Entrevista. Sjón: “A nossa maior técnica de sobrevivência é contar histórias”

por Mário Rufino,    15 Junho, 2018
Entrevista. Sjón: “A nossa maior técnica de sobrevivência é contar histórias”

Não é caso único, mas não deixa de ser um mistério que A Raposa Azul, pérola da literatura islandesa, escrita por Sjón (Reykjavik, 1962) e editada pela Cavalo de Ferro, tenha passado despercebida em Portugal.

No ano de 1883, Baldur Skuggason persegue uma raposa azul na paisagem islandesa marcada pelo inverno. No momento em que o gatilho é premido, o leitor é levado a conhecer outras personagens como o naturalista Fridrik B. Fridriksson e Abba, uma menina que sofre de Síndrome de Down, que havia sido encontrada presa com correntes num navio naufragado em 1868. São pouco mais de 100 páginas, em que Sjón nos transporta para um ambiente irreal e envolvente, num exemplo da capacidade da literatura se regenerar. Com uma linguagem actualizada, foi dada vida a uma época já antiga e não testemunhada pelo autor.

Mas Sjón é muito mais do que um romancista. Cantor, poeta, compositor, guionista, o autor colaborou com Bjork e é um apaixonado por David Bowie, músico que o levou, ainda muito novo, a aprender a língua inglesa. Talvez a presença do autor na mais recente edição do LeV-Literatura em Viagem tenha despertado a atenção dos leitores, não só para A Raposa Azul, mas também para outras obras ainda não traduzidas para português.

A Comunidade Cultura e Arte conversou com o escritor islandês, em Matosinhos, precisamente antes da sua participação nesse festival.

A Raposa Azul foi publicada, na Islândia, em 2003. Quinze anos depois estamos a falar do livro em Portugal. Quão importante é A Raposa Azul na sua carreira literária?
É muito provavelmente o livro mais importante porque foi um avanço decisivo na Islândia. Foi o meu primeiro romance a ser acolhido, na Islândia, pelo público. Alcançou leitores que eu ainda não tinha alcançado e teve também boas críticas. Em 2005 recebeu o Nordic Council Literary Prize, que é o prémio mais importante dos países nórdicos. Em seguimento desse prémio, o livro começou a ser publicado pelo mundo inteiro [2010, em Portugal]. Penso que foi traduzido para 35 línguas, e continua. Daqui a três semanas, estarei na Ucrânia porque A Raposa Azul sairá, pela primeira vez, em ucraniano.

Como escritor, foi também importante para mim no sentido de que, pela primeira vez, tive sucesso em trabalhar com material tipicamente islandês, como a História da Islândia, mais especificamente no século XIX, quando o país dava os seus primeiros passos para a independência. Foi o período dos grandes poetas nacionais que fizeram ver que havia beleza nesta natureza tão hostil.

Mencionou no livro que a raposa azul era filha de Reynard, uma personagem antropomórfica das fábulas alemães e inglesas. Quanto e de que forma está este livro ligado à história e literatura da Islândia?
Eu estava a trabalhar com um período bem definido da história da Islândia.

A raposa do Ártico é, em muitas formas, uma criatura estranha. Na Islândia, tem uma história muito particular, pois é o único local no planeta onde a raposa do Ártico vive com tal proximidade do ser humano. Temos uma história longa de batalha entre homem e raposa.

Na Islândia, a raposa já lá estava quando o homem chegou. Era o maior mamífero. Nós só temos dois tipos de mamíferos: a raposa e o rato do campo. São os únicos mamíferos nativos.

É por isso que no livro pode ser lido, por duas vezes, que “O animal  tem  de  tentar  não  se  esquecer  que  o  homem é  um  caçador”?
Sim, sim… Por estas razões é que temos tantas histórias sobre raposas. Onde há raposas há histórias sobre raposas. É um animal muito esperto e cheio de recursos. As histórias entre homem e raposa terminam, normalmente, com a raposa como vencedora.

Em A Raposa Azul é possível ver que o homem ganha, mas gosto de pensar que, no fim, a raposa dá a volta à situação.

A raposa é o espelho de Baldur? Uma raposa azul na Islândia
é chamada de “Skugga-Baldur”. Baldur Skuggason, nome do personagem, é também uma referência ao monstro islandês “Skuggabaldur”, uma criatura nascida de raposa e de gato.
No folclore islandês há uma criatura chamada “Skugga-Baldur”, que é um cruzamento entre um gato e uma raposa fêmea. É um animal metade domesticado e metade selvagem. Vive na fronteira entre a civilização e o selvagem. É vista como uma criatura muito perigosa porque se parece com um gato, mas tem a mente de uma raposa. As pessoas têm medo de “Skugga-Baldur”. No romance, eu trabalho com isto ao nomear dessa forma o personagem principal. Não gosto de analisar muito os meus livros, não gosto de fixar uma análise, mas podemos dizer que ao dar-lhe esse nome estamos a deixar implícito que mesmo que o personagem seja um padre, um ser civilizado, existe nele algo de animal selvagem.

Fridjónsson  é o oposto de Baldur?
Sim, mas os dois personagens são complexos. Apesar do padre [Baldur] ter feitos coisas horríveis, de ser um tirano, é também engraçado e tem ideias interessantes. Não há problema em gostar um pouco dele.

O Fridjónsson é um homem da poesia, de ciência, mas tem as suas fraquezas. Gosta das suas drogas, é preguiçoso. No entanto, tem um bom coração.

Nesta novela, eu quis virar as coisas do avesso. Em muita literatura, o homem da ciência é o homem maldoso, manipulador da Natureza. Neste livro acontece o oposto. Através dos estudos, Fridjónsson percebe o que se passa quando vê aquela jovem com Síndrome de Down. Ao mesmo tempo, ela é a sua salvação. Ele estava sem rumo. De repente, ele tem uma missão e pára de pensar somente nele próprio. Ele ia matar o gato, queimar a fazenda [ambos recebidos de herança], e voltar a ler poesia e consumir ópio. Sim, são opostos mas também são personagens complexos com as suas falhas.

Ovídio é mencionado duas vezes. O autor de “Metamorfoses” é também uma influência?
A ideia de metamorfose é uma das mais extraordinárias ideias que o homem já teve na sua relação com a natureza. Li os mitos gregos, pela primeira vez, quando tinha onze ou doze anos e foi este elemento de metamorfose que mais me fascinou. Não foram as batalhas dos deuses ou dos titãs, mas foram as extraordinárias histórias de metamorfoses. Gosto de manter vivo esse mecanismo literário e de escrever metamorfoses numa perspectiva contemporânea.

Em The Whispering Muse [não traduzido para português] esse diálogo com os clássicos gregos também acontece.
Sim, é uma influência muito forte porque The Whispering Muse acontece num navio norueguês, que vai trazer pasta de papel da Noruega para o Mar Negro e levar chá do Mar Negro para a Noruega. O personagem que conta a sua história ouve a história de Jasão e os Argonautas. A personagem que conta a história de Jasão e os Argonautas é um personagem dos mitos gregos chamado Caeneus. E Caeneus é um óptimo exemplo no que à metamorfose diz respeito, porque, segundo sei, ele é o único personagem que tem duas metamorfoses: Primeiro de rapariga para homem e depois de homem para pássaro. Isto é irresistível. Quando estava a escolher a personagem para contar a história dos argonautas, percebi que tinha de escolher Caeneus, pois dava-me liberdade para escrever duas metamorfoses no meu livro.

A metamorfose é uma forma de entender o Homem através da Natureza.

É um ponto de vista panteísta?
Sim, absolutamente. É desse ponto de vista panteísta que vem a famosa frase “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”

Aquilo de que mais gosto de fazer nos meus livros, e eu faço-o em A Raposa Azul, é juntar diferentes formas de pensar sobre o Homem. Em A Raposa Azul temos Fridrik Fridjónsson que leu poesia francesa. Ele traz isso para a atmosfera do livro. Ele conhece Schubert… Fridrik Fridjónsson traz cultura para este ambiente negro e cruel. Ele reconhece as duas frases de Ovídio. Ele entende-as porque sabe ler em Latim.

Isto era um facto para muitos islandeses. Quando iam a Copenhaga e voltavam para a Islândia, voltavam com a mente cheia de cultura. Por causa de uma série de circunstâncias, viviam em pequenas fazendas. Se tivessem sorte – especialmente na segunda metade do século XIX -, turistas alemães, ingleses ou franceses, talvez passassem por lá. Há histórias de turistas que conheceram agricultores, nas fazendas, que falavam latim. No meio do nada, na Islândia.

Como é que de um país com essas dificuldades saem escritores como Sjón, Laxness…?
Beneficiámos realmente com o facto de termos vindo a usar esta língua como uma língua literária desde há 800 anos ou mais. As sagas islandesas foram escritas entre o século XII e o século XIV. Ainda que não tivéssemos nada, pois a Islândia era um país muito pobre, tínhamos a escrita, tínhamos a poesia, contávamos histórias. Durante alguns séculos, esta era a única actividade cultural que era constante. Penso que ajuda um escritor contemporâneo usar uma língua que tem sido utilizada desde há séculos como expressão literária. O segredo da literatura islandesa, a razão de ainda estar viva e de aparecerem novos escritores, deve-se ao facto de a literatura islandesa nunca ter estado isolada. Nunca esteve fechada sobre ela mesma. No princípio, as sagas islandesas eram o resultado de duas culturas – a nórdica e a céltica. Os escritores tiveram forte influência de fora.

No século XVII, o maior poeta islandês assim se formou porque renovou a poesia islandesa através do barroco. No século XIX, foi o movimento romântico que trouxe novos estilos literários e novos pensamentos ao material antigo. No século XX, Halldór Laxness usou novas perspectivas sobre o material mais antigo, renovou a linguagem e deu-nos novas ferramentas literárias. É uma literatura viva em constante diálogo com o resto do mundo.

Li o livro em português; não o li na língua original, obviamente. No entanto, pareceu-me que o texto demonstra um sentido rítmico muito particular. A poesia é importante quando escreve romances ou novelas?
Talvez porque eu tenha começado como poeta, o meu cérebro está treinado para a poesia. É muito difícil fugir disso, nem tenho que o fazer. Quando escrevo, estou consciente de o quanto é possível dizer com poucas palavras. E faço uma outra coisa: Não é suficiente que o texto me pareça bom, tem de estar bom quando eu leio. Quanto estou a tentar encontrar o tom, escrevo cerca de 10 ou 15 linhas para depois as ler e ouvir aquela voz. Uma vez que consiga ouvir aquela voz, posso contar a história. Há sempre características líricas e devo dizer que as há especialmente neste livro.

A Raposa Azul acontece na época dos poetas românticos. Quando estava a preparar-me para escrever o livro, li tudo o que podia dos poetas românticos. Para dar vida a este mundo, eu sabia que tinha que ter aquela música em mim.

Os outros livros são diferentes?
Em cada livro eu tento renovar a linguagem. Quando escrevi The Whispering Muse, por exemplo, usei textos do meu bisavô, que escreveu histórias da sua viagem da Noruega até ao Mar Negro. São textos incrivelmente aborrecidos, escritos num estilo antigo. São textos “secos”, onde ele não demonstra interesse em nada excepto nele próprio.  Ele é preconceituoso em relação a quase tudo. Tentei entrar na sua mente lendo aqueles textos. Além disso eu tinha uma tradução para islandês, feita no século XIX, da Odisseia. Li isso várias vezes para captar a linguagem para o personagem que estava a contar a história dos argonautas.

Para Moonstone, que acontece em 1918, li jornais e algumas biografias. Tentei alcançar uma linguagem muito minimalista.

As personagens são complexas, mas poderão ser o oposto umas das outras? Quando li sobre Moonstone pensei se Máni Steinn Karlsson não seria o oposto de Sólma. Um é o sol e outro a lua.
Em Moonstone, Sólma pertence à classe alta na sociedade, é livre e tem oportunidades. Máni é órfão, de um “background” muito pobre e é “queer”. Ele vive nas sombras da sociedade. Eles são o oposto, mas não adversários. Neste livro, a adversária é a sociedade islandesa. É uma sociedade com muitos preconceitos.

Este livro está ligado a A Raposa Azul porque, de certa forma, descobri que era possível para mim escrever livros com uma certa agenda social ou com temas sociais.

Já lhe foi perguntado muitas vezes a influência de David Bowie e ainda sobre o facto de escrever para músicas de Bjork. Mas e o cinema? Que influência tem na sua escrita? Consegue criar imagens muito fortes…
Diria que o cinema é uma das minhas maiores paixões. Comecei a ir ao cinema porque não havia muito para fazer onde eu vivia. O cinema ensinou-me muito sobre como escrever romances. O cinema é uma influência muito forte na minha escrita.

De momento estou a trabalhar num filme com um novo realizador islandês. Vai ser o seu primeiro filme. Tenho muito gosto em escrever um guião. É uma linguagem diferente. Há muita coreografia porque precisamos de coreografar todas as mortes. Neste caso, há um grupo de turistas que fica preso num baleeiro, e os baleeiros começam a matá-los. Eu tive que ter um mapa do navio para saber onde cada um estava em cada morte, nesta história.

Somos feitos de histórias?
Sim, parece que o ser humano não consegue parar de contar histórias. É algo essencial para se manter vivo. A nossa maior técnica de sobrevivência é contar histórias. É através das histórias que se constrói o sentido do que nos rodeia e da sociedade. Hoje estamos a enfrentar o maior desafio que a espécie humana já enfrentou, que é a alteração climática. Nós estamos realmente a olhar para a possibilidade da extinção humana.

Devíamos contar a história do ser humano que tanto consegue criar coisas extraordinárias como coisas terríveis com a mesma ferramenta, que é a mente. E a única forma de contar essa história é olhar para as histórias que foram escritas e desenvolvidas ao longo do tempo.

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