A história dos assombrosos “ESTILVS MISTICVS” do Conjunto Corona no Hard Club
Todos falam de David Bruno como um dos mais radiantes projetos emergentes na música portuguesa nos últimos cinco anos. Nós próprios fomos assistir a concertos dele por duas ocasiões (2019 e no ano passado), para além de o termos entrevistado ainda em 2020, e ficamos imersos na sua proposta de homenagem à portugalidade. No entanto, nem tantos falam do outro projeto musical que protagoniza e que remonta anos antes de tudo ter começado a solo. É este o(s) (Conjunto) Corona, em que 4400 OG (o nome artístico de David Bruno por estas bandas) está ao lado do rapper Logos (ou Edgar Correia) e da figura emblemática do Homem do Robe — também ele com discografia a solo —, aos quais se juntam a nova figura de Tropa Snow, o seu “cavaleiro da luz branca”.
Longe vai o ano de 2014, ano em que tudo começou com “Lo-Fi Hipster Sheat”, ao qual se seguiu “Lo-Fi Hipster Trip” em 2015. Ambos mostravam ao que vinham — Logos como vocalista principal, com as nuances do Homem do Robe, e David como produtor musical —, homenageando (ao mesmo tempo que parodiando) a vida suburbana do Porto na sua maior essência, personificada pela figura de Corona, que começa, aqui, uma história de vida com muito de caricata. O hip-hop não é o único género que se exprime, dado que há tanto deste género, como de eletrónica e de um certo rock mais ligeiro e progressivo.
Os cultos urbanos do tráfico e consumo de droga, dos seus pacotes e pontapés nas costas chegam ao palco dos clubes noturnos e dos demais espaços da movida 100% portuguesa. Assim se encontra o álbum que deu o mote para que o Conjunto Corona crescesse no espaço mediático em “Cimo de Vila Velvet Cantina” (2016). É essa zona mítica da antiga freguesia da Sé (depois convertida numa união de freguesias com outras tantas) que traz o chino no olho ou quem vai mafiando bairro adentro. Corona radica-se neste universo da pornografia e da prostituição, onde a promiscuidade é quem mais ordena e onde até, por parte de quem os (ou)viu, surgiu a sombra da misoginia.
Já “Santa Rita Lifestyle” (2018) abre as portas ao mundo do tuning e da vida noturna pelas estradas do Grande Porto, fazendo jus à histórica devoção a Santa Rita, em Ermesinde, mesmo à saída da A4. Três anos depois, e mantendo a tónica na vida noturna, chega o melhor que as discotecas da Zona Industrial (e outras tantas) tiveram para dar, em especial acompanhadas por um colorido e ritmado reggaeton, onde o “G de Gandim” (2021) é quem mais ordena. Isto porque, mãe, birei gandim. Com a figura de David Bruno [doravante 4400 OG] já bem colocada no mapa e com mais presença a vocalista, foi o álbum que reforçou o ponto de encontro dos aguerridos fãs dos [Conjunto] Corona, mesmo daqueles que só embarcaram nesta viagem em “Santa Rita Lifestyle”, e os do “olheiro da portugalidade”, como o próprio se afirma. Embora não tenha sido o álbum mais acarinhado nem por uns, nem por outros (que, eventualmente, foram investigando a discografia dos Corona), foi um marco que levou o grupo ao Pérola Negra, clube noturno portuense tantas vezes acarinhado pelos elementos do grupo.
Não obstante, os Corona já se posicionaram em vários palcos e festivais pelo país fora, desde Paredes de Coura, Milhões de Festa, várias Queimas das Fitas, com os cânticos de “Gondomar, Gondomar” e “Hidromel” sempre em destaque. Em todos eles, conseguiram sempre numerosas audiências em moche e com muita “jarda”, em muito alinhadas com as letras e com as vibes da urbanidade do Grande Porto. E é com esse caminho que, chegados a 2023, muitos foram os que rejubilaram com o novo projeto, “ESTILVS MISTICVS”. Desta feita, fala-se de medos, de superstições, de crenças e de experiências, algo que, em Portugal, continua entranhado no seu ADN e no seu subconsciente coletivo. Os tais “delírios místicos” que samplaram em “Santa Rita Lifestyle”? A conferir.
A capa do álbum mostra-nos a data de nascimento e a morada dos seus membros, embora na forma de obituários. Para além de descobrirmos que os homens da meia na cabeça são ambos de Famalicão, olhamos para o seu material promocional para perceber que se trata da ressurreição dos Corona. Uma ressurreição que nos leva ao mundo dos feitiços, dos bruxedos, dos “trabalhos”. Munidos de velas, de “doçuras” e do tabuleiro ouija, são contadas histórias e relembradas memórias dos bruxos e dos seus feitos, para além de todos aqueles que a eles recorrem. É o terror associado ao cenário da morte, que paira em torno de todas as faixas deste trabalho, em que nem a pomba gira, o sal grosso ou o livro de São Cipriano valem perante o mal do diz-que-disse, do olho gordo ou do 6-6-6. Quiçá os “EXORCISMOS” ou as “REZAS” ajudem.
Por mais que “CHICO COM A 6-35” ou “PRA CABEÇA OU PRO PEITO”, onde regressa Alferes M, mantenham intacta a essência de Corona, o storytelling de “EI OH MARUJO”, com a ajuda de PIKI P, “CORONA BYE BYE”, “PUTA DA VELHA” ou “TABULETA” (com acordes de Marco Duarte, o Marquito da persona David Bruno) trazem muita novidade e letras com um forte cunho pessoal. São líricas que trazem a pessoalidade que já nos foi habituada em DB e que ajuda a que mais façam a migração deste para a realidade Corona.
De igual modo, o fortíssimo jogo de referências visuais e de achados da antropologia da portugalidade protagonizado por 4400 O.G., com o habitual desafio lírico de Logos, mantém-se presente e premente. Para além dos samples que soam a Cypress Hill, a Three Six Mafia e a demais texturas do hip-hop mais escuro que conversa com o rock e o (black) metal, são elementos bem-vindos que polvilham os “ESTILVS” com o devido gosto. Visualmente, vai-se das (parcas) pérolas sobrenaturais à portuguesa à disposição no Youtube até a fragmentos de séries e filmes de terror, como “The Shining” ou o videojogo adaptado “Five Nights at Freddy’s”, sem esquecer os cabeceamentos de Jardel ou um chapéu de Capucho.
Para apresentar devidamente o novo disco, foram marcadas quatro sessões (as duas primeiras, uma em cada sala, esgotaram ainda antes do seu lançamento), com duas em Lisboa, no seu Musicbox, e outras tantas para o Porto, no Hard Club, na sua sala 2. Todas elas agendadas e pensadas para enquadrar o ambiente à medida, deixando de lado a movida de Cimo de Vila ou da Via Rápida e pondo a tónica nos rituais místicos e espiritistas. Assim, e no caso do Porto, à imagem do sucedido em Lisboa, deparamo-nos com duas sessões no mesmo dia: 21-23h e 23h-01h (esta adicionada depois da primeira ter rapidamente esgotado). Algo que consideramos inusitado, mas que diz muito da dedicação e da vontade do grupo proporcionar a experiência dos “ESTILVS MISTICVS” ao máximo de gente possível.
A primeira, que prometia mais frescura e sendo mais convidativa para quem depende de transportes públicos, foi a que escolhemos, embora certos das limitações de haver mais uma sessão a seguir. Não obstante, e mesmo tendo lido relatos de como foi em Lisboa, acreditamos que o espetáculo pudesse ir para lá de uma hora de duração, dando, de igual modo, espaço para que o grupo se preparasse para a segunda rodada. Porém, percebemos que se poderia, somente, tratar da apresentação formal de “ESTILVS MISTICVS”, onde se abriu o livro do seu repertório e pudemos escutar e vibrar com cada faixa em ambiente Corona. O convite para tamanha experiência nunca poderia ser rejeitado, por mais objeções e limitações que pudessem existir.
Optamos por um lugar recatado, distante do centro das atenções, para apreciar devidamente a nossa primeira experiência de Corona. A tal hora de duração — nota para a pontualidade do Conjunto, munidos dos seus cachecóis “ESTILVS MISTICVS” e rodeados por dois caixões feitos com LEDs e caixas de papel (viemos a saber que foram leiloados) — foi, assim, espremida ao máximo, com o célebre hidromel a chegar às primeiras filas de espectadores, com os moches com 4400 e Logos, com “Gondomar” na ponta da língua. De igual modo, aclamamos desde Jardel e Capucho, ao homem da logística no concerto, o Lopes, ao rei dos Catalisadores, sem esquecer a figura de Vitor Catão ou até a cidade de Amarante. Logos é detentor de uma energia inesgotável e contagiou quem os assistia com essa pujança física e pulmonar, sendo que 4400 foi o responsável pelas hostilidades do concerto, ditando os ritmos e os momentos do alinhamento. Esse e, claro está, o caricato semblante do fumador Homem do Robe, um verdadeiro fora de série, um animal de palco munido da sua meia à cabeça, dos óculos de sol e de um turíbulo, a quem, de pulmões cheios, chamamos “campeão”.
Igualmente admirável é o verdadeiro clube de associados que os Corona têm, que se exprime na rápida ocupação da lotação dos concertos, mas ainda mais na forma como já sabem de cor e salteado as letras das novas músicas. Grande parte das faixas de “ESTILVS MISTICVS” estavam decoradas, como as muito aclamadas “CHICO COM A 6-35”, “EI OH MARUJO” (com a presença de PIKI P, que ainda ninguém sabe quem é), “FUMO NA PANELA”, “ORA RING DING DONG” ou “PRA CABEÇA OU PRO PEITO”, ao lado do mítico Alferes Malheiro. Esta entoação em conjunto provocou logo uma subida de nível da experiência do concerto, um pouco à imagem daquilo que se sente quando se vê a persona David Bruno. Todavia, é bem distinta a experiência, sendo muito mais propícia a que os fãs do hip-hop portuense e do português façam a festa.
Para nossa surpresa, ainda deu tempo para escutarmos, cantarmos e vibrarmos com marcos indeléveis do seu repertório, como “Pontapé nas Costas”, “Chino no Olho” ou “Pacotes”, dos primórdios da quase dezena de anos dos Corona, e, do mítico “Santa Rita Lifestyle”, a música sua homónima, “Perdido na Variante ou “187 no Bloco”. Algumas destas foram guardadas para o encore, que foi quase imposto por um público incansável, em moche ou não, em torno da congregação Corona. Um público que foi sempre muito próximo dos artistas, sendo que 4400 questionou quem tinha jantado para estar lá às 21h e, numa dessas perguntas, surgiu a voz de uma jovem que disse que ia almoçar ao “Mac da Ribeira”, que o próprio não conhecia. Um momento de riso e de palmas, no qual Logos recordou o take “Tenho de bazar / Passar no McDrive”, celebrizado pela persona David Bruno, algo a que 4400 tentou escapar, separando as águas. Apesar da brevidade do concerto, saímos totalmente rendidos e só não oramos de joelhos porque o piso era duro e pouco jeitoso.
Os Conjunto Corona continuam como um organismo único na música portuguesa, com um percurso sui generis, que transpira hip-hop, urbanidade e foleirada caricata à portuguesa. Para quem os perdeu ou nunca os viu, pode dar um salto, no próximo ano, ao Primavera Sound, sendo mais um grande palco onde os Corona (merecidamente) vão estar — o tal que vai cantar “Mafamude” de novo, como diz “TABULETA”. A experiência Corona é, efetivamente, um “ESTILV MISTICV” à sua maneira, que abrange o Grande Porto e que se estende, com força, à urbanidade do resto do país. Aos quase dez anos de projeto, um brinde, ou antes, uma jarda de hidromel em que a moche é a nossa saudação em nome de Corona. A seguir a isso, estaremos sentados na mesa a falar de espíritos.