As Três Marias: o antes, o depois e o impacto das ‘Novas Cartas Portuguesas’
Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno. Três Marias, uma obra. As “Novas Cartas Portuguesas” marcaram o declínio do Estado Novo em Portugal, tendo sido lançadas em 1972. A revelação de muitas das situações discriminatórias e lesivas para a mulher em Portugal deram um passo inaugural numa caminhada que tem sido feita até aos dias de hoje, naquilo que é a igualdade de género nas diversas circunstâncias sociais, culturais, laborais e económicas. Desta feita, são três rostos providenciais na construção de um estado crescentemente equitativo, no qual os desafios vão surgindo quotidianamente, em paralelo com a evolução da sociedade na globalidade.
O antes
Maria Teresa de Mascarenhas Horta Barros foi a primeira a nascer do trio de autoras da célebre obra feminista, no dia 20 de maio de 1937, na capital portuguesa, Lisboa. De origens aristocráticas (a Marquesa de Alorna, poeta portuguesa, faz parte dos seus antepassados maternais) e filha do quinto bastonário da Ordem dos Médicos, Jorge da Silva Horta, passou pelo Liceu D. Filipa de Lencastre, chegando à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde cursou jornalismo. Nesta fase, envolveu-se numa atividade intensa em torno do ABC Cine-Clube, que tanto mobilizou os cinéfilos, e no grupo Poesia 61, uma revista que originou um movimento, no qual Teresa Horta teve um cunho muito próprio, com o poema “Tatuagem”. Este movimento procurava encontrar novos caminhos da criação poética, descobrindo-os na experiência e experimentação lírica, que incluía o próprio erotismo. Começou a exercer jornalismo pouco depois, no “A Capital”, dedicando-se a entrevistas culturais, especialmente na área da literatura. A expressão em liberdade era bastante condicionada, especialmente com os mecanismos de censura e com a forte supervisão da PIDE, pelo que se sentia, não só ela, mas todos aqueles que a rodeavam no seu trabalho, constrangida. Escreveu também “Minha Senhora de Mim” (1971), uma poesia reivindicativa, invocando para si e para as mulheres a liberdade de expressão do que sentem, do que vivem e do que desejam.
Maria de Fátima de Bivar Velho da Costa nasceu a 26 de junho de 1938, na cidade de Lisboa. A sua infância cruzou a vivência no quartel militar com a educação num colégio de freiras, no Convento das Escravas do Sagrado Coração de Jesus, onde começou a escrever textos que eram elogiados pelas próprias irmãs da instituição. Desencantou-se com os números, encantou-se por Camões, Régio e demais poetas nacionais e internacionais, e licenciou-se em Filologia Germânica pela Universidade de Lisboa e fez parte do Instituto de Investigação Industrial, aproveitando a sua maior influência do inglês que do francês, resultado da educação primária e secundária que usufruiu. Cursou, também, na Sociedade Portuguesa de Neurologia e Psiquiatria, Grupo-Análise. Antes de chegar aos anos 70, já tinha escrito um romance, de seu título “Maina Mendes”. Já neste trabalho, a temática assumida desconstrói a dimensão feminina silenciada do mundo masculino, procurando abrir e revelar aquilo que é recusado, não só pelo Estado, mas pelo consciente e inconsciente dos seus membros. Um registo que já exibia o seu inconformismo perante os preceitos narrativos e sociais, que carateriza as suas obras e ensaios académicos. Prosseguiu este mesmo registo em “Ensino Primário e Ideologia” (1972) e “Português, Trabalhador, Doente Mental” (1976), onde assinou como Maria de Fátima Bivar.
Já Maria Isabel Barreno de Faria Martins nasceu a 10 de julho de 1939, também em Lisboa. Os seus precoces hábitos de leitura, complementados pela poesia, seriam fomentados no Colégio do Sagrado Coração de Maria de Lisboa. Daqui, saiu diretamente para a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, licenciando-se em Ciências Histórico-Filosóficas. Após licenciar-se, passou a trabalhar no Instituto de Investigação Industrial. Em 1970, escreveu “A Morte da Mãe”, que seria publicado nove anos depois, dando o mote para a composição das Novas Cartas. Discursou, assim, sobre o percurso da mulher na sociedade pela história, numa revisão de pendor sociológico e filosófico. Antes, já havia escrito “Adaptação do Trabalhador de Origem Rural ao Meio Industrial Urbano” (1966), sido co-autora de “A Condição da Mulher Portuguesa” (1968, trabalho dirigido por Urbano Tavares Rodrigues) e escrito as ficções “De noite as Árvores são Negras” (1968) e “Os Outros Legítimos Superiores” (1970, generalizando-se as mulheres, ou “Marias”, e o seu silêncio).
As três conhecer-se-iam nas diferentes organizações que compunham o movimento feminista português, contrárias às instituições que existiam no seio da estrutura salazarista, que assumiam a condição feminina amorfa. Teresa Horta conheceria Isabel Barreno através de uma entrevista que fez, enquanto coordenadora do suplemento literário do jornal “A Capital”, no qual já colaborava, à então autora do ensaio. As duas viriam a fundar o Movimento de Libertação das Mulheres, ao lado de Madalena Barbosa, no ano de 1972. Por sua vez, Isabel Barreno trabalhava com Velho da Costa no Instituto de Investigação Industrial, que as aproximaram na vida e no pensamento, por mais que a afinidade literária não fosse a maior. A condição subserviente da mulher, como uma sombra do seu marido, foi identificada como o motor de arranque de um grupo que se propunha a despertá-la para que se tornasse autónoma, firme, independente.
A obra
Assim, em abril de 1972, a partir dos Estúdios Cor, onde estava a poeta Natália Correia, chega “Novas Cartas Portuguesas” às mãos daqueles que assumiam interesse pela subversão do regime, para além dos que pensavam criticamente a sociedade nacional e internacional. Os tradicionalismos foram desconstruídos e criticados, essencialmente no que respeita aos valores feminismos da época, essencialmente passivos e domésticos. O registo provocatório e incendiário levou as três autoras a depor em tribunal, mesmo com a abertura do período de governação de Marcelo Caetano, respondendo pelas sanções que lhes seriam imputadas (nas quais se discutia a própria prisão) e que só seriam levantadas com o alvor do 25 de abril. A obra foi censurada três dias após o seu lançamento, embora a comunicação social ampliasse o mediatismo deste trabalho.
Seria neste contexto que se tornariam conhecidas por “as Três Marias”, não só em Portugal, mas também fora, onde a expressão intitulou as edições em inglês da obra, umas das muitas que seriam lançadas fora de portas. O título original da obra inspira-se na obra francesa “Lettres Portugaises”, da autoria de Claude Barbin, que, anonimamente, lança as cartas escritas por Mariana Alcoforado, freira portuguesa, após ser deixada pelo seu amado, o cavaleiro francês Noel Bouton, no Convento da Conceição, em Beja. Isto no contexto da Guerra da Restauração, que confrontava Portugal e Espanha no século XVII, numa zona fronteiriça que é a que rodeia e que se posiciona em Beja. A obra chegou a Portugal em 1969, traduzida por Eugénio de Andrade, dando o mote para que, a maio de 1971, se iniciasse a criação da obra das autoras portuguesas. O enredo é adaptado, embora fraturado e disperso pela apreciação crítica e vincada do trio de autoras.
A importância deste trabalho fez-se sentir na revelação de situações discriminatórias associadas à repressão do regime, ao patriarcado com base católica e à condição da mulher, tanto no seu papel matrimonial, como nos constrangimentos impostos por via da natalidade, que se estendiam à sua sexualidade. A violência doméstica, a subjugação a uma moralidade patriarcal e burguesa, os casos que se sucediam de incesto, de aborto, de pobreza e de censura adquiriram uma voz, um discurso direto que, por mais fragmentado e anonimado, se ampliou na sua repercussão. Para além destas temáticas, também se estende à análise da Guerra Colonial, mergulhada em injustiças, geradoras de revolta, e ao papel dos portugueses emigrantes, refugiados e exilados, para além dos futuros Retornados e daqueles que eram colonialistas.
O livro foi pensado e a redação iniciada em 1971, em que se começaram a reunir ensaios, correspondência, poemas e outros excertos textuais para a composição de duas linhas temporais distintas: a das Marias, e outra, ficcionada, que resulta das Marianas (a protagonista, o mote para desmontar a condição de submissa e silenciada na subserviência do seu amor conjugal), Marias, Anas e Cavaleiros criadas pelas autoras, adaptadas da obra homónima. As personagens femininas deixaram de ser sombras, passando a ter as suas próprias identidades assumidas, revelando o mistério que assenta na individualidade e que carateriza melhor a nacionalidade. O registo vai deambulando entre o português e o francês, de março a outubro de 1971, mas é construído e ordenado sem um norte totalmente definido, organizando-se em vários fragmentos. Estes fragmentos não possuem uma identificação diferenciada de cada autora, desestabilizando a necessidade de controlar as autoridades literárias de então, trabalho esse que vários investigadores procuram realizar nos tempos que correm. No entanto, o epíteto de “tratado” foi adquirido e consolidado com o passar dos meses e dos anos, naquilo que é um exercício de reflexão e de apresentação das condições iníquas da sociedade portuguesa, em especial tendo em conta o género dos seus indivíduos.
O processo que encaminhou a obra para a justiça contou com a defesa dos advogados Duarte Vidal, Francisco Sousa Tavares e José Armando da Silva Ferreira. Foi este o corpo de legistas que obstou às acusações de “imorais” e “pornográficos” direcionadas aos textos, no qual se retratavam mulheres livres e autónomas, que questionavam o seu papel na sociedade, para além de aceder ao que de novo se pensava e se propunha sobre esta e o papel da religião. A procura desta igualdade, repleta, à data, de inúmeros paradoxos, muitos deles perpetuados pelo regime, acabou por não ser refutada pela suspensão do processo, que conheceu uma repercussão à escala internacional. Repercussão essa que, para além de mover órgãos de comunicação social, fez com que movimentos feministas se insurgissem nas embaixadas portuguesas de cidades de nomeada, como Paris, Nova Iorque ou Londres. Nomes como Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre ou Marguerite Duras estavam a par do que se sucedia com as “Três Marias”, direcionando o seu apoio a elas.
Esta igualdade permaneceu, assim, como uma causa que perdura até à atualidade, que fez com que as mulheres se emancipassem no seu discurso e ação, tornando-se livres na discussão dos mecanismos do seu corpo, para além das fontes de prazer e de sofrimento da sua vida. A voz da mulher na sociedade portuguesa é, assim, repensada e reapresentada, o que causa um grande choque numa população ainda muito vinculada aos preceitos católicos e tradicionais, que Salazar soube perpetuar no seu íntimo. No pós-25 de abril, a Constituição seria revista, o Código Civil reformulado, as demais instâncias da Justiça readaptadas, e todas as mulheres cidadãs plenas nos seus direitos e deveres, em pé de igualdade com os homens.
O depois
Após o percurso que as uniu, as três tomaram caminhos diferentes, embora aproximadas nas causas e nas ideias. Maria Teresa Horta permaneceu como um vulto importante e dedicado no quotidiano social e político, redigindo em vários jornais relevantes, como “Diário de Lisboa”, “A Capital”, “O Século” e “Diário de Notícias”, e tendo feito parte do Partido Comunista Português (PCP), o qual deixou após o desmoronamento da União Soviética, em 1989. Em 1978, tornou-se criadora e chefe de redação da revista “Mulheres”, um projeto que dava continuidade à causa feminista em Portugal. Tornar-se-ia Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique em 2004 e contemplada com o Prémio D. Dinis, pela sua obra literária, marcada pela poesia e pela ficção.
No entanto, rejeitou recebê-lo das mãos do então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, alegando que este estava a destruir aquilo que era a herança a potenciar do 25 de abril. Lamentou a transformação daquilo que eram os planos gizados para o pós-25 de abril perante a estruturação que se verifica nos dias de hoje, num sonho que, por mais prometido, ainda não chegou à sua concretização. A autora denuncia também o facto da população se intimidar na possibilidade de dar a sua opinião, com o receio de represálias que ponham em risco a sua estabilidade pessoal e profissional. Ainda hoje assinala o que foi legado pelas famílias mais tradicionalistas, de valores conservadores vincados, que aprofundam a discriminação e os preconceitos que ainda se sentem em relação à mulher, de Norte a Sul do país, tanto no litoral como no interior. Assim, a importância da causa feminista prossegue como uma bandeira a hastear no presente e no futuro do país.
Depois de deixar a presidência da Associação Portuguesa de Escritores e do P.E.N. Clube Português (associação de autores em prol da liberdade de expressão e dos valores humanistas, que fundou com Sophia de Mello Breyner, entre outros nomes); Velho da Costa partiu para Inglaterra, onde se tornou leitora do Departamento de Português e Brasileiro no King’s College, universidade londrina, de 1980 a 1987. Em simultâneo, assumiu funções como adjunta do Secretário de Estado da Cultura, em 1979, no governo de Maria de Lourdes Pintassilgo, assim como adida cultural em Cabo Verde, no final dos anos 80. Entretanto, fez parte da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, projeto que se estendeu de 1986 a 2002. Atualmente, colabora com o Instituto Camões, na promoção do idioma português, para além de ter lecionado no Ensino Secundário.
Para lá do seu trabalho institucional, não deixou de participar na criação artística, redigindo argumentos para cineastas, como João César Monteiro, Margarida Gil e Alberto Seixas Santos. Neste percurso, redigiu “Casas Pardas” (1977, em que três mulheres assumem o protagonismo no final da década de 60, no seu quotidiano, derivando da sua ruralidade até à pretensa burguesia), “Missa in Albis” (1988, um poema em branco numa memória que ainda pede para ser construída) e “Irene e o Contrato Social” (2000, inspirado na poesia e no trabalho de Irene Lisboa). Nos seus romances, refere o que foi feito e o que falta ser feito pela mulher a favor da igualdade, para além de caraterizar vários tipos de mulheres portuguesas, através de variações sociológicas e fonéticas, criando várias identidades tendo em conta os períodos de tempo em que escreve, sem deixar de questionar o poder, as suas relações e manifestações. Por via deste trabalho, receberia o Prémio Vergílio Ferreira, em 1997, e o Prémio Camões no ano de 2000. Seria, de igual forma, galardoada com os graus de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique de Portugal (2003) e da Ordem da Liberdade (2011). Ainda não publicados estão os seus diários, que reporta ao pré e pós-25 de abril, para além de toda a sua formação pessoal e social.
Por sua vez, Maria Isabel Barreno seria nomeada Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique no ano de 2004, já após ter também exercido jornalismo e de ser conselheira na embaixada portuguesa de Paris. Também ela não deixou de escrever, mantendo uma produção narrativa bastante profícua, que lhe valeu o Prémio Fernando Namora (1991) e o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco (1993, com a coletânea de contos “Os Sensos Incomuns”). A 3 de setembro de 2016, viria a falecer aos 78 anos de idade. A sua preocupação pelo ser humano estendeu-se nos ensaios que não deixou de redigir, destacando-se “O Falso Neutro: Um Estudo sobre a Discriminação Sexual no Ensino” (1985).
Foi o percurso que pautou a sua literatura, procurando tomar conhecimento da realidade nacional, tanto no dia-a-dia psicológico e sociológico como na dimensão fantástica, filosófica e ficcionada dos romances. A desconstrução que empreende na sua literatura é herdada da geração em que emerge, nos anos 60 do século XX, para além do próprio exercício de análise das relações que caraterizam a sociedade. Outros dos romances acolhem a estrutura clássica do romance e exploram as suas heranças familiares, como “O Chão Salgado” (1992) e “O Senhor das Ilhas” (1994), na transformação de uma colónia que era a Ilha do Sal, em Cabo Verde, numa ilha de proveitos económicos. Em 1998, publicou, sob o pseudónimo de Ricardo Caeiro, “A Ponte”, procurando descobrir se alguém identificava a sua autoria, finalizando a sua carreira com “Vozes do Vento” (2009), onde prolongou o enredo cabo-verdiano, alongando-se nas suas contradições e disfunções.
Das “Novas Cartas Portuguesas”, para além dos trabalhos literários das “Três Marias” provém uma herança que deve ser problematizada e que não se deve deixar adormecer. Como é a sociedade de hoje, em relação à de há 45 anos? Como poderá ser a sociedade daqui a 45 anos? De que forma as mulheres podem emergir, sem a obrigação de quotas, sem a exigência de outras métricas, de forma considerável e consistente, nos cargos laborais e representativos de alta responsabilidade? O que poderá ser feito para que, de forma sustentada, se invertam as considerações e as predisposições perante uma maior presença feminina nas decisões da sociedade? Estas questões colocam-se de forma transversal a todo e qualquer tipo de discriminação indiciado e comprovado na atualidade, entre mundos e fundos, entre meios e caminhos que se percorrem, por políticos e por todos aqueles que se assumem como cidadãos, indiferentemente de raça, religião, ideologia política e… género. O legado das três, tanto em conjunto, como individualmente, encaminha, aos dias de hoje e de amanhã, um lastro a homenagear, a escrutinar, a entender, a sentir. Um lastro que, sem mais reservas, representam a liberdade em afirmar a igualdade.