A arte construtivista de Vladimir Tatlin
Da emergência e da irreverência artística soviética, entre Alexander Rodchenko, Kazimir Malevich e outros mais, surge o vulto de Vladimir Tatlin, pintor e arquiteto, construtivista e vanguardista. Nascido na Ucrânia, cresceu no auge do regime soviético, apesar de procurar um tubo de escape artístico, que conquistasse os extremos que não eram avistados através do olhar unidirecional que o socialismo detinha. Anunciava-se, assim, o decurso de uma veia artística que se transpunha aos cânones tão enunciados nos livros, mas que se tornavam obsoletos ao olhar crítico e conceptual dos que chegavam ao século XX.
Vladimir Yevgraphovich Tatlin nasceu a 16 de dezembro de 1885 em Kharkiv, Ucrânia, filho de um engenheiro e de uma poeta. Após trabalhar como mercador, e viajado por várias regiões do Mediterrâneo, debruçou-se pela sua veia artística e enveredou pela Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscovo, capital russa, no ano de 1902, até 1904, ano em que iniciou uma formação de cinco anos na Escola de Arte de Penza, tendo voltado a Moscovo por mais um ano letivo. Cruzou os estudos com os concertos que ia fazendo com a sua bandura, instrumento de cordas ucraniano.
Inicialmente um pintor à boa maneira iconográfica e pictórica, numa inspiração folclórica e religiosa, mas também naquilo que o Impressionismo trouxe, desdobrou-se nas potencialidades materiais da arte, apontando, como fim máximo, o discurso revolucionário bolchevique. Esta consciência social foi-lhe despertada no período em que estudou em Penza, na forma de preocupações políticas e sociais que necessitavam de uma resposta capaz através da arte. As amizades com Natalia Goncharova e Mikhail Larionov, pintor raionista – que bebia em muito do futurismo russo, mas que se diferenciava na forma como apresentava o objeto fragmentado com raios refletidos – conduziram uma inspiração vanguardista mais solidificada.
As suas viagens ao estrangeiro culminaram com a descoberta do trabalho de Pablo Picasso, cubista e reconstruído numa plenitude de formas e construções tridimensionais, em 1913, incluindo uma visita ao seu estúdio. Foi uma fase em que desenvolveu os seus alívios artísticos, em que se limitou, sem quaisquer preocupações ou significados subjacentes, a criar. No entanto, a contrapor a estes, surgem os “contra-alívios”, em que a importância dos materiais e da relevância do espaço ocupado pelo objeto se denunciam como mais proeminentes. Entre as formas diferentes de se fazer arte, surgiam interações e justaposições que fazem sobressair o abstrato do seu entendimento. São, em grande parte, as esculturas que prevalecem, para além dos espaços circundantes, que entram em ação no confronto gerador de tensões e de dinamismos que transcendem as habituais duas dimensões.
No entanto, a sua fama só se viria a pronunciar após desenvolver um monumento à Terceira Internacional, conforme o designou, também conhecido por “Torre de Tatlin” (1919-20). Inspirada na Torre Eiffel, de Paris, foi erigida em homenagem à Revolução Bolchevique, suportando-se numa estrutura em espiral de ferro, no vidro e no aço, que se sustenta em três blocos cobertos por janelas de vidro, rotativas em várias velocidades (o cubo anualmente, a pirâmide mensalmente e o cilindro diariamente). Porém, como projeto muito dispendioso e complexo, acabou por não ser construído, embora o seu modelo tenha sido apresentado e disposto em Moscovo, em 1920. Um modelo que bebia de uma vontade crescente de cruzar a arte com a tecnologia, num espírito vanguardista que abrangia, de igual forma, a criação de utopias.
Este grande projeto anunciou a sua caminhada pela arte construtivista, da qual se assume que é um dos progenitores. Corrente fomentada no pós-revolução soviética, a premissa de uma arte autónoma foi negada, defendendo-se uma arte construída, dedicada a propósitos sociais. Tudo aquilo que se criava destinava-se a realizações práticas, funcionais, noções que seriam partilhadas com alguns dos artistas que estariam ligados a movimentos vanguardistas, como a Bauhaus ou a De Stijl, e aos seus precursores.
A vontade de colocar os talentos da arte ao serviço da produção industrial e à atividade económica trazem as construções que Tatlin idealizou, muitas delas de madeira e de metal, colocando questões sobre a tradição da arte. Porém, o construtivismo seria pronunciado de várias formas, pois entrou em desacordo com várias das suas ideias, ao contrário de Alexander Rodchenko ou de Varvara Stepanova, também estes artistas. A importância de posicionar a arte em tudo aquilo onde a vida se pronuncia, convidando a engenharia e a tecnologia para a sua expressão, torna-se, desta feita, o discurso direto de Tatlin no seu modo de conceber e de realizar a sua própria arte.
Os materiais seriam usados tendo em conta as próprias virtudes de cada artista, explorando os seus usos e seguindo a sua “verdade”, a identidade que emana de cada suporte. As lições que se aprendiam no estúdio do artista passavam para o mundo, de uma forma que esses mesmos materiais poderiam captar, interpretar e representar. Essa materialidade (faktura) ressoa num caráter crescentemente utilitarista, que impele a alteração social e que procura abranger os padrões estéticos e funcionais que a revolução bolchevique acentua, à procura do ideal da sociedade comunista. Também por isso colaborou no Departamento de Cultura Material, entre 1923 e 1925, desenhando vestuário para os trabalhadores, suficientemente confortáveis e sustentáveis para o seu bem-estar e maior rentabilidade, adaptáveis às mudanças sazonais. De forma a corresponder às necessidades de adaptar a dimensão material à vida contemporânea, desenhou também outras peças, como mobiliário.
Entretanto, criou uma relação de animosidade com Kazimir Malevich, artista em muito responsável pelo surgimento do suprematismo, limitado a algumas formas geométricas e a um padrão de cores restrito, no sentido de exprimir o sentimento puro da arte. Esta discordância levou a que Malevich se mudasse para Vitebsk, na atual Bielorrússia, onde viria a fundar o grupo UNOVIS (campeões da nova arte. Seria, também, o mentor do arquiteto ucraniano Joseph Karkis, num período em que o ensino o interessou. Lecionou, assim, na Svomas de Moscovo (escolas artísticas criadas no pós-revolução, destinadas a divulgar as novas consciências do fazer arte), onde encabeçou o Estúdio de Volume, Material e Construção, para além de ser um dos responsáveis pela criação do Museu de Cultura Artística em Petrogrado. Aqui, viria a encenar e a recitar um poema do vanguardista Velimir Khlebnikov, “Zangezi”, no ano de 1923, evento para o qual realizou vários planos geométricos, dispostos a cobrir toda a dimensão vanguardista que apelava aos sentidos, especialmente à audição e à visão, numa experiência completa.
Vladimir faleceria a 31 de maio de 1953, aos 67 anos, sendo enterrado no cemitério Novodevichy, em Moscovo. Não deixou de trabalhar até à sua morte, elaborando várias formas mecanizadas que apelavam ao desejo de ver o homem voar, projeto que exigiu uma investigação aprofundada nas áreas da biologia e da mecânica. No entanto, a glória construtivista perdeu relevância logo nos anos 30, quando o realismo social assumiu o protagonismo, numa linha mais estalinista. Tatlin regressou à sua tradição pictórica, mais voltada para o expressionismo.
Vladimir Tatlin foi um dos principais vanguardistas que a Revolução Bolchevique trouxe na sua causa. Visionário e influente, permanece como um artista que procurou sempre mais para lá do que a mera peça indiciava, com funções sociais muito particulares e sem descartar os contextos em que era criada. A dimensão material viu a sua importância especialmente destacada, muito por conta das suas especificidades, aplicáveis aos percursos seguidos na realização artística. Por força das circunstâncias, viu-se orientado para outros caminhos que não o seu expoente artístico, um esplendor que permanece, nos dias de hoje, com um muito inspirado sabor.