O feminismo do contra e o percurso de vida em choque de Camille Paglia

por Lucas Brandão,    21 Fevereiro, 2023
O feminismo do contra e o percurso de vida em choque de Camille Paglia
Camille Paglia no “Fronteiras do Pensamento”, São Paulo (2015) / Wikimedia Commons
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Camille Paglia é um dos principais nomes do feminismo nos Estados Unidos. Mais distante dos típicos nomes dos quais se ouve falar, como Simone de Beauvoir, a leitura dos tempos feita por Paglia é distinta, embora viaje, da mesma maneira, pela história. Ávida consumidora de arte e de cultura, é nessas referências que sustenta a sua argumentação no momento de discernir sobre o papel da mulher entre os tempos e os espaços. Porém, por entre as normas entre as quais se debatem e se discutem questões sociais, a estadounidense decide deambular pelos seus limiares, causando frenesim e até comichão em quem a ouve e a lê.

Camille Anna Paglia nasceu a 2 de abril de 1947 nos subúrbios de Nova Iorque, filha de uma família de emigrantes italianos. O seu pai deu aulas na Oxford Academy, uma escola secundária de referência nessa vila novaiorquina e tornou-se na porta de entrada de Paglia para o mundo da literatura e da arte. Com a família a passar a viver em Syracuse, uma outra localidade em Nova Iorque, tornou-se ainda mais aproximada das línguas românicas — que evoluíram do vulgo latim — ensinadas pelo seu pai e, na sua formação escolar, foi sempre muito interrogativa e desafiadora, questionando e colocando em causa o porquê das coisas.

A sua personalidade desafiadora continuou a ser aprofundada, essencialmente no ponto de vista social. Sempre se sentiu transgénero — quando era mais nova esse termo é que não existia —, tinha fascínio pelos fenómenos do crime, da pornografia e da sexualidade e que se repercutiu no percurso da sua vida. Apesar de adepta do excesso e da extravagância, sempre se designou como ateísta, embora sem fechar a sua espiritualidade ao misticismo. Foram paixões que foi adquirindo durante a adolescência, mas também durante o seu período universitário, no qual esteve na Binghamton University, em 1964, concluindo o curso quatro anos depois. Depois, seguiria para Yale, orgulhando-se de ser a única estudante assumidamente lésbica e, lá, acabaria os estudos em 1972. Escrevia com a mesma avidez com a qual pregava partidas aos seus colegas e fazia valer a sua personalidade provocadora.

Como grande referência então, tinha Susan Sontag. Era um exemplo para si, uma feminista e ativista acérrima, uma mulher da academia autónoma e independente, capaz de rasgar preconceitos e de gerar novos pensamentos e novas perspetivas. Uma charneira entre o mundo das artes eruditas e da cultura popular. No entanto, e durante uma palestra desta que ajudou a organizar e à qual Sontag chegou com uma hora de atraso, Paglia cairia em desilusão perante esta. Para além deste fator, a leitura por parte da autora de um pequeno conto seu caiu-lhe mal por o considerar fastidioso e vazio. Este momento tornar-se-ia um importante momento de rutura, já que pretendia manter-se em constante confronto e afastar-se do elitismo crescente em que achava que Sontag se havia fixado.

Paglia iniciou a sua carreira de docente em 1972 e, consoante foi desenvolvendo o seu trabalho em ambiente académico, foi mergulhando no pensamento de vários nomes, como a classicista Jane Ellen Harrison ou o psicólogo Erich Neumann, e tendo uma leitura crítica de outros, como a educadora Kate Millett. A sua tese de doutoramento em Yale, defendida em dezembro de 1974, seria a sua obra de referência e o resultado dessa profunda e extensa investigação: “Sexual Personae: The Androgyne in Literature and Art” (publicado em 1990). Invoca as já empregues noções do feminismo, como o papel da mulher na sociedade e a própria figura do homem em comunicação com esta e mesmo na sua consciencialização e tomada de atitude perante a diminuição da mulher.

Porém, trouxe ideias novas e quase virgens sobre a androginia, a homossexualidade, o matriarcado ou o sadomasoquismo, entre vários outras. A sua discussão sustentou-se em referências da arte e da cultura, como a pintura renascentista, os escritores do século XIX, desde Emily Brontë e Goethe a Oscar Wilde, entre outros caminhos. Aqui, analisou de um ponto de vista bicéfalo, à imagem da mitologia grega, em que há a dimensão apolínea, onde pauta a ordem e a harmonia, e a dionisíaca, dada a perigos, a paixões, aos excessos e à desordem. É uma análise que desconstrói as referências culturais e ocidentais e, por vezes, destrói o seu estatuto quase sagrado, à luz do que é assumido como politicamente correto. Aliás, conclui que a própria civilização e a sua cultura são criadas de forma a conter esses impulsos dionisíacos, onde se contextualizam o surgimento da religião e até do casamento como forma de regular a força feminina. Foi um argumento que não colecionou grandes fãs nas feministas, um pouco à imagem do seu posterior percurso.

A autora seria responsável por, na Universidade Estadual de Nova Iorque, causar polémica ao confrontar as fundadoras dos estudos femininos aquando destas assumirem que a componente hormonal não tinha qualquer influência no ser humano. Tamanhas querelas levariam Paglia a demarcar-se da academia e a sair da docência. Seria uma demarcação que se confirmaria no conjunto de ensaios que lançou em 1994, de seu título “Vamps and Tramps: New Essays” e que geraria desconcertação pelo tom absurdo e quase caricatural das instituições de ensino pré-concebidas e já burocratizadas.

Focar-se-ia, antes, em aprofundar a sua tese de doutoramento e em sustentar economicamente essa atividade através de algumas colaborações pontuais com vários colégios no país. Fora ensaios pontuais e algumas outras colaborações com jornais, a sua vida só retomaria a normalidade profissional em 1984, quando se juntou à Universidade de Artes de Filadélfia, e quando se tornou membro da equipa editorial da revista académica “Arion”, subordinada a temas das humanidades e dos clássicos.

Paglia contribuiria para aquele que foi um inquérito feito por parte da revista mensal britânica Sight & Sound a vários profissionais da área do cinema, no qual eram questionados os melhores filmes de sempre. Para a estadounidense, estes foram “Vertigo”, “Lawrence of the Arabia”, “Persona”, “North by Northwest”, “Orphée”, “The Godfather” (1 e 2), “La Dolce Vita”, “Gone with the Wind”, “Ben-Hur” e “Citizen Kane”. Sobre o filme de Alfred Hitchcock “The Birds”, também escreveu um livro seu homónimo de comemoração dos seus 35 anos, no qual abordou, como tese, de um ponto de vista psicoanalítico, o facto das forças primitivas sexuais e o apetite das pulsões existentes serem reprimidas mas nunca domadas.

A possibilidade de poder colaborar com várias iniciativas avaliativas vindas de vários meios de comunicação, entre outros organizadores, surgiu pela fama que foi conseguindo criar ao longo da sua carreira como uma das intelectuais de referência no espaço público, em especial saindo das normativas geradas pela contracultura. Exemplo disso foram os seus diversos ensaios sobre a cultura dos Estados Unidos, muitos deles compilados em “Provocations: Collected Essays on Art, Feminism, Politics, Sex, and Education” (2018) ou, bem antes, em “Sex, Art and American Culture: Essays” (1992), que abordam diversos temas da mencionada pop culture, como a música rock, o cinema, entre outros fenómenos da sua atualidade. De igual modo, “Break, Blow, Burn” (2005), em que escolhe quarenta e três poemas sobre os quais disserta, viajando de William Shakespeare a, entre outros, Y.B. Yeats. Também escolhe as artes visuais como tema em “Glittering Images” (2012), indo dos tempos antigos até aos modernos e fazendo por valer a capacidade de contemplar perante a ameaça dos mass media hiperexpositivos e recheados de estímulos visuais.

Capa do livro em versão portuguesa (ed. Relógio d’Água)

Foi sempre pelo princípio de mudança que pautou a sua linha de pensamento. Apesar de admirar as pioneiras no feminismo teórico no ocidente — como Beauvoir —, Paglia nunca deixou de criticar a excessiva intelectualização e abstração de muitas delas. Aliás, seria com Paglia (entre outras) que o feminismo se aproximou da pop culture quando o alocou a artistas como Madonna. No entanto, também afirmou que era a própria pop culture a responsável por ferir a autoestima de todos aqueles que, admirando as artistas que nela se afirmam, reconhecem não ser ricos, famosos e até atraentes. Com isto, aprofunda-se o estereótipo de que só sendo assim é que se pode estar na sociedade. Como resposta, Paglia defendeu que cabe às mencionadas artistas a responsabilidade de incluir e de aconselhar todas as pessoas — leia-se mulheres — que se sentem marginalizadas, de forma a se encontrarem e a poderem colocar as suas mais-valias ao serviço de todos.

O seu tom inflamatório e autoritário sempre causou furor por entre as declarações e a atividade de tantas mulheres figuras públicas, por vezes fazendo críticas de críticas de feministas que visavam outras. De certa maneira, uma feminista anti-feminista, avessa à contemporaneidade, seguindo um caminho próprio. Evidentemente, as próprias feministas seriam críticas de Paglia, acusando-a de ser estalinista e de defender que o feminismo era um problema. A sua própria ideia sobre a violação ter, como origem, a voracidade sexual acabou por colher bem junto da psicologia evolutiva, que reforçou a importância das feministas estarem informadas quanto aos fatores de risco desse tipo de crimes. Ainda assim, conforme refere nos seus ensaios compilados em “Free Women, Free Men: Sex, Gender, Feminism” (2017), procura abrir o campo das opiniões e das convicções à maior amplitude possível, livre de ideologias e de demais constrangimentos de princípios, embora reforce a importância da responsabilidade pessoal no feminismo (consciente) de cada um(a).

Da mesma maneira que aborda a violação, também tece observações quanto à sexualidade infantil. Paglia mostrou-se próxima da atividade da NAMBLA, organização destinada a combater a pedofilia e a pederastia (relação entre um adulto e um jovem rapaz). Não obstante, apoiou a descida da idade de consentimento para 14 anos, de forma a liberalizar a vida erótica na adolescência. De forma revolucionária, chegou a afirmar que certas formas de pornografia infantil não são intoleráveis, embora reformulasse o pensamento anos depois de o ter assumido, ainda nos princípios da sua carreira literária. Pondo de lado as conceções da Antiguidade Clássica, bem mais recetivas a relações conjugais e até sexuais entre adultos e crianças, sublinhou a necessidade de proteger as crianças e de confinar à imaginação quaisquer ideias outrora sugeridas.

Ainda sobre a sexualidade, Paglia, que, conforme apontado acima, se afirma como transgénero, é a própria a afirmar o seu ceticismo pela emergência dos movimentos associados à sigla LGBTQIA+. Na sua opinião, apesar de conseguirem desconstruir os abusos sociais em relação aos membros desses movimentos, foram mais as complicações psicológicas e sociológicas criadas, dado que não se devem diferenciar em nenhum aspeto perante a lei e perante a própria sociedade. Tamanha afirmação criou-lhe mais uma série de problemas, dado que até uma petição foi criada para a demitir da Universidade das Artes. No entanto, esse pedido acabaria por sair gorado, dado que foi rejeitado, sob o pretexto da liberdade académica como pilar da educação contemporânea.

As polémicas de Paglia, contudo, não se resumem aos estudos feministas e da sexualidade feminina. Considerando-se libertária e progressista no que toca a convicções políticas, bateu-se de frente perante a influência vinda da filosofia francesa, em especial do seu pós-modernismo. Afirmou que nenhum dos seus argumentos lhe dizia algo, embora simpatizasse com alguns dos seus autores, como Gaston Bachelard e a sua fenomenologia descritiva aplicada à arte ou, numa linha distinta, Jean-Paul Sartre e a sua “literatura elevada”.

Para Paglia, de igual modo, as leis quanto à prostituição, à criminalização do consumo de drogas, à pornografia e à interrupção da gravidez devem ser travadas, embora negasse a discriminação positiva, à imagem daquilo que foi mencionado quanto aos transgéneros e demais membros das comunidades LGBTQIA+. Sobre o aquecimento global, a estadounidense colocou em causa aquilo que se entende como um fenómeno de entendimento consensual, que vem causando alterações climáticas, considerando que este faz parte de uma agenda política conveniente. Confronta, precisamente, a questão do género humano com o aquecimento global, afirmando que não vê toda a sociedade a fundamentar o género na biologia como o faz com as alterações climáticas.

Quanto a essas agendas políticas, sempre se mostrou muito propensa a apontar baterias aos presidentes e candidatos presidenciais do seu país, como a Bill Clinton durante o escândalo com a sua secretária Monica Lewinsky — a seu ver, foi este aparato que acabou por distrair a sociedade estadounidense perante o que se viria a suceder com o 11 de setembro; ou à sua esposa Hillary Clinton, chamando-a de fraude. Assumiu-se como apoiante de John Kerry em 2004, de Barack Obama em 2008 e da candidata pelo Green Party, Jill Stein, em 2012 e em 2016, embora também tendendo para o projeto de Bernie Sanders.

Camille Paglia vocifera perante o que é politicamente correto. Causa dores de cabeça, incómodos, pruridos. A sua vida reflete o que escreve e vice-versa. Um percurso vivido na capacidade de choque e de sobreviver a estes mesmos choques. Todavia, não se pode negar tamanha voz singular e única na pluralidade imensa de opiniões (mais ou menos) formadas e aprimoradas, com sustento na comunidade académica, mas aberta ao mundo. Aberta às questões do foro mais íntimo até às da maior expressão universal. Por mais que não se concorde, na obrigação de aceitar a voz diferente, Paglia continua, mesmo no legado que deixa estanque, a garantir vibrações e reflexões. Um legado de olho bem aberto para o que há de vir.

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