A “Cidade” de António Zambujo soube acolher com conforto o Coliseu do Porto
Um habitué na esfera musical portuguesa, não só como intérprete e compositor, mas também com presença assídua como mentor no programa The Voice, da RTP, António Zambujo voltou às salas de concerto em nome próprio. Para lá dos primeiros passos como fadista, ainda na década de 2000, foi na década seguinte que Zambujo surgiu, efetivamente, como um artista de reconhecimento nacional. Por força da sua reputação, colaboraria com um sem número de artistas de nomeada, tais como Carminho, Salvador Sobral, Ivandro (bem recentemente), Mayra Andrade, Paulo de Carvalho, Melody Gardot, Roberta Sá e até a malograda Gal Costa e Chico Buarque. Os álbuns “Guia” (2010), “Quinto” (2012), “Rua da Emenda” (2014), “Do Avesso” (2018), “Voz e Violão” (2021) e, mais recentemente, “Cidade” (2023) foram alguns dos testemunhos que reforçaram o seu estatuto e que lhe permitiram encher salas, tanto a solo, como ao lado de Miguel Araújo. Aliás, seria este o próprio autor de “Cidade”, que oscila entre o registo de jazz e o de baladas, em muito familiar com o de Araújo na sua própria discografia.
Zambujo apresenta-se como um músico formado por várias camadas, palpitando fado, mas sem esquecer as origens alentejanas – e o seu cante – e a própria MPB, especialmente a figura de Chico Buarque. A um ano de completar 50 anos, Zambujo continua a expandir o seu repertório e a unir universos, fazendo uma verdadeira ponte entre o seu Alentejo, com enfoque no cante, e o Brasil, onde tem uma falange de admiradores numerosa. Importa referir que “Cidade” já havia sido antecipado em diversas ocasiões, entre as quais os singles que foram sendo lançados desde maio até ao disco final, em novembro. A Sons em Trânsito deu, assim, o seu contributo para o conhecimento do público de “Dancemos um Slow” e “Lua” em maio; “Uma Valsa Urgente”, “Romance De Cordel” e “Nas Bocas do Mundo” em junho; “Saga Inaudita do Bom Jesus de Teibas” em julho”; “5 Minutos de Whisky” e “Céu” em setembro; “KO” e “Sagitário” em outubro; e “Os Meus Dias Não São Meus” em novembro. Assim, apenas “Leva-me de Mim” chegou como tema inédito aquando da chegada do disco final.
Trata-se de um contributo em tudo diferente, com todas as faixas a obedecer a uma autoria própria de carreira feita, na qual Zambujo é, meramente, um intérprete. Porém, é com intenção plena que o faz, procurando homenagear o repertório dos seus artistas prediletos, como Caetano Veloso, João Gilberto e outros já referidos com quem colaborou no passado. Neste caso, porém, é um registo em muito do comum português, em ambiente familiar, mergulhado, em algumas ocasiões, numa subtil solidão urbana. Embora sendo uma ideia fermentada por Miguel Araújo, Zambujo perfilha-a e assume a tal vizinhança sozinha entre tantos. A vizinhança entre estes dois não é de solidão, contudo, mas antes de partilha, como exemplificam os vários concertos em duo, trocando músicas da autoria de cada um em cima do palco.
Para este concerto, a proposta é a de apresentar a “Cidade” à cidade… do Porto, entre outras, inclusive Paris, ao lado do brasileiro Yamandu Costa, e Berlim, na Philarmonie. Como referido, composto pelo portuense Miguel Araújo, o regresso à Invicta deu-se após uma passagem pelo Pavilhão Rosa Mota em outubro, precisamente em duo com este. Com dose dupla de concertos, acabámos por ir ao Coliseu na segunda das datas, num sábado de fevereiro. Zambujo chegou ligeiramente atrasado, mas trouxe logo o fado à mão com “Foi Deus” a solo. Posteriormente, foi anunciando os membros da sua banda, entoando uma canção com cada um dos que ia introduzindo. A saber, Bernardo Couto na guitarra portuguesa, o “razoável” (como chamou o cantor, em muito fã de Chet Baker); João Moreira no trompete, o aniversariante (e logo quarenta, a quem cantamos os parabéns); Francisco Brito no contrabaixo e o portuense João Salcedo no piano.
Foi difícil catalogar Zambujo neste concerto, embora em muito marcado pelo fado – bela interpretação de “Nem Às Paredes Confesso” e a derradeira “Loucura”, onde se diz proveniente desse mesmo fado. Porém, a envolvência do trompete e do contrabaixo como elementos distintivos provocaram a ida a outros lados, tal como o próprio deslindar do novo disco “Cidade” indiciava. A ida ao jazz não foi rara, assim como à típica canção ligeira, que, talvez, tenha dominado mais a noite. O alentejano, que, na sua voz vibratória e na entoação das vogais, também transporta o cante consigo, foi intercalando as novidades da sua discografia com outros registos mais ou menos conhecidos. Mesmo com as revelações de “Sagitário”, “Lua”, “Leva-me de Mim” ou “Dancemos um Slow” – com as primeiras histórias amorosas de Zambujo a servirem de contexto -, também se foi longe e redescobriu-se, entre outras, a espanhola “Madera de Deriva”, “Flagrante”, “Barata Tonta” e as incontornáveis e aclamadas “Zorro” e “Pica do 7”.
A química entre o cantor e o público, que encheu boa parte do Coliseu, foi-se dando a espaços, embora os espectadores se mostrassem deslumbrados com as prestações e com as longas viagens vocais de Zambujo em vários momentos de muitas das interpretações. Em muitos momentos, sentiu-se que o repertório estava lá para ser cumprido e a interação que existiu foi pontual e muito espaçada, algo que, para um artista com tamanha projeção e simpatia no país, foi motivo de alguma estranheza. O encore, no entanto, revelaria o momento mais personalizado dessa interação. Isto porque falou da sua “vida alternativa” como apresentador aos domingos à noite do tal programa da RTP de jovens talentos, que muitos reconheceram e aplaudiram.
Daí o convite para subir ao palco do vencedor da última edição do “The Voice”, o nortenho José Bacelar, que rebuscou a sua fidelíssima reprodução de “Can’t Help Falling in Love”, celebrizada por Elvis Presley. Nesse mesmo encore, nota para a bonita interpretação a solo de “Lote B” e de uma escolha um tanto caricata para o fim do concerto em “A Tua Frieza Gela”. Escolha esta que abriu muito espaço ao experimentalismo e que deixou o público como que mais apático do que rendido, algo que havia acontecido no fim do alinhamento principal. Nota também para a tentativa de seguir com aplausos as canções, mas também para não as deixar acabar para iniciar a onda de saudações.
Tudo isto não beliscou as ovações finais, que reconheceram em António Zambujo e companhia músicos de excelência e intérpretes em muito competentes. O fado foi nota dominante e subjacente em grande parte do concerto, por mais que tenha sido de forma mais ou menos direta. As novas faixas encaixam bem na personalidade artística do alentejano, tendo resultado em ambiente ao vivo, faltando só ouvidos mais treinados, sendo que muitos deles ainda não tinham escutado “Cidade” (isto por feedback à pergunta feita pelo músico ao público). Uma “Cidade” que leva a outras cidades o fado e seus concidadãos e que, por mais que não fascine, acolhe com conforto e harmonia quem a escolhe visitar.