A influência da filosofia e da moral de Immanuel Kant
Dentro dos grandes nomes da filosofia ocidental, não se pode deixar de falar de Immanuel Kant. Idealista transcendental, pautou-se por um percurso em que a mente seria quem mais ordena, orientando a ação e a experiência humanas. A mente funcionaria, assim, como a plataforma em que tudo se cria, dando primazia às ideias e à dimensão mental, algo que sempre pautou o Iluminismo. Pautou, assim, com o seu contributo na filosofia ocidental, grande parte do pensamento ético futuro, sem esquecer a própria teoria política, na qual também pesou o seu corpo de ideias. Nesta transição turbulenta entre o século XVIII e o XIX, Kant entoou e perdurou a sua ideia de como tudo se forma, desde o conhecimento à experiência.
As ideias
Immanuel Kant nasceu no seio do reino da Prússia no ano de 1724, morrendo em 1804, pouco antes de completar 80 anos de idade. Foi o principal responsável pela fundação do idealismo transcendental, em que cada sujeito, usando a sua consciência, perceciona os objetos não como são, mas sim como aparentam ser e aparecem perante os sentidos humanos. Assim, é negada a possibilidade do sujeito conhecer as coisas como elas são, na dimensão em que são independentes do que ultrapassa a nossa cognição. Dos fenómenos, que são assumidos com essa experienciação, não se podem excluir as noções de tempo, de espaço e de causalidade, que se interrelacionam e que geram a predisposição para que esses fenómenos se proporcionem e para que, em suma, o mundo possa ser experienciado e vivenciado. É quase uma estrutura que possibilita racionalizar o mundo, quantificando-o e temporalizando-o. As coisas em si, ou as que existem antes de poderem ser interpretadas pelos sentidos, existem, embora não se consiga perceber a sua natureza, já que o conhecimento não o consegue perceber.
Não obstante, o conhecimento pode ser dividido em duas dimensões, relativamente à sua origem: a priori quando é independente da experiência e do uso dos sentidos para a sua criação – exemplos disto são as operações matemáticas, necessárias e universais, embora intuídas -, e a posteriori quando advém da experiência e de um exercício que produz evidências da sua existência – exemplos disso são as descobertas científicas e todo o trabalho científico do qual resulta a formação de conhecimento. Assim, os objetos devem acomodar-se ao que existe a priori, perante aquilo que a intuição permite aferir. O tempo abrange assim aquilo que é o pensamento e a memória, com o espaço a assumir as rédeas do que é intuído no exterior. A razão consegue, pela sua própria génese e pelo seu funcionamento, constituir uma espécie de legislação universal – aquilo que se entenderá como imperativo categórico, em que sustenta a famosa frase “age de acordo com uma máxima que se possa tornar numa lei universal”. Assim, uma sociedade deve assumir-se como livre, em que cada um pode e deve ir à procura dos seus objetivos, mas baseando as ações em princípios concedidos pela razão. Assim, é esta a fonte da moralidade, sendo esta a sua finalidade, a de solucionar os problemas metafísicos através desta “lógica transcendental”.
É um sentido de dever que leva a que os indivíduos se comportem de uma maneira moralmente correta, sendo que são as suas intenções e motivações que determinam se uma ação é ou não certa. Aquilo que é bom intrinsecamente ou bom sem ser qualificável não é traduzível num conceito ou numa caraterística, mas somente naquilo que se pode assumir como boa vontade. Isto porque as consequências de uma ação não conseguem descortinar se uma ação é boa ou não, pelo motivo de que o sujeito que a faz pode ser motivado por maus princípios ou até más consequências onde o princípio inicial e fundamental da ação era algo de positivo e de proveitoso. A alteridade, ou o outro, é olhado como alguém a agir como um fim e nunca como um meio, um fim que é sempre visto como universal. O comando desta universalidade pertence ao sujeito e à sua razão e a participação civil é, assim, sempre assegurada como um dever no sentido do bem comum. São as primeiras premissas que fazem antever os ideais de paz universal e de uma cooperação internacional, necessários para Kant.
No entanto, como é que a estética entra neste mundo de perceções que fazem o conhecimento, apesar de haver outras coisas nas quais aquilo que existe a priori pesa? A estética é resultado de um julgamento desinteressado, que se materializa numa sensação de prazer, que advém do contacto sensorial que se estabelece com o objeto. É uma contemplação de reflexão, que se concretiza de forma subjetiva e individual, e que permite concluir que o sentido de beleza é um resultado de um contacto entre as sensações e as emoções. Tratam-se quase de asserções sintéticas, que agregam diferentes predicados e sujeitos. No entanto, opostas a estas, estão as analíticas, aquelas que são inequivocamente verdadeiras quando se tem o conhecimento dos termos empregues – como assumir que um membro da família o é. De igual modo, as asserções analíticas contêm o seu predicado no seu sujeito, mas é um conter que é um existir inalienável do sujeito, o que, analisando os conceitos da asserção, permitem assegurar a sua verdade. Nas sintéticas, isso não acontece, já que o sujeito nem sempre contém o seu predicado (como um indivíduo e o seu peso, ao contrário do que seria um indivíduo e o seu cérebro).
As suas obras de referência são, entre outras, a “Crítica da Razão Pura”, lançada em 1781. É aqui que está o grande núcleo do pensamento do filósofo, procurando estabelecer limites e explicar a metafísica aos olhos de uma razão que é problematizada, antes e depois do conhecimento. Estabelece paralelismos com os seus predecessores, como David Hume, John Locke ou René Descartes, em relação às fontes de conhecimento do mundo. Os objetos são as tais representações produzidas pelas formas concedidas pela intuição, sem serem determinações daquilo que as coisas são em si, já que os sentidos não conseguem dar resposta tão precisa. É o que aprova a existência do conhecimento a priori, algo que é universal e fundamental na dimensão do conhecimento (a epistemologia), sem conhecer exceções. Já o que se forma a posteriori está sempre sujeito a alterações e a conhecer exceções da sua existência. É a resposta que dá ao ceticismo de Hume, ao empirismo de Locke e ao racionalismo de Descartes, procurando quase uma síntese das suas tradições filosóficas.
“Se todo o nosso conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que ele deriva por inteiro da experiência.”
“Crítica da Razão Pura” (1781)
Outras obras que se destacaram foram “História Universal da Natureza e Teoria dos Céus” (1755), onde Kant apresenta uma cosmologia em que os corpos celestes são estanques, sendo que o Sistema Solar seria uma pequena réplica de outras galáxias, onde se enquadra a Via Láctea. “Crítica da Razão Prática” (1788) é quase um seguimento da “Crítica da Razão Pura” e aprofunda a importância do imperativo categórico, em que a livre vontade tem um papel importante, em que a liberdade é sinónima de autonomia. Já “Metafísica da Moral” (1797), que também reforça os conceitos associados à humanidade como fim último da ação e do dever que cada um tem para com o mundo.
“Crítica do Julgamento” (1790) desenvolve um olhar atento em relação à estética e à teleologia (o estudo das finalidades da ação), em que a tónica é posta num olhar sobre a ação em relação aos seus fins; para além de procurar o estudo dos limites do que se pode julgar, envolvendo a dimensão da memória e até dos sentimentos. Os próprios conceitos de “sublime” (em conjunto com “aceitável”, “bom” e “bonito”, são os quatro julgamentos estéticos possíveis) e de “génio” (entendido como o inverso daquilo que é o julgar, sendo que o julgar determina o que é bonito ou sublime, mas o génio produz aquilo que é bonito ou sublime).
A última grande obra seria “A Religião nos Limites da Mera Razão” (1793), onde Kant coloca a moralidade num discurso teológico, afirmando-se como lei. No entanto, o destaque é, também, perceber o que é o mal moral com a referência da presença de Deus, que não é percetível com somente o recurso à razão pura. Assim, também Kant afirma que é impossível contestar Deus através da razão. Com a presença de Deus em mente e afiançada, faz uma crítica às instituições ligadas à Igreja, tendo em conta os excessos ritualísticos e a sua profunda hierarquização. Mais do que garantir a correção moral, Kant criticava a idolatria a Deus, o que sustenta a posição de distância e até de animosidade em relação à Igreja. A seus olhos, Jesus Cristo seria, antes, a disposição moral pura do coração, que agradaria, de forma plena, a Deus.
A felicidade é o estado em que se encontra no mundo um ser racional para quem, em toda a sua existência, tudo decorre conforme o seu desejo e a sua vontade; pressupõe, por consequência, o acordo da natureza com todo o conjunto dos fins deste ser, e simultaneamente com o fundamento essencial de determinação da sua vontade.
“Crítica da Razão Prática” (1788)
A influência
Immanuel Kant contribuiu decisivamente para que se alterasse o paradigma do pensamento filosófico ocidental. Em vez de Deus, foi o ser humano e a sua razão que passaram a ser o centro da discussão do pensamento e da ação humanas, vista a impossibilidade de se poder filosofar sobre o que é exterior a Deus. A filosofia crítica começou, de igual modo, como tradição filosófica com Kant, na forma como se exploram os limites da capacidade e até da razão humana através do pensamento filosófico. O conceito do imperativo categórico também se tornou determinante, já que atribuiu a responsabilidade e o dever a cada indivíduo; assim como o assumir de condições de possibilidade na experiência, em que a dimensão a priori acaba por condicionar a criação de conhecimento, tornando-o possível de ser criado. A necessidade de perceber este pano de fundo torna-se fulcral para que a experiência humana, objetiva e individual, possa ser efetivada através da mente humana, recorrendo à autonomia moral, almejando a humanidade sempre como fim e não só como meio.
Assim, o seu pensamento contribuiu para que muitas correntes filosóficas se pudessem formar e ganhar sustentabilidade, como o marxismo, o positivismo, a fenomenologia, o existencialismo, o estruturalismo, o pós-modernismo, entre outros. De igual modo, foi quase o pai do idealismo alemão, que abriu as portas a pensadores, como Georg Friedrich Hegel, ou autores, como Friedrich Schelling ou Johann Fichte. A perspetiva exterior que Kant assumiu, transcendendo a sua própria existência e viajando até à mente, que só conhece ideias ou fenómenos, permitiu perceber as coisas em si, que são independentes do pensamento e da experiência. Foi assim que se fechou a esfera daquilo que pode racionalizado e julgado. Os restantes pensadores do idealismo alemão procuraram extrapolar os limites impostos, que até convidou a que os alemães assumissem um romantismo que se inspiraria no que aconteceu na literatura, com o Sturm und Drang (à letra, tempestade e ímpeto). Aqui, a diferença é que a alma, vista por Kant como algo imaterial e, como tal, impossível de ser comprovado pelos sentidos, seria a plataforma onde se catapultariam os demais pensadores para um caminho mais abrangente e avesso a fronteiras.
Hegel seria alguém que procurava dar um ênfase ainda mais destacado à dimensão ética de cada comunidade, para além de poder, através da razão, procurar o infinito no sentido do desejo. Kant seria, de igual modo, alguém usado para tentar suster a queda do catolicismo no Reino Unido, no século XIX. Porém, seria, nesse mesmo século, Arthur Schopenhauer o mais contagiado pela febre kantiana. Foi um crítico da existência de objetos em-si, já que não se conseguia comprovar que a dimensão a priori condicionava o pensamento e a ação humanos, para além de defender que não existiam para lá da vontade racional. Schopenhauer, assim como Hegel, contribui para que a filosofia de Kant ganhasse preponderância nesse mesmo século XIX e no século XX.
Tanto que levou a que se criasse um novo movimento denominado “neo-kantianismo”, que seguiu as pisadas da crítica feita por Schopenhauer, e que se subdividiu em diferentes variantes, muitas delas dispersas pelas várias universidades alemãs. Outra das diferenças do kantianismo é o peso do socialismo e do próprio judaísmo, voltando-se para a importância da intuição, mais do que os conceitos do movimento. Mais perto da atualidade, o desenvolvimento da psicologia e até da neurociência baseou-se nos preceitos de Kant sobre a consciência e a sua unidade. De igual modo, a teoria política foi indiretamente alinhada pela filosofia moral kantiana, em especial a sua universalidade. Também a linguística de Noam Chomsky, a psicologia infantil de Jean Piaget e a sociologia de Max Weber pesaram no percurso que Kant ajudou a percorrer ao longo do tempo, pelos espaços.
Immanuel Kant foi imperativo no pensamento filosófico ocidental, abrindo as portas para uma visão cada vez mais centrada no ser humano, na sua dimensão mental e racional. O enfoque passou a ser, de forma clara e distinta, dado ao desenvolvimento do conhecimento e ao estudo das suas origens, tendo em conta aquilo que existe antes do próprio conhecimento se poder formar. Kant abriu horizontes que deixou de parte o excesso empírico e o fardo racional, procurando fundi-los num novo horizonte, acessível a partir da transcendência. De Deus, a bússola voltou-se para o ser humano como a orientação do pensamento filosófico daí em diante, pautando o paradigma que as luzes do Iluminismo ajudaram a consolidar. Foram as mesmas luzes que, a posteriori, fizeram com que Kant permaneça a vingar pelos séculos, no entendimento do conhecimento.