As superações artísticas de Artemisia Gentileschi
Numa dimensão artística de renascimento dos tempos idos, muito predominada pelo sujeito masculino, em que poucas são aquelas que saltam à vista e que são devidamente trabalhadas e redescobertas, surge o proeminente vulto de Artemisia Gentileschi. O auge do Risorgimento já havia passado, mas ficava o exercício de imortalizar o mitológico e o cristianizado, com a pompa do detalhe, da minúcia e da perfeição pictórica e dramática. Este barroco, protagonizado por Caravaggio, não pode esquecer o percurso de vida de Gentileschi, que personificou grande parte dos episódios perpetuados que se assemelhavam à sua própria experiência de vida, sofrida e vilipendiada pelo despudor que a vitimou numa violação. A transmutação de toda a dor e sofrimento transportados para os dias em que se assumiu como pintora conheceu as telas, as representações, e conhece hoje o devido enaltecimento.
Artemisia Gentileschi-Lomi nasceu em Roma, no dia 8 de julho de 1593, filha do pintor originário da região da Toscânia, Orazio Gentileschi. Foi com ele que se fez munir da paixão pela pintura, aprendendo, no atelier deste, a desenhar, a misturar as cores e a pintar. A influência de Caravaggio na pintura do pai fez-se sentir em Artemisia, embora esta se voltasse mais para o naturalismo, perante o idealismo que se fazia sentir no panorama artístico de então. A superação pessoal começou por se mostrar como uma necessidade já por essa circunstância, e viu o esforço ser recompensado logo aos 17 anos, com a sua primeira pintura “Susanna e i Vecchioni”, de 1610 (teria novas versões em 1622 e em 1649). A influência da escola de Bolonha, mais classicista e monumental, orientou-a naquilo que seria uma carreira atribulada por incidentes que a marcaram e a traumatizaram.
Com apenas 18 anos, no ano seguinte, enquanto o seu pai estava a trabalhar na decoração de um palácio romano, Agostino Tassi, também ele pintor, ficou responsável por orientar Artemisia no seu trabalho. No entanto, este violá-la-ia, num ato que contaria com o apoio de outro homem, de seu nome Cosimo Quorli. A relação entre Tassi e a italiana não cessaria ali, voltando a ter relações sexuais com a promessa de se casarem, de forma a restituir a dignidade presente e futura da pintora. Quando essa promessa saiu furada, Orazio Gentileschi levou Tassi a tribunal, desmascarando as intenções que este tinha de roubar pinturas de Orazio, de matar a madrasta de Artemisia (a mãe havia morrido quando esta tinha 12 anos), para além de cometer adultério com a sua tia. O julgamento aumentou a dor sentida pela pintora, com uma examinação ginecológica a ser feita para verificar a veracidade da acusação, que alegava a virgindade da pintora. Tassi seria expulso de Roma, naquilo que seria o veredicto final de um caso que motivaria um fluxo artístico profundo em emoção e sofrimento.
Um dos rostos importantes deste episódio e ainda não mencionado é o de Tuzia, a governanta da residência dos Gentileschi, e que era a grande referência feminina de Artemisia. A sua condescendência e despreocupação havia permitido que o incidente ocorresse, o que fez com que a pintora sentisse uma crescente importância de realçar a unidade e a força de caráter feminino perante as pulsões masculinas descontroladas. Para ajudar na superação do sucedido, o pai da artista arranjou um noivo para ela, o pintor florentino Pierantonio Stiattesi. O casal passou a viver em Florença, onde Artemisia efetuaria bastantes trabalhos para a corte, contando com o mecenato dos Medici, e do próprio rei Carlos I de Inglaterra. Uma das obras proeminentes deste período seria “Madonna col Bambino”, agora no Palazzo Spada, em Roma. O casal daria à luz uma filha, em 1618, de seu nome Prudentia, o nome da mãe da pintora.
Este sucesso seria confirmado com a admissão na Accademia delle Arti del Disegno, granjeando a apreciação e a proteção de vários membros nobiliárquicos da sociedade italiana, para além de uma amizade com Galileu Galilei. Artemisia seria uma das pintoras que contribuiria com uma pintura para o teto da Casa Buonarroti, pertencente aos familiares do célebre pintor Michelangelo. “Allegoria dell’Inclinazione” seria o resultado da contribuição da artista, figurando uma jovem numa com um compasso, sendo mais um dos retratos feitos a si mesmo por parte da italiana. Este seria um dos trabalhos proeminentes desta fase, para além de “La Conversione della Maddalena” e “Giuditta com la sua Ancella”, entre outras obras mitológicas, mas com correlação com a sua vida pessoal.
Entretanto, viria a estabelecer uma relação passional com um nobre florentino, de seu nome Francesco Maria Marnighi, que conferia um suporte financeiro e social relevante a toda a família à data. Porém, o secretismo em torno da relação descairia, e forçaria Artemisia, sem o seu marido, por razões igualmente financeiras, mas com a filha, a voltar para Roma. Nesse regresso, viu o pai migrar para Génova, embora prosseguisse com a sua pintura caraterística, voltada já para o auge do século XVII, com um perfume barroco naquilo que era o classicismo bolonhês. A sua personalidade assertiva e acertada era representada por outros artistas, que a representavam em escritos e em pinturas, incluindo alguns que vinham de fora. Entretanto, a sustentabilidade económica da sua obra tornou-se reduzida, o que a levou a ser menos aguerrida no seu estilo, e a limitar-se à representação bíblica. Neste período, relevam-se “Ritratto di Gonfaloniere” – predominância do chiaroscuro neste trabalho – “Venere Dormiente” e “Ester e Assuero”, obras que se encontram em vários recintos artísticos norte-americanos.
Em 1630, a pintora passou a viver em Nápoles, procurando melhores oportunidades profissionais para a sua pintura, encontrando outros nomes de destaque, como Domenichino e Massimo Stanzione. Desta feita, o sucesso encontrar-se-ia com Artemisia, especialmente no campo pessoal, vendo a sua filha a casar na cidade napolitana. Àquele lugar, iriam muitos ingleses, que admiraram muito do trabalho desenvolvido pela italiana, em especial “San Gennaro nell’anfiteatro di Pozzuoli”, “Nascita di San Giovanni Battista” e “Corisca e il Satiro”. Novelas contemporâneas conheceriam uma adaptação pictórica, para lá das usuais, muitas delas associadas a rostos femininos emblemáticos da história religiosa e mitológica. O interesse britânico levá-la-ia a juntar-se ao seu pai na corte do rei Carlos I de Inglaterra, e a pintar “Trionfo della pace e delle Arti” na casa da rainha Henriqueta Maria de França. A parceria familiar manter-se-ia, embora a filha também fizesse alguns trabalhos a solo, como “Autoritratto in veste di Pittura”.
Em 1639, uma nova fatalidade na vida de Artemisia, com o pai a partir. A dor levou a que a italiana voltasse para Itália em 1642, nos primórdios da guerra civil britânica. O regresso iria vê-la a voltar a Nápoles. A graciosidade da sua pintura aumentaria assim que a própria maturidade e a superação dos seus males se foi sucedendo, sentindo-se, também ela, mais uma expressão vincada da essência feminina. Seria assim até 1652 e/ou 1653, ano da sua morte, não havendo certezas quanto à data da sua partida, na cidade de Nápoles, em alturas do regresso da peste, que abateria uma geração de habitantes da mesma. Deste período, denotam-se a versão de 1649 de “Susanna e i vecchioni”, “David e Bathsheba” e “Madonna e Bambino com Rosario”.
O legado que Artemisia deixaria seria estendido aos séculos subsequentes, conhecendo-se mais de cinquenta obras da sua autoria, em que quase todas contam com mulheres como protagonistas, a sós ou a par de homens. Essas personagens vêm-se despojadas das típicas caraterísticas associadas às mulheres, como sensibilidade, fraqueza e timidez, tornando-se destemidas, fortalecidas e até subversivas. A italiana revê-se nas tormentas sofridas por muitas das heroínas bíblicas, procurando manifestar a sua contestação perante a menorização delas nos próprios escritos. Muito daquilo que também era a sua menor rentabilização do trabalho voltava-se para essa fuga ao convencional, para a subjugação àquilo que a História contava, que não encantava muitos daqueles que apreciavam arte à data. Apesar dessas preferências laudatórias, a artista não temia a expressão de algumas das suas repressões na tela, representando alguns casos de violência sexual que os mitos narravam.
Ao olhar dos historiadores da arte, o seu estilo não é totalmente vinculado a uma só corrente, podendo ser olhada dentro de vários contextos, entre vários géneros e temáticas. Já naquilo que é uma olhar mais social, a pintora permanece como uma das porta-estandartes mais duradouras do feminismo, como alguém que, pela sua vida e obra, se expressa com uma necessidade patente e latente de coordenar e ordenar a figura feminina numa sociedade ainda profundamente iníqua e desequilibrada. O facto de, também ela, ser mãe viúva durante grande parte da sua vida surge como uma premissa relevante naquilo que é uma História vinculada e recheada de famílias patriarcais. É, assim, precursora de um lote de pintoras italianas bem-sucedidas, como Sofonisba Anguissola, Lavinia Fontana e Fede Galizia, que inspirariam muitas outras de gerações seguintes.
Foi neste percurso de autenticidade feminina, na superação e transmutação de traumas que se afirmou Artemisia Gentileschi, que se tornou no rosto da expressão artística feminina. Um rosto de grande popularidade nos anos vindouros, tanto na arte, como na própria sociedade. O seu barroco, mesclado com um classicismo que não descartava o naturalismo, tornava-se rebuscado na forma como interpretava e representava a figura da mulher, causando choque em tempos conservadores e de desvalorização da mesma. Artemisia, com um nome que se aproxima da divindade grega da caça e da vida selvagem, viu-se obrigada a transmutar muita da dor e da mágoa que a selvajaria humana lhe cravaria no corpo e no espírito. A sua pintura transmite toda a emoção endurecida e ressentida, no palco de um tempo obscuro e obtuso, onde a claridade foi ganhando asas e louvores pela memória da História.