A expansão artística e social de João Abel Manta

por Lucas Brandão,    14 Janeiro, 2023
A expansão artística e social de João Abel Manta
Caçadores, cartoon de João Abel Manta para Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar, 1978, Portugal / DR

João Abel Carneiro de Moura Abrantes Moura. É este o nome de um dos mais célebres ilustradores portugueses, que marcou a vida jornalística no pré e no pós-25 de abril. Não obstante ter passado pela arquitetura, foi no desenho e na ilustração que se viria a notabilizar. Os seus cartoons tornar-se-iam autênticos marcos culturais nesses anos tensos e agitados, numa fase em que conseguia ver os seus trabalhos serem acolhidos em jornais de grande nomeada, com tiragens bastante assinaláveis. As caricaturas feitas e as mensagens a si subjacentes reforçam esse trabalho que, embora interventivo, não deixa de fora o poder estético.

Abel Manta nascera a 29 de janeiro de 1938, na cidade de Lisboa. Filho do já conhecido pintor Abel Manta e da também pintora Clementina Carneiro de Moura, cresceria nessa cidade, como filho único, na zona de Oeiras. Foram uma meninice e uma juventude em que viajaria muito, pela Europa, entre Itália, França e Holanda, para além de ter convivido, por intermédio dos seus pais, com vários intelectuais de então. Como referências, sempre teve a sua larga família (mesmo depois de casado, entre a filha, netos e bisnetos), mas também autores portugueses, como Eça de Queirós, o músico Mozart ou o pintor Vermeer. Inscrever-se-ia no curso de arquitetura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e, desde cedo, começou a fomentar uma grande aversão ao regime governamental e a integrar os quadros de forças de esquerda que cogitavam essa oposição.

Por isso, para além de já integrar os quadros do Movimento de Unidade Democrática, seria detido bem cedo, aos 20 anos, quando já rabiscava alguns dos desenhos que emitiam a sua preocupação com o estado social e político do seu país. Em Caxias, ficou durante duas semanas, longe dos amigos que havia feito, como o pintor Sá Nogueira e o artista plástico José Dias Coelho, que havia conhecido no primeiro ano comum entre escultura, pintura e arquitetura. Esse cadastro não o impediu de arrecadar um prémio na segunda Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, com o desenho em papel, com tinta-da-china, “O Ornitóptero” — uma máquina que voa como um pássaro, corria o ano de 1961. Em Leipzig, em 1965, também receberia a Medalha de Prata na Exposição Internacional de Artes Gráficas.

No entanto, ainda antes, depois de findar o curso, no ano de 1951, seria pupilo do arquiteto Alberto Pessoa, com quem, ao lado de Hernâni Gandra, colaboraria num plano de urbanização da Avenida Infante Santo, em Lisboa, que consistia no desenho de um conjunto habitacional que representava o estado da arte da arquitetura moderna de então. Com isto, venceriam o Prémio Municipal de Arquitetura, decorria o ano de 1957. De igual modo, fariam o mesmo para o edifício da Associação Académica de Coimbra, para o qual, futuramente, Abel Manta viria a fornecer azulejos. Porém, a arquitetura vai, cada vez, ficando mais para segundo plano, já que seriam as artes visuais que mais o seduziam.

Uma viagem que fez entre desenhos e pinturas, que nunca descartaram outros suportes, como a cenografia, a tapeçaria, a cerâmica e a azulejaria. Não obstante, o neorrealismo serviu sempre como grande pano de fundo, como fonte de inspiração para os cartoons que ia idealizando e realizando nos diversos órgãos de comunicação social que, clandestinamente ou não, iam circulando. As diferentes referências de poder — social, político e também religioso (“Os Missionários”, de 1961, e “Um Caso para o Santo Ofício”, de 1963, são disso exemplos, reportando à atividade missionária e à Inquisição) — eram alvos das suas criações, enquanto ia escapando, amiúde, da Censura com alguma argúcia e engenho artístico. No fundo, visava a exposição pura e dura da realidade do país, mísera e empobrecida, sufocada pela opressão moral do Estado Novo. O seu repertório estende-se, assim, por dezenas (e quase centenas) de obras, que se avolumam em muito pelos cartazes e pelos diversos jornais da época.

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De destaque, no campo da ilustração, ficam os livros “A Cartilha de Marialva” (1960) e “O Dinossauro Excelentíssimo” (1972), da autoria de José Cardoso Pires. Na cenografia, cenários para peças como “A Relíquia”, de Eça de Queiróz, ou “O Processo”, de Franz Kafka, para além de outras tantas do dramaturgo Luís de Sttau Monteiro. Pelos tapetes também andou e concebeu as tapeçarias do Salão Nobre da Fundação Calouste Gulbenkian; assim como pelos mosaicos na calçada (na Praça dos Restauradores, em Lisboa, e em Figueira da Foz) e pelo revestimento de azulejos do mural da Avenida Calouste Gulbenkian, igualmente em Lisboa (1982), para além dos painéis no restaurante do Hotel Infante Santo (1952) e na Escola Primária Alto dos Moinhos (1955, em Sintra). Na cerâmica, enaltecem-se os painéis cerâmicos que fez para o Teatro Académico Gil Vicente, de Coimbra (1955). Por entre colagens e pinturas que lhe mereciam algumas mostras individuais ou coletivas, como a Bienal de São Paulo, em 1953, foi-se notabilizando nos cartoons, começando a ser comparado ao prodígio do século passado, Rafael Bordalo Pinheiro, com igual apetência para chocar, provocar e denunciar.

Exemplos desse atrevimento surgem em “Turistas” (1972, parte da sua Reportagem Fotográfica), onde se sublinha a vinda de estrangeiros para admirar o pequeno Portugal, empobrecido e enfezado, como se de um país de terceiro mundo, encantador mas diminuto, se tratasse. Esse fenómeno visto de fora também foi captado em “Um Problema Difícil” (1975), no qual, já após a revolução, se compilam várias figuras da sociedade civil internacional, desde Marx a Gandhi, que se questionam sobre o presente e o futuro daquele pequeno país no sudoeste da Europa. O seu período mais profícuo seria a década de 1970, não só pelos tumultos a que se assistiriam, mas também pela crescente democratização dos meios de comunicação social. Foi assim que se tornou referência em grandes órgãos, como o Almanaque (ao lado do escritor José Cardoso Pires, sendo o primeiro que o viria a acolher, em 1960, e a suscitar a veemente sátira de contestação ao regime), o Diário de Lisboa, o Diário de Notícias ou O Jornal (para o qual contribuiu para o seu arranjo gráfico).

Avião, cartoon de João Abel Manta para Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar, 1978, Portugal / DR

Tratou-se de uma viagem que começou, como referido, já com o salazarismo, e que se foi prologando durante a vigência de Marcello Caetano e, já depois do 25 de abril, com o PREC, que só findaria em 1975. Como pontos de paragens, os diversos cartazes que havia feito do binómio Povo-MFA (a quem nunca escondeu a sua associação), onde aliava a sua capacidade artística e gráfica com a sua veia propagandística, mas que não deixaram de ser um marco cultural profundo desses tempos. Também não faria esquecer, posteriormente, o fantasma salazarista que pairava então com uma das suas mais relevantes obras, “As Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar” (1978). É este um álbum no qual se traça um percurso cronológico que se debruça sobre a colonização, o passado monárquico, a submissão popular, a vida rural e as formas de expressão folclóricas, típicas de todo o país. Isto, no entanto, não deixa, como usual, de ser um percurso bem crítico e quase provindo de um justiceiro, que ajusta contas com a pegada salazarista.

Esta sua viagem artística não deixou de ser homenageada e saudada em várias mostras de relevo, como na Escola Superior de Belas Artes (1975), no Museu Rafael Bordalo Pinheiro (1992), no Palácio Galveias (2009) e até no Institute of Contemporary Arts, em Londres, nos anos de 1963 (onde levou “A Situação Shakespeariana”, onde se teciam rasgados comentários aos típicos estereótipos sociais e as convenções da etiqueta) e de 1976. Em 1979, também seria feito comendador da Ordem de Sant’Iago da Espada, com, em 2004, a chegar o grau de Comendador da Ordem da Liberdade. Deixou, assim, um legado aprofundado sobre as subtilezas que iam polvilhando o fascismo asfixiante e cada vez mais insuportável no seio nacional. Nunca deixaria de parte ninguém, desde as relações conjugais de fachada, entre as infidelidades que se conjeturavam nas suas costas, até aos artistas ligados à expressão dita convencional e orientada pelo regime, sem deixar de criticar os intelectuais conformados e alinhados com a doutrina existente, para além de entre outras figuras, como os toureiros e os marialvas, que iam recebendo o beneplácito e as honras do regime. Isto sem esquecer as distrações típicas que serviam como símbolos da nacionalidade, como a bola, a televisão e o vinho, para além das referências gloriosas da história de Portugal.

Portugal, Um problema difícil, João Abel Manta, O Jornal, Lisboa, 1975, Portugal / DR

Com a chegada da década de 1980, e já depois de ter estado em Londres, pousaria o pincel nas artes gráficas, pese embora ter apoiado a criação de um fórum cultural de participação ativa, que se materializou no “Jornal de Letras”. Tornara-se mais voltado para a pintura, num discurso bem mais intimista e pessoal, com olhares sobre o seu passado e o seu então presente. A tranquilidade que buscava, um pouco absorvida dos impressionistas, foi-se diluindo e transformando num quase surrealismo, em que procurava dar asas à alucinação e ao fantasioso, inscrevendo vários seres inusitados em paisagens aparentemente serenas (muitas delas com Lisboa como “musa”). Assistiu-se, deste modo, a uma transição entre o neofigurativismo, com figuras a estarem integradas em sintaxes confusas e distorcidas, e o surrealismo irónico e esforçado, que daria lugar a este abstracionismo.

João Abel Manta marcou, assim, de forma indelével, as artes gráficas em Portugal. Com um engenho artístico que proporcionou grandes feitos um pouco por todas as áreas, o lisboeta seria uma das referências visuais da década de 1970 em Portugal, talvez a mais marcante do século XX. A qualidade da sua crítica social, apesar de poder ser referenciada e/ou apropriada politicamente, não ficava longe do verdadeiro valor estético e artístico das suas várias obras e dos projetos que deu a conhecer em diferentes suportes. Porém, no auge dos jornais físicos como meios de informação determinantes e fundamentais para a veiculação do que quer que fosse pelo país, Abel Manta tornar-se-ia no homem dos cartoons, cartoons esses que salvaguardam e asseguram que as dores do passado permanecem presentes. Presentes para que o futuro possa ser melhor e mais pleno dos valores de Abril, com a devida cor e forma da arte.

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