A doce mística de Devendra Banhart deslumbrou o Porto
Devendra Banhart esteve no Porto neste 15 de fevereiro de 2020, sete anos depois de ter cá estado, em 2013, mas na Casa da Música. Desta feita, foi o Hard Club que o recebeu, a ele, ao baterista Josh Adams, à guitarrista Nicole Lawrence, ao baixista Noah Georgeson, ao teclas Jeremy Harris e a Vetiver (Andy Cabic, que contou com a colaboração dos membros da banda de Devendra, à exceção de Lawrence, tendo, assim, aberto o concerto). Foram quase três horas muito bem passadas, iniciadas com a atuação dos Vetiver e do seu folk pausado e relaxado. Ao todo, oito canções saíram dos acordes e da voz do artista norte-americano, numa amálgama de velhas canções de “To Find Me Gone” (álbum de 2006, com “Maureen” ou “You Might Be Blue”) e de “Tight Knit” (álbum de 2009, mostrando “Everyday”, “Rolling Sea” e “Strictly Rule”) com as novas de “Up High” (disco de 2019, tocando “Swaying” e “Wanted, Never Asked”), para além das músicas “Current Carry” (2015) e uma cover do falecido cantautor Bobby Charles, “I Must Be in a Good Place Now”.
Houve ternura, houve candura na voz de Cabic e nos acordes que fez entoar, contando com o apoio de Jeremy Harris ao longo de todo este percurso, para além do baterista Adams e do baixista Georgeson, que se viriam a juntar a meio. Um folk mais tradicional mas também mais suave e querido e que foi o aperitivo perfeito de um ambiente que se quis, acima de tudo, pronto para a harmonia. Devendra Banhart chegou à hora, às 22h, assim como os anteriores tinham chegado, e despontou para uma viagem muito íntima, embora marcada por deambulações de várias tonalidades sonoras e emotivas. Mais do que a dispersão de músicas tocadas, que perpassaram pela sua discografia mais recente – destaque para “What Will Be” (2009), “Mala” (2013), “Ape in Pink Marble” (2016) e “Ma” (2019) -, importa contar aquilo que Devendra partilhou com a cidade.
O irreverente norte-americano contou como se maravilhou com o Museu de Serralves e com os seus jardins – tanto ao ponto de partilhar o seu deslumbramento com os patos que, depois de uma breve luta, seguiam com os seus nadares como se nada fosse. Dentro dessa experiência em Serralves, tomou conhecimento da vinda de Yoko Ono ao museu, tendo convidado o próprio diretor do museu, o francês Philippe Vergne, ao palco para ler um poema da artista. “Imagine the clouds dripping. Dig a hole in your garden to put them” (Imagina as nuvens a pingar. Faz um buraco no teu jardim para as pôr). Foi “Cloud Piece”, um poema escrito na primavera de 1963, que foi partilhado e que arrancou sorrisos e até risos a quem o escutou em palco. Entre outras referências à simpatia e ao calor humano portuense, Devendra partilhou a sua inspiração de Richie Havens, um músico da era de Woodstock e que trazia, de igual modo, um espírito aberto e múltiplo, criado por várias influências e por várias formas de fazer música e arte.
Foi um concerto completo e bem vivido aquele que se pôde experienciar no Hard Club. Não faltaram as pérolas especiais, como “Mi Negrita”, “Taking a Page”, “Fancy Man”, “Is This Nice”, “Never Seen Such Good Things”, “Daniel”, “Brindo”, “Baby” ou “Fig in Leather”, para além de um cheirinho a “Santa Maria da Feira”. No entanto, outras novas souberam encantar quem o escutou, como a interessante “Kantori Ongaku”, a querida “Carolina” ou a prodigiosa “Love Song”. Por interpretações que foram alternando a guitarra eletrónica com a acústica – foi a sua sessão de discos pedidos, entre as quais a sempre rendilhada “The Body Breaks” -, o concerto revelou-se completo precisamente por essa dimensão de saber ser energético e intenso, mas também íntimo e acolhedor, quando só se ouviam as cordas de Devendra, a sua voz e os suspiros do público, rendido numa química instantânea. O seu carisma e a sua presença foram e são notas fortes que o asseguram como um dos artistas prediletos de um folk que é quase música do mundo, perante as ligações e conexões que estabelece com os vários cantos do mundo. É a universalidade e a fraternidade que permitem dar uma cor distinta a este Devendra e aos seus exímios intérpretes O solo fantástico de Adams na bateria soube, de igual modo, denunciar todo o talento instrumental de todos os envolvidos, que fecharam o concerto com chave de ouro, com uma eletricidade tal que só a quântica deve ter explicação. Exemplo foi a efervescente e algo disruptiva “Seahorse”, parte do álbum de 2007 “Smokey Rolls Down Thunder Canyon”.
O encore esperado aconteceu, onde trouxe “Carmensita”, também ela imbuído nesse espírito de faísca musical, sem deixar de esquecer o espírito latino que o ascende, em especial o venezuelano. Devendra Banhart levou por conquistado o Porto, com todo o mérito e com toda a sua personalidade flexível, amigável, quase universal. A sua música enriqueceu os ouvidos, pela evidente qualidade lírica e instrumental, mas, e em grande medida, pelo seu espírito jovial, personalizado e fraterno. Não são muitos aqueles que conseguem envolver-se de corpo e alma numa música inspirada por quatro cantos do mundo e, mais do que as reunir, dar-lhes um novo significado num bolo tão delicioso como precioso para quem o ouve e o sente. O Porto não se fez de rogado por tamanha doçaria e deslumbrou-se, qual feitiço, por esta mística.