Sumol Summer Fest: um género consagrado, mais uma vez
A vida são dois dias e, num caso concreto, o Sumol Summer Fest também. Na Ericeira, como na vida, esperávamos convictamente por um último dia substancialmente mais equilibrado que o primeiro. Quanto à vida, ainda não sabemos. Quem, por outro lado, se apresentou ao serviço ontem no Palco Sumol, soube capitalizar a ânsia de quem procurava esquecer as coisas menos boas do dia anterior (uma lista que contava com a exibição de French Montana à cabeça).
Como tal, este rescaldo a frio deve começar com o respectivo ato de contrição. Levados pela pressa dos dias e pelo consumo voraz de novos artistas, álbuns e sonoridades, não poucas vezes desconsideramos projetos musicais que somos incapazes de enquadrar na nossa visão de género. Eles podem até nem ser melhores que os nossos artistas de eleição, o que não justifica que os cataloguemos como piores em qualquer conversa de esquina, sem possuir qualquer conhecimento de causa: para tal, é preferível adotar a postura de toda uma indústria e imprensa musicais e pura e simplesmente ignorá-los.
É fácil dizer que não se gosta de Piruka. A personagem que criou não é das mais afáveis, as narrativas que distribui são muitas vezes pouco inovadoras e até repetitivas, e o apelo manifesto a um público adolescente afasta subliminarmente quem se encontre acima dessa faixa etária. Quando ouvimos e até nos identificamos minimamente, custa-nos duplamente assumi-lo: para além de já não poder ser apresentado como o “nosso artista secreto” e, por isso, uma descoberta da nossa responsabilidade, declarar o seu mérito seria colocar as nossas exigências à sua altura.
O ódio de estimação não é novo, mas hoje, ainda assim, é bem mais difícil ignorar a relevância e o sucesso que este vem acumulando ano após ano. Quem veio ao Sumol Summer Fest à espera de ver o jovem fenómeno português falhar ao vivo, não podia ter saído mais desiludido: mas a adivinhar pelos urros, cânticos e coros a capella de um público em ebulição, a maioria sabia bem o que esperar. Para lá de uma entrega em palco sem precedentes, o jovem rapper da Madorna brilhou em frente a uma plateia altamente fidelizada, conhecedora de cada sílaba proferida. Com a sua entourage habitual (Vate MC, Timor e Savage) e subindo a palco depois de alguns minutos de altíssimo nível a cargo do DJ Nel’Assasin, o artista na casa dos 20 mostrou-se capaz de sobreviver com mestria a um concerto de quase uma hora sem playback: uma prática muito pouco habitual no universo rap e, por isso, uma atitude corajosa que não passou despercebida.
Quando “Não Se Passa Nada” rebentou no sistema de som e o histerismo generalizado tomou conta de um espaço curto para tantos fãs de primeira hora, Piruka já não tinha nada a provar: não só o refrão mas toda a faixa foi cantada em uníssono entre artista e público. Quem não entoava o refrão, só pôde deixar-se espantar pelo efeito de tão levianas palavras em milhares de pessoas.
Houve tempo para quase tudo. Antes de lançar “Os Meus Putos”, fez descer o público para fazer subir a temperatura: júbilo generalizado. “Parece que ‘tamos na América, família”, mais devagar: a única semelhança com o rap feito no continente americano prende-se com a taxa de aceitação – ao vivo e em estúdio – que Piruka parece saber capitalizar como ninguém. Para nós, a segunda já estava devidamente comprovada; a primeira foi uma surpresa nada antecipada. De seguida, serviu-se dose dupla de bife bem passado. “Só Vim Dizer Yau” e “Não Faz Isso” não esmoreceram um clima já de si combativo, devidamente alternado entre faixas de protesto e baladas emocionais. A parte mais dura de um concerto repleto de pontos altos chegava ao fim – com gritos de “f*ck Holly Hood!” no público – por via de um apelo inesperado com origem no palco: “Vamos pôr estes beefs e rivalidades de parte, família, e pedir um enorme aplauso para o hip-hop nacional!”. Desejo concedido e mais três pontos para quem parecia estar a jogar em casa.
“Salto Alto” aqueceu o clima e, depois do pedido “mulheres, braços no ar”, até a manicure mais experimentada se deixaria emocionar pela elevada quantidade de unhas de gel erguidas em riste. O inédito que se seguiu – faixa integrante do próximo álbum, ainda sem data de lançamento prevista – teve direito a freestyle sem instrumental. Pela mestria da construção frásica e acutilância das rimas, sentiu-se a chapada de luva branca em quem não julgava Piruka capaz de tão consistente sucessão de versos. O suor ia-se acumulando por todo o corpo, fruto de uma prestação sem falhas, sem partidas em falso e com muita matéria leccionada: e há tanto rapper a precisar de tirar notas.
Mas o MC da linha de Cascais não podia ir embora e levar a coroa sem antes dar de barato mais uma pérola: o crowdsinging mais intenso do Sumol surgiu com “Se Eu Não Acordar Amanhã”. A assimilação ao vivo de uma dinâmica dificilmente captável em formato digital convenceu os mais cépticos. Grão a grão, há artistas que nos mostram que nem tudo está no papo. Fruto de entrega, compromisso e dedicação, há vertentes onde ninguém em Portugal supera o artista que ontem vimos: dinâmica ao vivo e visualizações no Youtube. Não é tudo, mas é um caminho auspicioso, trilhado ao detalhe.
Do Sul de Chicago, um tanto atrasado e depois de algumas contrariedades técnicas, chegou-nos Vic Mensa – outrora protegido de Kanye West e um dos nomes a ter em conta no panorama do rap mundial. O repertório ajudará a sustentar a certeza de estarmos perante um tipo de rapper distinto: um que se faz acompanhar de guitarrista em palco, quase integralmente tatuado e ainda assim com um guarda-roupa digno de qualquer rockstar que se preze. E num concerto um tanto inundado por falhas (da organização ou do staff do artista, quem saberá) – algumas delas a exasperar quem tentava conhecer ao vivo o trabalho de Vic – foi o próprio artista quem saiu por cima: até quando subiu à estrutura metálica e apontou ao vazio, somente amparado pelos braços de dezenas de fãs.
“Didn’t I” parecia bem presente na memória de todos e “I Don’t” foi o pretexto para o moshpit mais estratégico do festival: o próprio Vic pediu que se abrisse um vácuo que dividisse a plateia, prontamente preenchido assim que se escutou o estrondoso refrão. Depois de novo silêncio forçado, houve espaço para expressar o “privilégio que é estrear-me em Portugal e estar aqui com vocês”, apelos claros à paz e props com direito a auto-aplauso para a multiculturalidade observável do palco. O público, sedento de reconhecimento, bem vinha entoando o refrão de “7 Nation Army” com a letra… um bocadinho diferente; bastou o guitarrista acompanhar e vimos um rapper com alma rock a cantar White Stripes num falsete arriscado mas bem arrancado.
Foi natural e até expectável a boa aceitação que tiveram dois dos hits definidores de toda uma geração, ambos da autoria do nativo de Chicago: “Liquor Locker” e “Rollin’ Like a Stoner” pareceram faixas criadas à medida de uma plateia cheia de pressa em viver, ainda que não discreta na hora de ver brilhar estrelas destes calibre. Um concerto de qualidade, mesmo estando longe da perfeição e sendo um tanto curto para uma estreia divulgada – e aguardada – com tanta expectativa.
A magia veio depois e novamente, não era nada que quase todos já não antecipassem. Joey Bada$$ já não é só um nome a ter em conta ou uma futura promessa do hip-hop mundial: é um game-changer consagrado, uma aposta ganha ou, se quisermos ser tão premonitórios como as letras que compõe, um novo profeta. Munido com um jogo de luzes só seu, Joey trouxe algo que o Sumol Summer Fest ainda não tinha ouvido: um liricista puro e duro. À excepção de uma ou outra faixa, todas as músicas escolhidas mereceram o reconhecimento da plateia logo nos primeiros segundos: o que para o rapper pareceu um passeio – tal a habilidade com que ora arrefecia a plateia para passar mensagens concretas, ora a deixava perto da ebulição com bangers infalíveis – a Ericeira tomou como peregrinação.
“TEMPTATION”, “LAND OF THE FREE”, “Paper Trail$” ou “DEVASTATED” fizeram parte de um set robusto e estrategicamente montado, em grande parte povoado por faixas de ALL-AMERIKKKAN BADA$$. No meio de todo o aparato, nem a rouquidão bem audível foi capaz de evitar o momento de luto igualmente projetado: amigo íntimo de XXXTentacion, Joey não se coibiu de prestar homenagem a um dos nomes mais promissores do garage trap, baleado mortalmente há pouco mais de uma semana. “Follow Me” soou nas colunas pelo segundo dia consecutivo, levando ao regresso apressado de quem já abandonava a zona frontal ao palco.
O último dia do festival revelou-se mais consistente e diverso, apesar de nos parecer que um certame deste relevo já merece um terceiroS dia: como e para quando, não sabemos. Esta é, para já, uma aposta ganha depois de ambos os dias terem esgotado.
Felizmente, há mais hip-hop para lá do Sumol.