A caminhada de Liev Tolstoi pelo planeta Terra

por Lucas Brandão,    29 Agosto, 2016
A caminhada de Liev Tolstoi pelo planeta Terra
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Tolstoi foi um homem de feitos, tanto ao nível familiar (tendo 13 filhos) como no seu esplendor artístico (destacou-se como um dos principais nomes da cultura do século XIX). No seu vasto repertório, deixou clássicos da literatura russa como “Guerra e Paz”, “Anna Karenina” ou “A Morte de Ivan Ilitch”. Porém, a certo ponto, isto não lhe chegou. Decidiu desprender-se dos vícios materiais e dos padrões sociais e entregar-se a uma vida vinculada à Natureza, com forte propensão pacifista e simplista. Foi nesta senda que caminhou Liev Tolstoi nos últimos capítulos da sua vida, capítulos esses marcados por uma maturidade interior anormal para a humanidade. Com esta vincada realidade, abalou estruturas e causou polémica nas suas asserções escritas e que viriam a inspirar figuras ousadas perante os preceitos da sociedade. As circunstâncias cruzam-se com os ideais, formulando a identidade inesquecível desta figura de proa da gigantesca extensão russa.

Tolstoi foi um homem de feitos, tanto ao nível familiar (tendo 13 filhos) como no seu esplendor artístico (destacou-se como um dos principais nomes da cultura do século XIX). No seu vasto repertório, deixou clássicos da literatura russa como “Guerra e Paz”, “Anna Karenina” ou “A Morte de Ivan Ilitch”. Porém, a certo ponto, isto não lhe chegou. Decidiu desprender-se dos vícios materiais e dos padrões sociais e entregar-se a uma vida vinculada à Natureza, com forte propensão pacifista e simplista. Foi nesta senda que caminhou Liev Tolstoi nos últimos capítulos da sua vida, capítulos esses marcados por uma maturidade interior anormal para a humanidade. Com esta vincada realidade, abalou estruturas e causou polémica nas suas asserções escritas e que viriam a inspirar figuras ousadas perante os preceitos da sociedade. As circunstâncias cruzam-se com os ideais, formulando a identidade inesquecível desta figura de proa da gigantesca extensão russa.

Liev Nikolayevich Tolstoi nasceu a 9 de setembro de 1828 em Yasnaya Polyana, nome de uma casa que se situava a duas centenas de quilómetros de Moscovo. Os progenitores do russo dispunham de importantes títulos sociais, sendo o pai conde de Tolstoi e a mãe princesa de Volkonsky. Tomando como contexto sócio-político o czarismo, o seu crescimento foi acompanhado por educadores especialmente designados para o efeito, muito devido ao precoce falecimento dos seus pais. Nestes tempos de juventude, embora interessado pelo que aprendia, o seu apetite pelo interior do ser humano aumentou e, como consequência, não se escapou a questões existenciais. Assim, alistou-se no exército do seu país para debelar o vazio que sentia relativamente à sua vida. As experiências elencadas e acumuladas no seu consciente viriam a conduzi-los a um crescente pacifismo. Foi nesta altura que Tolstoi se tornou mais imprudente, cometendo excessos ao nível do jogo e da bebida, travando também contacto com várias prostitutas nessa altura. Esta juventude folgada e desbravada viria a ser condenada pela figura moderada e arrefecida do amadurecido Tolstoi.

“A sabedoria com as coisas da vida não consiste, ao que me parece, em saber o que é preciso fazer, mas em saber o que é preciso fazer antes e o que fazer depois.”

Liev Tolstoi sobre a sabedoria da vida.

Já na casa dos seus trinta anos, e com uma postura diferente em relação ao despreocupado e bóemio que fora, o russo criou ainda em Yasnaya Polyana uma escola para a formação adequada dos filhos dos camponeses locais. Grande parte do material usado para essa educação foi redigido por Tolstoi, destacando-se pela liberdade concedida e pouco adjacentes a excessivas regras e punições. Em 1862, com 34 anos, casou-se com Sophia Andreievna Bers, tendo esta dado à luz por treze ocasiões. Durante década e meia, o autor dedicou-se com devoção à vida familiar, tentando combater eventuais brigas que surgiriam entre ambos. Foi nessa toada de animosidade que Tolstoi criou e desenvolveu as suas grandes obras “Guerra e Paz” (redigiu-a em sete anos) e “Anna Karenina”, potenciando o instável contexto familiar e explorando os arquétipos de personagens que fez. Também a dissertação prática sobre o ser humano e as suas turbulentas viagens pelo oceano das circunstâncias assumiu-se como uma das principais premissas criativas do escritor. Embora a celebrização no curto prazo dos seus trabalhos, o russo massacrava-se com um interrogatório mental sobre o sentido da vida, arrastando o existencialismo até à sua fase adulta. Assim, e abdicando de procurar respostas na meditativa filosofia, na diversidade teológica e religiosa e na exatidão científica, entregou-se à simplicidade empregue pelos camponeses nos seus costumes e hábitos. Foi neste período de transição que Tolstoi deu a mão à convidativa conversão.

“Não alcançamos a liberdade procurando a liberdade, mas sim a verdade. A liberdade não é um fim, mas uma consequência.”

Liev Tolstoi sobre a liberdade.

Esta nova e mais contemplativa fase da sua vida fundamentava-se essencialmente na interpretação que fez dos ensinamentos cristãos, seguindo à letra todo o registo imaculado e refreado. Essa perspetiva personalizada assumia também que nenhuma autoridade estatal ou clerical poderia ditar o seu cristianismo. Para além dessa posição, criticou o direito à propriedade privada e os tribunais, apelando à não-violência daí em diante com base na sua experiência bélica. A propagação da sua crença foi realizada a partir de panfletos, peças e ensaios que ele próprio criava, lamentando o intelectualismo estéril e sem aplicação prática, para além dos estatutos sociais vigentes. Tamanha difusão levou a uma particular admiração e futura troca de correspondência com esse apreciador: nada mais nada menos do que Mahatma Gandhi, ainda em África mas já ativo na defesa dos direitos da comunidade indiana no continente, nomeadamente nas colónias britânicas.

Assim, deixou de beber e de fumar, tornando-se totalmente vegetariano e vestindo-se com trajes frugais e camponeses. Na convicção de que ninguém deve depender de trabalho alheio, passou a tomar conta dos seus aposentos com o cuidado e o zelo devidos, lavrando o campo e produzindo a sua própria roupa. Esta filosofia de vida acabou por ser adotada por vários jovens despertos para uma caminhada de vida diferente e contrastante com a ortodoxia czarista. Tolstoi abdicou também de receber os direitos de autor dos seus projetos literários, utilizando-o somente para o transporte para o Canadá de uma comunidade camponesa perseguida pelo Estado. Por esta conduta e pelos seus escritos, também o escritor foi alvo de escrutínio por parte do governo. No rescaldo desta prática, e já com os dois pés no século XX, Tolstoi foi excomungado da Igreja Ortodoxa nacional, tendo alguns dos seus companheiros sido exilados ou presos. Porém, a valorização e projeção nacional e internacional que a vida e obra do russo vinham obtendo impossibilitava que o czarismo capturasse o então polémico autor. No entanto, nem as rosas mais espinhosas eram as mais perigosas. A sua família, especialmente a sua cônjuge, não se havia confortado com a ausência dos luxos habituais mas também por alegado amor Sophia se opunha a esta conjuntura, ameaçando até o suicídio. Temendo também uma repentina partida de Tolstói e reportando à sua dedicação para com este, a sua esposa cobrava-lhe o direito de que todos os lucros gerados com os direitos de autor fossem para si. Porém, e numa definitiva fuga de casa, o russo legaria os mesmos a um dos seus seguidores, um de nome Chertkov, que publicitaria a sua obra. Com 82 anos, abandonava de vez a maquilhagem familiar em detrimento da pureza desprendida que sempre acreditou encontrar.

No entanto, a concretização do seu sonho limitou-se a dias. Não obstante reconhecido nas várias viagens de comboio que efetuou, nada impediu que contraísse uma pneunomia, esta motivada pelo frio e fumo provenientes dos vagões de terceira classe onde viajava. A idade não abonou a seu favor e a vida desencontrou-se consigo a 20 de novembro de 1910, na estação de Astapovo, na província ainda russa de Riazan. Nas suas exéquias, três a quatro mil pessoas, entre elas bastantes operários e camponeses, assistiram àquela que seria a caminhada final de um corpo que era demasiado limite para tão ampla alma. O número poderia ter sido maior não fosse o governo impedir a vinda de comboios especiais de Moscovo para a cerimónia.

Descrente das instituições e dos dogmas, deu os primeiros passos para o que seria a afirmação do anarquismo político. Imbuído na realidade mais sensorial e natural, justificou e valorizou a fraternidade do mundo com a entrega mais ou menos feita em relação à Natureza e aos seus entes. Opositor do militarismo obrigatório e estratificado, riscou o mal da sua vida e valorizou aqueles que respondiam com o bem a manifestações negativas. Defensor do cristianismo das palavras e dos atos, desde cedo se debateu com a ortodoxia religiosa russa e com a sua supervisão moral. Tudo isto acabou por se refletir na sua obra literária, desde os mais extensos e complexos romances até aos mais claros e pragmáticos ensaios. Liev Tolstoi fez das suas palavras a perpetuação da sua filosofia de pensamento e de sentimento, de afeição e de ação, de emoção e de cometimento. Todo o existencialismo da sua vida, para além da detalhada visão social que havia construído então, consolidou o desenvolvimento artístico e humano do seu eu. No entanto, regista-se uma valorosa evolução. Desdobrando-se de uma registada complexidade, entregou-se à mais plena simplicidade. Tudo o que entendeu como evolução na resposta à questão que lhe dominou os dias e as noites. O sentido da vida estava à espreita, nas árvores, nas flores, na humildade, na idoneidade. Uma caminhada suada com uma concretização consolada do seu ser e do seu existir, vinculada ao bem e atentando a quem.

“A alegria de fazer o bem é a única felicidade verdadeira.”

Liev Tolstoi sobre a felicidade.

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