A especulação filosófica de “Solaris”, de Stanisław Lem

por Miguel Fernandes Duarte,    8 Abril, 2018
A especulação filosófica de “Solaris”, de Stanisław Lem

Há, na nossa mente, todo um imaginário criado à volta de futuros contactos da espécie humana com outras espécies, não-humanas, que eventualmente encontraremos pelo Universo. Desde os clássicos extraterrestres verdes, com grandes olhos, em ovnis circulares, aos alienígenas agressivos de filmes como o Alien, o contacto entre ser humano e ser não-humano é sempre pensado numa óptica ambivalente entre luta de espécies e convivência pacífica, onde é possível a compreensão de quem está do outro lado, onde a comunicação é possível recorrendo a esforços de tradução. Toda essa visão, muito antropocêntrica, imagina esses encontros à semelhança dos que existiram quando, por exemplo, os Europeus chegaram à América e encontraram os nativos que por lá habitavam. Acabamos por não pensar, no entanto, na possibilidade dessa comunicação entre diferentes espécies poder não ser propriamente possível, quer pela inexistência de terreno comum através do qual comunicar, mas também pelas próprias formas de comunicação — e de funcionamento — poderem ser bastante díspares da nossa.

Stanisław Lem, um dos nomes maiores da ficção científica, trouxe-nos essa preocupação, no já longínquo ano de 1961, em Solaris, obra que ficou famosa também pela sua adaptação a cinema pelo russo Andrei Tarkovsky (e mais tarde também por Soderbergh). Finalmente traduzida directamente do original polaco para português, pela mão de Teresa Fernandes Swiatkiewicz e da editora Antígona, Solaris conta-nos essencialmente a história de Kris Kelvin, um dos enviados para uma estação espacial que, pairando acima do planeta Solaris, procura, em vão, estabelecer contacto com o grande Oceano que, ocupando toda a superfície do planeta, se crê ser um único organismo senciente.

Frame da adaptação de Solaris ao cinema por Andrei Tarkovsky (1972)

Ora, após uma drástica tentativa de estabelecer contacto com o Oceano através de uma descarga de raios X na sua superfície (feita pouco antes de Kelvin chegar à estação espacial), o panorama vigente nos últimos anos de Solarísitica (a ciência que estuda Solaris) muda, e os tripulantes da Estação Espacial começam a ser visitados por encarnações das suas memórias mais dolorosas e reprimidas.

Por isso, quando, ao início do seu segundo dia, Kelvin encontra à sua frente, ao acordar, Harey, a sua mulher que se havia suicidado após Kelvin a ter abandonado, o cenário que lhe é apresentado é dantesco. Harey, enterrada tanto na terra como na sua mente, regressa à vida de Kelvin que, avisado pelos restantes tripulantes Snaut e Sartorius de que algo estranho ali se passava, não a vê enquanto reencarnação, mas enquanto anomalia, tentando de imediato livrar-se dela, num esforço inglório, já que, na noite seguinte, Harey lhe surge novamente, sem qualquer memória dessa tentativa de aniquilação.

Mas se o foco das versões cinematográficas desta obra incide maioritariamente sobre a relação entre Kelvin e Harey – e no transtorno que isso causa a Kelvin, levado a assumir a certa altura de novo o seu papel de marido dedicado, num misto de compensação por falhas passadas e de reescrita da sua própria história – o foco do livro incide maioritariamente sobre todo o fenómeno cosmológico e suas implicações.

A aparição destes simulacros de humanos é a tentativa do Oceano, após a experiência de raios X feita pela estação espacial, de ele próprio estabelecer contacto com o ser humano e tentar entendê-lo, expondo assim os aspectos perturbados da personalidade dos cientistas humanos, ao mesmo tempo que nada revela sobre a sua própria natureza.

Aliás, como escreve o próprio Lem anos mais tarde, em Fantastyka i futurologia, “A peculiaridade destes fenómenos parece sugerir uma espécie de actividade racional, mas o significado desta aparente actividade racional do Oceano de Solaris está além da compreensão dos seres humanos.”

O Oceano é tão diferente do Homem, as suas acções tão incompreensíveis para a mente humana, que parece simplesmente impossível que possa existir qualquer comunicação entre ambas as espécies. Sendo a sua realidade tão díspar da nossa, não se torna personalizável, não há como transpor o seu funcionamento para o de uma pessoa. Por isso, o que se passa é não um problema de tradução, mas um problema de diferença de realidades e funcionamentos.

As tentativas de análise do funcionamento do Oceano, das suas semi-construções orgânicas (a que os solaristas apelidam de simetríades, assimetríades e mimóides), podem apenas ser descritas de uma forma meticulosa e científica, mas não compreendidas, e, portanto, toda esta bibliografia criada à volta de Solaris, que nos é mostrada ao longo do livro, é não mais que mera catalogação daquilo que não é humano e que está para lá da nossa compreensão.

O que é possível extrair destes fenómenos é, se não a compreensão do Oceano, mais uma tentativa de nos compreendermos a nós próprios enquanto seres humanos, confrontando-nos com as nossas memórias mais reprimidas, e questionando até o que é ser-se humano. Isto porque os simulacros que aparecem a cada um dos tripulantes não só se assemelham a humanos como também podem ser comparados a estes nas suas outras valências. São capazes de pensar e agem como se fossem verdadeiramente aquela pessoa, além disso aprendendo e ajustando-se à sua realidade ao longo do tempo, cada vez mais próximos daquilo que consideraríamos um verdadeiro ser humano. Harey, por exemplo, é inicialmente incapaz de não estar em contacto visual com Kelvin, ficando completamente descontrolada e histérica como parte de um qualquer constrangimento da sua criação. Mas mais tarde, ainda que persista um desconforto em caso de ausência de Kelvin, é perfeitamente visível uma adaptação às circunstâncias e um aproximar à condição humana.

É neste balançar entre a análise da condição humana no plano individual e no plano universal que Stanisław Lem nos dá argumentos mais que suficientes para o considerarmos um dos maiores nomes da ficção científica. Se muitas vezes os preconceitos em relação ao género o confinam a uma espécie de brincadeira de crianças, escritores como Lem (e vários outros, como Philip K. Dick ou Margaret Atwood) são o exemplo perfeito da capacidade do género em pôr em debate filosófico as grandes questões da humanidade. Solaris não tem como não ser, portanto, uma das publicações mais importantes do ano editorial português.

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