A ciência da teologia musical de Hildegarda de Bingen
Dos longínquos tempos da Idade Média, entre tantos rostos masculinos que se debruçaram numa atividade intelectual profunda e com raízes escolásticas, surge a personagem feminina de Hildegarda de Bingen. Vivendo entre o fim do século XI e o ano de 1179 — morreu a 17 de setembro —, esta abadessa beneditina mergulhou no mundo da música, da filosofia, da mística e até da medicina. Aliás, foram contributos imprescindíveis aqueles que legou à História Natural na Alemanha. Por um obra riquíssima na composição musical, na redação de poesia e de iluminuras e até de ficção, para além da ciência que criou, ser-lhe-ia dada o título consagrado de Doutora da Igreja. Mais recentemente, até David Lynch e Devendra Banhart mergulharam no seu mundo musical e lhe dedicaram alguma da sua atenção criativa.
Nascida por volta de 1098, Hildegarda foi uma das mais jovens de uma família da pequena nobreza do condado de Sponheim, no coração da atual Alemanha. A sua juventude foi povoada por visões místicas, nas quais Deus se exprimia entre as gentes que via e os lugares que visitava. Conforme a própria, sentia-as com a alma e vivenciava-as durante todo o dia. Apesar de viver durante várias décadas, seria sempre portadora de uma saúde frágil, cuja preservação foi sempre voltada para a presença de Deus na sua vida. Clamava ter o gosto de usufruir da reflexão da luz da vida e foi por aí que se juntou a um mosteiro beneditino no Floresta do Palatinado, em Rheineland, no oeste da agora Alemanha. A idade em que ingressou neste foi próxima dos catorze, ao lado de Jutta, uma das filhas do conde de Sponheim.
Jutta seria a responsável pela sua educação até à entrada na vida monástica e partilharia a sua mundividência visionária com Hildegarda. Ambas seriam o rosto de uma congregação que mobilizou gente de fora, que as visitavam para acompanhar os contributos que iam dando à fé em diálogo com a música, através da entoação dos salmos e do próprio uso do saltério, um instrumento de cordas com semelhanças com a harpa. Ambas lideravam a comunidade, mas o convite para se assumir como prioresa levou-a a abdicar e a partir para Rupertsberg. Seria aqui, após superar uma doença que a incapacitou por algum tempo, que seria responsável por criar um mosteiro, sob as ruínas de São Rupert, em 1150, e, quinze anos depois, um outro em Eibingen.
Constituiria, desta forma, duas comunidades autónomas que seriam, em muito, inspiradas pelas suas visões. Os cinco sentidos de Hildegarda dedicavam-se à divindade e, já numa idade madura na faixa dos quarenta, recebeu uma na qual devia materializar aquilo que experienciava. As suas “Scivias” captam toda a sua teologia, abordando as suas visões, a sua perspetiva em relação à salvação através da figura de Jesus Cristo e dos sacramentos e da tensão entre o bem e o mal no caminho da santidade. São resultado de anos de compilação das suas experiências e das suas visões, sendo, ao todo, vinte e seis as que constam na obra.
As primeiras seis debruçam-se sobre a criação divina, desde o próprio universo até às figuras de Adão e Eva, para além do binómio corpo-alma e da relação de Deus com os seus. As sete seguintes trazem a redenção na forma de Cristo, do conceito de trindade, dos sacramentos , do sacrifício de Cristo na cruz e as cerimónias eucarísticas. A parte final, composta pelas treze restantes visões recuperam a história da salvação, invocando várias figuras alegóricas que representam santos ou virtudes. O remate da obra é feito pela Sinfonia do Céu, uma das principais composições musicais da autora. Hildegarda imortalizá-los-ia em manuscritos devidamente decorados, firmados no Codex Rupertsberg.
Estes escritos chegariam aos ouvidos do papa de então, Eugénio, que foi célere em atribuir-lhe a sua aprovação de que se tratavam, de facto, de revelações divinas. Para a história, ficaria a hagiografia — a biografia (de um(a) santo/a) — de Hildegarda resultado da compilação do monge Teodorico de Echternach, que seria conhecida como “Vita”. O relato da sua vida seria, assim, bastante marcado pela sua dimensão teológica e cristã. Assim foi a sua própria criação, desdobrada entre música, epístolas, ensaios, relatórios científicos, orações e até peças (“Ordo Virtutum” assenta num discurso de uma alma que se procura encontrar entre o bem e o mal e fá-lo acompanhada pela música sacra e por dezenas de músicas litúrgicas). Aliás, até um idioma seria criado por Hildegarda, a chamada lingua ignota, composta por vocábulos formados por várias das vinte e três letras do seu alfabeto e que procurava aspirar, de novo, à divindade.
Para a posteridade, ficou também o Codex Dendermonde, no qual estão agregadas diversas composições musicais da sua autoria; e o trabalho teológico “Liber Divinorum Operum” (o livro dos feitos divinos), que se junta ao “Liber Vitae Meritorum” (o livro das recompensas da vida), que, ao lado de “Scivias”, abrangem as interpretações de Hildegarda sobre as suas visões. “Liber Divinorum Operum” traz a famosa deixa de São João Evangelista quando anuncia que “no princípio, era o verbo”. Submergindo nesta declaração, traz o seu misticismo através de figuras alegóricas, em especial Caritas (amor divino) e Sapientia (sabedoria). É uma obra carregada de poesia, de uma ligação do indivíduo e da sua elevação ao e no universo, que remete para o início dos tempos, para o génese do mundo, e conecta este com o fenómeno do Apocalipse e do surgimento do Anticristo, que derrota na sua teologia.
O segundo, escrito entre 1158 e 1163, é escrito no tempo em que passou a viver em Rupertsberg e traz um confronto mais amadurecido entre as virtudes e os vícios humanos. Bebendo das peças que pensou e redigiu, Hildegarda desconstrói os vícios como expressões aliciantes e sedutoras que procuram encantar as almas, que são “resgatadas” pelas vozes sóbrias das virtudes. É um livro que contém uma das primeiras descrições sobre o purgatório, espaço no qual as almas terão de pagar as suas dívidas antes de ingressar no céu. As descrições feitas não são floreadas, mas antes sofridas e agressivas, que reforçam a vocação pastoral e moral da sua obra.
Porém, e como já considerado, nem só de escritos se fez a impressionante contribuição de Hildegarda para com o seu mundo. Foi, também, de muita música, que nasceu com influências dos seus tempos — a medieval — e que vivia muito da manifestação teológica e dos conceitos da confissão, do arrependimento, do perdão. Das virtudes humanas (e femininas) que são capazes de recuperar a fé e a integridade na comunidade e na sociedade. Da música, também se faziam peças, nas quais se convidavam as demais membras da comunidade a interpretarem os papéis e a cantarem ao lado umas das outras. Era uma forma distinta de colocar em prática a sua fé e de encarnar outras virtudes, como a esperança, a castidade, a inocência, a misericórdia.
Muitas dessas composições são responsórios, antífonas, hinos. Todos eles cantos laudatórios, de uma só linha melódica, capazes de ir para além do canto gregoriano tradicional no alcance da própria melodia. Não tendo grande rigor métrico e rítmico, Hildegarda fazia a sua música subordinar-se ao texto que adaptava, aceitando as suas nuances ornamentais e reverenciais, destacando-se a figura de Maria como uma espécie de musa da sua música.
Para lá da escrita e da música, também na ciência e na medicina Hildegarda deu cartas dentro da sua comunidade. Foi na sua experiência de jardinagem e na própria enfermaria que foi obtendo conhecimentos, que foi consolidando com regulares incursões à biblioteca da congregação onde estava. Foi, assim, adquirindo competências de diagnóstico e de tratamento de maleitas físicas, cruzando os cuidados físicos com outros métodos tidos como holísticos atualmente, num sentido espiritual (também estava familiarizada com a famosa teoria dos humores e da sua ligação com os órgãos). A utilização de várias ervas medicinas e até o recurso a pedras assumidas como curativas faziam parte de uma visão que partia do Génesis: tudo o que estava à disposição no planeta estava-o para ser usado pelos seres humanos.
“Physica” e “Causae et Curae” são os dois trabalhos que condensam os resultados das suas investigações e experiências, recorrendo a animais, plantas e minerais para dar resposta às necessidades do corpo humano que, de igual modo, explorou. Dedicou-se ao estudo das causas e das curas de maleitas para poder olhar pelas suas companheiras, mas também para melhor compreender o mundo à sua volta. São testemunhos imprescindíveis no entendimento da medicina medieval, tantas vezes carente de fontes e, maioritariamente, redigidas em outros idiomas que não o latim. Testemunhos esses bem organizados, que partem da criação do cosmos e alcançam a humanidade por entre as suas diferentes dimensões.
O cruzamento da dimensão física e da espiritual é constante, num sublinhar permanente da saúde natural do próprio cosmos que é interdependente da saúde (holística) do humano, no assegurar da viriditas, ou seja, vitalidade. É um processo de equilíbrios e que requer o diálogo dos elementos naturais na gestão de humores e dos aspetos humanos, sejam eles físicos, psicológicos e até sexuais. A prevenção de gravidezes não deixa de ser abordada, assim como as melhores fases lunares – com o recurso ao horóscopo, que também é útil para a agricultura — para certos tratamentos clínicos. De igual modo, refere instruções sobre como fazer sangramentos necessários para manter, tanto seres humanos, como animais, saudáveis. São descritos diagnósticos a partir de amostras sanguíneas, urinárias e fecais e tratamentos vários, como o de água fervida no sentido de proteger eventuais infeções.
Eu sou uma pobre coisinha, mas eu tenho um grande dever. Oh, o que sou eu? E qual é o tema do meu protesto? Eu sou a respiração viva no ser humano, colocada em um tabernáculo com medula, veias, ossos e carne, dando a ele vitalidade e apoiando qualquer movimento seu.”
“Scivias”
O número quatro: os quatro elementos, as quatro estações, as quatro grandes zonas terrestres, os quatros grandes ventos e, claro está, os quatro humores. São os tais humores, relacionados com o sangue, a fleuma e as bílis preta e amarela que vão de encontro aos elementos terrestres: o fogo é o sangue, a fleuma o ar e as bílis a água e a terra. Humores que, em desarmonia, se refletem em doenças e em desequilíbrio da humanidade. Esta desarmonia está, evidentemente, ligada ao bem e ao mal, onde o mal vem da proliferação da fleuma no corpo humano e que é causadora de enfermidades. É assim que fundamenta o mito de Adão e Eva, onde Adão se torna o responsável por trazer o mal ao mundo, saboreando o que de pior havia sido produzido na terra: a maçã.
O entendimento universal da humanidade por parte de Hildegarda também chegou à linguagem, tendo desenhado um alfabeto que procurava ser uma base de um código. A mencionada lingua ignota traz quase uma centena de nomes com raízes no latim que formam um compêndio de sentidos para as glosas da religiosa. A intenção, como referido, era a de chegar mais perto da divindade, mas de o fazer de uma forma integrada, envolvendo toda a amplitude da vida monástica, numa revelação cosmológica das expressões divinas e humanas, no binómio graça-pecado. Seria mais um contributo para que se tornasse numa referência naqueles tempos medievais.
Hildegarda foi e é lugar de passagem e de encontros, sedimentada pelos ares do exterior que ia captando através da correspondência que ia estabelecendo. Aliado a isso, as correntes de saberes associadas ao estudo do discurso escrito e falado, das ciências exatas e da música. Dentro da comunidade, era tida como alguém que não se deixava embalar pelas questões de hierarquia social, permitindo a todas as mulheres a possibilidade de se juntarem a si. De igual modo, incentiva-as a mergulharem nas artes da escrita e da instrução contínua, para melhor perceberem as escrituras e o mundo que as rodeava.
Porém, faria, ela própria, tournées nas quais se deslocava a vários outros lugares de religiosos e discursava sobre a necessidade de atentar e de precaver situações de corrupção clerical. O seu discurso como um todo chamaria a atenção de futuros religiosos, como Elisabete de Schönau, Bernardo de Claraval ou outros em atividade, como o mencionado papa Eugénio III, mas também Anastácio IV. De igual modo, figuras de estado, como o imperador alemão Frederico I. O seu prestígio perduraria pelos séculos seguintes, sendo venerada em 2012 pelo papa Bento XVI e considera doutora da igreja, pelos contributos na teologia, nas ciências naturais e na música.
Hildegarda de Bingen continua a ser descoberta nos dias de hoje, tanto pelos católicos e cristãos, mas também por investigadoras de estudos feministas. Isto porque Hildegarda autodesvalorizava-se, assumindo que tudo que fazia e que produzia era fruto de Deus, algo que lhe dava alguma liberdade de poder ter opiniões personalizadas sobre a Igreja como instituição, denunciando, por exemplo, a sua corrupção. Vista como mística pelas demais comunidades religiosas, em especial o movimento New Age, tornou-se num rosto sempre mais de aliar do que de cindir, separar. O seu método holístico, na convergência de vários caminhos da arte e da ciência, até no espaço ficou eternizado, emprestando o seu nome a um asteróide. Hildegarda continua a fazer história pelos tempos, com música, com palavra, com ciência. No fundo, com a divindade que continua a revelar e a ser.
No quadragésimo terceiro ano de meu percurso terrestre, quando eu estava observando com grande temor e trêmula atenção a visão celeste, vi um grande esplendor no qual ressoava uma voz do Céu, a dizer-me: “Ó frágil humano, cinzas das cinzas, e imundície da imundície! Dize e escreve o que vês e ouves. Contudo, visto que é tímido no falar e simples na exposição, e iletrado no escrever, fala e escreve estas coisas não por uma boca humana e não pela compreensão da invenção humana, e não por exigências de composição humana, mas como as vês e as ouves no alto dos lugares celestes, nas maravilhas de Deus. Explica estas coisas de tal modo que o ouvinte, recebendo as palavras de seu instrutor, possa expô-las naquelas palavras, de acordo com aquela vontade, visão e instrução. Assim, portanto, ó humano, fala estas coisas que vês e ouves. E escreve-as não por ti mesmo ou por qualquer ser humano, mas pela vontade daquele que sabe, vê e dispõe de todas as coisas no segredo de seus mistérios”
“Scivias”