pessoa quase todos os dias, e então acho que é obrigatório vir numa perspectiva exploratória. É um lugar incrível, tem imensas coisas para fazer e para explorar, e a dica é tentar comer, descansar, curtir e take it easy [risos].
https://www.youtube.com/watch?time_continue=45&v=CpsAPzJtK0Q