A biodiversidade enquanto fim ou condicionalismo?

por Comunidade Cultura e Arte,    25 Dezembro, 2020
A biodiversidade enquanto fim ou condicionalismo?
Fotografia de John Reed / Unsplash
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O incidente na Azambuja chocou a sociedade portuguesa, principalmente pela crueldade das imagens. No entanto, criou também a oportunidade de refletir sobre a relação da sociedade com a natureza e não simplesmente da sua competência na gestão de recursos naturais em Portugal. Dizer que foi um caso extemporâneo parece ingénuo, quando o único motivo de o tema estar a ser discutido foi a publicidade que os próprios autores lhe deram.

Mais do que um ato isolado, o exemplo de um paradigma da indústria cinegética com o mundo natural.

Uma montaria, organizada na Herdade da Torre Bela por uma empresa espanhola de eventos, na Azambuja, no distrito de Lisboa, acabou com mais de quinhentos animais abatidos, na sua grande maioria veados e javalis. Desde então, muito se tem escrito e falado em Portugal sobre este incidente, ficando-se na grande maioria das vezes pela “espuma dos dias” e pelo apelo à polémica por si só, não se pensando a fundo sobre o problema.

É ingénuo pensar que é a primeira vez que algo desta dimensão acontece em Portugal. A única novidade a nível de dimensão foi o “suposto recorde” ultrapassado pelos organizadores, que não se contiveram numa partilha massiva do seu “feito” sem real noção das consequências que poderiam advir dessa avidez em se gabar. Não acontecesse essa partilha, principalmente nos moldes em que aconteceu (visualmente chocante, o que potencia logo uma reação imediata), e ninguém saberia até hoje qual o resultado numérico de mais uma montaria realizada numa Zona de Caça Turística (ZCT), que se vai repetir no futuro (por ventura com cautela nos números de abate ou na partilha nas redes sociais). A única novidade neste acontecimento foi o conhecimento geral, porque normalmente nem o Estado nem as autoridades sabem o que se passa dentro destes eventos, como foi evidente pela surpresa do ICNF, APA e Ministério do Ambiente.

Fotografia de Colin Watts / Unsplash

Impacte ambiental – um princípio de precaução ou condicionamento burocrático?

Falamos agora de biodiversidade, como poderíamos estar a falar de muitos outros atentados ao património natural do nosso país, nomeadamente os muitos incêndios que consomem as nossas florestas todos os Verões

O princípio é o mesmo, a obra, o investimento e o progresso esbarram no condicionamento burocrático de estudos de impacto ambiental ou patrimonial, mas não o impede, pois a exploração e o lucro não podem ser questionados.

A Quinta da Torre Bela, local onde se realizou esta montaria, estava a ser analisada como potencial espaço para receber uma central fotovoltaica com 775 hectares, estando em fase de consulta pública até ao final de Janeiro de 2021, antes da sua atual suspensão depois do incidente. Claro que para uma instalação desta dimensão são necessários estudos de impacte ambiental, mas executados apenas como formalidade para um fim específico. 

O impacte ambiental, colocado desta forma no panorama legal português, surge sempre no processo numa fase demasiado avançada, tornando-se para as empresas/indivíduos proponentes um verdadeiro proforma à prossecução dos seus objetivos. Como qualquer obstáculo, e depois de gastos avultados numa primeira fase de estudo e prospeção meramente económicos e de viabilidade, o grande objetivo torna-se conseguir a aprovação dos projetos a qualquer custo, tendo como derradeiro inimigo o Estudo de Impacte Ambiental (EIA), o último entrave à sua aprovação. Considerando o espaço de instalação do parque solar e a história da propriedade, percebe-se facilmente a dificuldade que um EIA sério e competente teria para ser positivo.

O problema começou então a ser resolvido, usando-se eventos turísticos (como o do último dia 17 de Dezembro) para conseguir reduzir, usando um enquadramento legal para fins desvirtuados, os entraves que existiriam à aprovação do dito estudo. Ou seja, o objeto do EIA  e da sua consulta pública quando findasse em Janeiro já não se iria reportar à realidade no terreno e, portanto, a sua aprovação administrativa será um resultado inevitável. Com menos animais selvagens registados no terreno, com menos árvores presentes (já que grande parte destas já foi cortada e vendida ainda antes do estudo), seria muito mais simples conseguir a aprovação desejada. E a biodiversidade e a sua proteção teriam sido novamente obstáculos a ultrapassar e não princípios de fundo a proteger e defender. E ninguém teria nada a dizer sobre isso.

É preciso olhar para o impacte ambiental das decisões tomadas, não no decorrer dos processos, mas sim no seu início. A única forma de garantir que os mesmos não serão adulterados ou manipulados, seja na sua fonte (nos motivos que levariam ao seu chumbo) seja no seu resultado (nos dados apresentados no próprio estudo), é exigir a sua realização diretamente na primeira fase de apresentação do próprio projeto, garantindo finalmente que em Portugal a biodiversidade é posta em primeiro lugar e o respeito pela mesma é condição obrigatória para qualquer iniciativa e não um problema para resolver depois da sua aprovação e aceitação inicial.

Afinal, aconteceu na Azambuja para construir uma central fotovoltaica, como acontece todos os anos em Portugal, na época do Verão, com incêndios a ocorrer em áreas onde se pretende construir parques eólicos, realizar explorações mineiras ou obter lenha ardida a baixo preço para centrais de biomassa que nem sequer deviam estar a utilizar esse tipo de materiais, segundo as concessões atribuídas. A lista de exemplos, de muitos tipos, podia ser muito mais longa, mas apontam todos para o mesmo facto: a consideração sobre o ambiente e os seres que dele dependem é a ultima das considerações nas opções tomadas, e o Estado é fraco para o garantir.

Inoperância governamental

A prestação do Estado como representante e responsável pelas opções da sociedade democrática que o elegeu para esse fim é manifestamente insuficiente, neste exemplo trágico completamente evidente na sua surpresa total, não fosse o burburinho suscitado pelas redes sociais. As autoridades com competência em relação a um evento deste tipo, reagem em vez de agir, condenam por impulso em vez de fiscalizar, cumprem protocolos burocráticos ambíguos e que são propositadamente tendenciosos, ao não questionar a validade de algumas opções, públicas ou privadas.

A exemplo desta montaria, o Ministro retirar a licença de caça a uma ZCT que vendeu a caça grossa num último evento, digno de reclamar recordes, é inofensivo, assim como o ICNF fazer queixa ao Ministério Público pela não informação sobre o sucedido é demonstrativo da sua inoperância geral, com a centralização dos seus serviços e crónico deficit de financiamento, que conduz inevitavelmente a que as prevaricações aconteçam à margem da sua competência. Este, infelizmente não é um caso isolado, mas antes a regra na atuação das instituições a quem se confiou a competência de decisão relativamente à paisagem para lá de Lisboa.

A título de exemplo, é extremamente fácil acontecerem eventos desta natureza com pouco controlo por parte das autoridades competentes e, comparativamente, extremamente difícil quando a sociedade civil, através das ONG’s,  tenta atuar em sentido contrário, com uma enorme quantidade de burocracia e de obstáculos criados às associações de conservação de natureza para a reintrodução ou reforço populacional de determinadas espécies.

Não se podem é confundir estas reintroduções com a gestão cinegética atribuída à caça, já que é muito diferente reintroduzir uma espécie no seu contexto selvagem para a caçar do que gerir a quantidade das espécies existentes para manter equilíbrios nos seus números.

Mudança de paradigma

Este lamentável episódio é ainda, em várias perspetivas, sintomático das opções silenciosas que gerem o nosso destino comum.

Na perspetiva da biodiversidade e respeito pelos espaços naturais, com um Estado demitido das suas responsabilidades, algo que evidencia que enquanto sociedade não estamos preparados para os desafios que a crise da biodiversidade apresenta no nosso futuro imediato. Na perspetiva do respeito pelo Estado de Direito, idem aspas. Mas no substrato desta história infeliz, surge-nos ainda uma questão mais premente e essencial: enquanto sociedade temos o dever de nos adaptarmos às alterações climáticas que são já uma realidade imediata.

A herdade da Torre Bela é emblemática, em transformações históricas que a sociedade portuguesa atravessou no último século e esperamos que sirva de novo para ser palco das novas alterações em curso. Questionamo-nos se as opções que levaram a este episódio (para o qual a sociedade portuguesa foi alertada por uma polémica nas redes sociais) são as melhores para o nosso futuro coletivo… Uma propriedade de 1,700 hectares, que alberga uma diversidade biológica importante (nomeadamente a Águia-calçada, a Águia-cobreira, o Peneireiro-cinzento, o Picanço-barreteiro, o Tordo-pinto, o Coelho-bravo, a Rã-de-focinho-pontiagudo, o Noitibó-de-nuca-vermelha e o Noitibó-europeu, tudo espécies com estatuto de conservação), está a ser transformada num imenso parque solar, desalojando o capital natural para dar lugar a um polo de produção energética centralizado para lucro privado, ocupando 40% da superfície de terra arável disponível. 

Na nossa perspetiva existiam opções bem mais interessantes para responder aos diversos desafios que enfrentamos enquanto comunidade. Quanto à biodiversidade (javalis e veados), se tinham de ser retirados a fim de gerir populações, então poderiam ser transferidos para áreas onde os seus números são diminutos, com o objetivo de reforçar os ecossistemas, melhorar a dinâmica de mosaico em localizações onde os espaços florestais perderam os herbívoros domésticos, ou até serem transformados em carne para alimentar quem está com mais dificuldades nesta crise sanitária.

A terra arável, ao invés de ser ocupada com painéis solares para simplesmente produzir energia, podia ficar disponível para produzir alimentos ou repousar como sequestrador de carbono e albergue de biodiversidade. E esses mesmos painéis podiam ser instalados em áreas de menor valor natural ou distribuídos pelos telhados dos centros urbanos, onde a energia vai ser depois consumida, disponibilizando acesso à energia de forma descentralizada e a custo reduzido, alterando o funcionamento de um setor que levou a este absurdo ocorrido nesta propriedade da Azambuja.

Este é o paradigma que teima em não mudar, e que se não for invertido, não augura resultados positivos para nós enquanto sociedade. 

Considerar o espaço, o tempo e os viventes naturais como dignos de existência, permitir a utilização dos solos para benefício de todos, respondendo às necessidades comuns e entender que a descentralização de necessidades básicas como a energia, deviam ser preocupações de todos nós e não apenas mais um negócio de modas e são  alguns dos desafios que nos responsabilizam enquanto sociedade que pretende ser mais justa e resiliente perante os desafios que se aproximam.

Artigo de Fernando Teixeira e Pedro Prata

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