Plástico – do quotidiano à decisão em desafios globais
Porque “cultura” não deve significar saber tocar piano e falar francês, mas sim ter os conhecimentos teóricos, e os práticos, mais os valores que facultem escolhas, para a realização de um mundo melhor – e este, hoje, não dispensa tecnologias como a dos plásticos.
O Museu de Leiria, e o Centro Interuniversitário de História da Ciência e Tecnologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, estão a preparar para 2019 uma exposição cuja importância cultural não imagino que possa ser ultrapassada por qualquer outra. Para a qual pedem a nossa contribuição em fotografias, informações e eventualmente em peças, a enviar neste mês e no próximo – daí o momento da presente crónica.
Refiro-me à exposição sobre a história dos plásticos. Um tipo de materiais que, de tanto os aproveitarmos no nosso quotidiano, tanto os reconhecemos como utilíssimos quanto (não sendo hoje facilmente recicláveis) os tornamos um problema ambiental global. Para cuja resposta nos confrontamos com a questão da evolução tecnológica obedecer a alguma dinâmica interna, determinando a sociedade – e restar conformar-nos – ou, inversamente, ter essa última controlo sobre aquela evolução – e devermos então preparar alguma resposta. Nem de propósito, precisamente o “triunfo da baquelite” (CIUHCT) invoca uma das mais conhecidas teses sobre essa questão teórica.
Da pluralidade dos plásticos num “país agrícola”
Os plásticos naturais constituíram produtos de luxo desde a Antiguidade, como as resinas vegetais e o âmbar respetivamente usados por egípcios e gregos. A meados do séc. XIX, porém, a vulcanização da borracha facultou o primeiro material plástico de fácil acesso e múltiplas aplicações. O que rapidamente ameaçou esgotar a respetiva fonte natural. Daí o ensaio da produção semissintética de plásticos, inicialmente por transformação de nitrocelulose. Cuja inflamabilidade, no entanto, provocou respostas como a da plastificação da caseína (proteína do leite), patenteada em 1879. Ou, em 1907, a patente do primeiro plástico sintético, a baquelite.
Entretanto, nas regiões com produção de laticínios, antes ou em paralelo a essa sintetização de um “emblema da modernidade” – como o CIUHCT bem classifica o plástico – faria sentido explorar a viabilidade económica da produção semissintética de plástico aproveitando o leite que se desnatasse. Designadamente, em galalite (caseína plastificada).
Como se fez na primeira fábrica moderna de laticínios nos Açores, a Lacticínios Loreto, Lda., fundada em 1936, com instalações construídas de raiz em 1946. Ao que pude apurar, aproveitando o conhecimento da técnica de plastificação da caseína, mediante calor e pressão, que um dos dois sócios fundadores dessa empresa, Eduardo Harding Read, obtivera nos seus estudos de laticínios em Inglaterra. Naquela fábrica se produziram, em galalite, desde botões até pentes imitando tartaruga, desde bases de copos e argolas para guardanapos até tabuleiros e peças de jogos de damas… Cuja exportação para os EUA, Argentina e Alemanha em certo período chegou a ser decisiva para a sustentabilidade económica da empresa.
É natural que a mesma tecnologia tenha sido implementada em mais regiões leiteiras do “país agrícola” (CIUHCT) que era Portugal. Abrindo um outro ramo na árvore da produção de plásticos no nosso país, antes do “triunfo da baquelite” e dos atuais derivados de petróleo. O ramo de um material plástico menos moldável dos que estes outros, mas barato, biodegradável, não-alergénico…
Da construção social das tecnologias do plástico em Portugal
O que coloca a questão do modo de escolha em tais ramificações.
Vindo então particularmente a propósito o segundo estudo de Wiebe E. Bijker em Of Bicycles, Bakelites, and Bulbs (v. diapositivos 20-29), obra que é já um clássico para a teoria da construção social da tecnologia.
Esta teoria sustenta que as tecnologias se desenvolvem não tanto por razões de aumento da eficácia dos artefactos, de diminuição dos custos de produção (teoria do determinismo tecnológico)… mas antes pelo significado que socialmente lhes é conferido, e assim o uso em que são assumidos. O caso de estudo mais célebre é o da escolha, no séc. XIX, pela bicicleta com uma roda de grande diâmetro, apesar da sua instabilidade e da disponibilidade já do modelo de duas rodas iguais e pequenas, pela projeção social e imagem viril que aquele outro modelo facultava aos utilizadores em certo contexto socioeconómico. (Os ossos partidos a que nós homens nos sujeitamos pela nossa imagem que imaginamos (!) ver nos olhos das mulheres…).
Segundo Bijker, a construção social de uma tecnologia ocorre no seio de alguma estrutura tecnológica, a qual condiciona as inter-relações nos grupos sociais relevantes nessa construção. Estrutura composta – mediante o grupo social dos técnicos diretamente envolvidos – pelo conjunto de objetivos da produção, os problemas cruciais, as estratégias de resolução destes, os requisitos para quaisquer soluções, as teorias disponíveis, o conhecimento tácito (prático) dos agentes, os procedimentos de teste, e os métodos e critérios de design técnico. Mediante os grupos sociais que recebem e encomendam o produto – composta pelas práticas da respetiva utilização, e pelo reconhecimento das funções assim realizáveis. E composta ainda por critérios técnicos sobre o que é próprio de um determinado artefacto – desde as rodas de uma bicicleta, à moldabilidade do plástico que constitui esses utensílios do dito material que o leitor tem aí à sua mão. Critérios que todavia, segundo esta teoria, se vão estabelecendo com a produção e uso generalizados desses tipos de artefactos.
Em relação à ramificação hoje entre diversos tipos de plástico, desde logo não quereremos regressar ao ramo dos naturais (resinas, etc.), o que diminuiria os nossos recursos quotidianos a um nível dificilmente imaginável. Mas, se há pouco mais de um século a inflamabilidade da nitrocelulose foi um problema crucial a resolver, e a sua negação um requisito da solução, na estrutura tecnológica atual dos plásticos temos de considerar nesses parâmetros, além dos custos da reciclagem, a contaminação dos oceanos. E assim desde a nossa cadeia alimentar… até à construção de nós próprios enquanto seres “naturais” – isto é, ao lidarmos com o mundo e connosco nele, quereremos ainda usar a palavra “natureza”? Se sim, com que significado?
Pela minha parte, tendo a duvidar de um grande controlo social sobre a evolução atual desta tecnologia. Talvez por alguma inclinação pessoal pessimista… mas também pelo tamanho do sistema técnico em que ela se integra – segundo a abordagem de Thomas P. Hughes aos “Large Technical Systems”, a que aqui regressarei noutra oportunidade.
Mas, e até também para melhor aferir se e quão essa estimativa será legítima, resta-me programar um salto até Leiria no próximo ano. Para ver o que entretanto tivermos enviado para o Museu dessa cidade mais o que aí tiver sido recolhido, e como Maria Elvira Callapez e os seus colaboradores terão tratado esse material, sobre o modo como terá ocorrido “o triunfo da baquelite”.
Esse porventura será também o modo como, hoje, poderemos intervir na ramificação que se nos abre na produção de materiais plásticos. Bem como em quaisquer outras ramificações tecnológicas.