À luz da naturalidade
Estou rodeado por uma luz de Inverno de final de tarde, filtrada pela neblina costeira que me precede. Aquele típico entardecer cinzento e laranja que surge como um sonho no meio de tantas semanas sem luz, sem alegria. Para não variar, estou a escrever isto dentro de um autocarro quase vazio, algures numa auto-estrada que me há-de levar a um refúgio qualquer. Gostava de não ter que recorrer a fugas de última hora para recuperar de sensações inflamadas pela tristeza e pela melancolia exagerada. Mas na realidade, estas viagens de autocarro, mais do que o destino final que me aguarda, são como que uma lavagem espiritual que me refresca a alma. É como se estivesse a viajar no tempo, sem estar realmente em lado nenhum. Nenhures – é como identifico esta caixa de metal ambulante que percorre a estrada com luzes interiores azuis, discretas o suficiente para permitir que os seus passageiros durmam um sono revitalizante ou, como eu, consigam estar disfarçadamente sozinhos a olhar para fora da janela enquanto organizo os meus pensamentos.
Está a chegar aquela parte do dia em que a luz do horizonte é apenas suficiente para distinguir as silhuetas do mundo. Da mesma maneira que o nosso espírito escurece algumas sensações em silhuetas adormecidas, que de vez em quando encontram alguma claridade e nos assolam com uma série de imagens e frustrações diabólicas. Que belo dia para viajar.
Não sei se estou assim, frustrado, porque já é esta a minha maneira natural de viver, ou se a frustração foi uma consequência óbvia das minhas últimas leituras – que extrapolaram para memórias, que se transformaram em melancolias – que se materializaram numa frustração natural pela falta de naturalidade das pessoas. Há uns quantos dias acabei de ler a obra Call Me By Your Name, de André Aciman, (ainda não traduzida para português) na qual é baseado o novo filme do realizador Luca Guadagnino com estreia nacional marcada para esta semana, e que tanta expectativa tem criado no público em geral. Foi nessa mesma expectativa que me decidi a ler o livro, para depois ver a obra cinematográfica com um olhar entendido naquilo que é será a sua essência. Assim, deparei-me com uma leitura brilhantemente dramática e genialmente explorada do ponto de vista emocional. Uma relação entre duas pessoas que vai tropeçando na naturalidade do seu quotidiano excepcional, e que se desenrola no constante escrutínio do pensamento do narrador. Mas sem me adiantar muito no resumo da obra, que não é para isso que estou aqui a desabafar, devo reforçar a ideia de que tudo o que acontece a estas duas personagens é consequente da naturalidade das coincidências e aleatoriedades das suas vidas, mais ou menos reflectidas, mas que apenas acontecem por lhes ser dado espaço para viverem.
Enquanto lia o livro, ia-me sentindo cada vez mais revoltado com as pessoas, com o mundo. Mais ainda com a sua artificialidade e com a falta de interesse que reina as suas vidas. Afinal, onde parou a naturalidade de conhecer pessoas no quotidiano empírico de cada um? Onde ficou a capacidade de nos surpreender-nos com um sorriso não calculado? A partir de quando é que ficou aceitável estarmos disponíveis apenas atrás do ecrã de um telemóvel e renunciarmos à beleza de realmente nos entregarmos à aleatoriedade da vida? Devo ser dos poucos idealistas que ainda acredita na oportunidade de me surpreender com as pessoas que se cruzam comigo diariamente, se é que isso ainda é possível. Refiro-me a surpreender verdadeiramente – não desta forma desinteressante com que toda a gente olha uns para os outros e se selecciona, na expectativa de alimentar a falsa impressão de que se é bem-sucedido. Estou cansado da facilidade das conversas à luz dos ecrãs e anseio pela altura em que toda a gente voltará a crer realmente sentir as conversas, olhar umas para outras, ver-se realmente. Não me interessa evidenciar o melhor de mim atrás de uma app, para depois cair numa artificialidade social, em que aquilo que nos torna únicos fica escondido debaixo de uma capa de clichés e imagens comuns. Não me considero um romântico, considero-me um realista atrás da naturalidade que ficou apenas em histórias como a de Aciman.
Que belo dia para viajar.
A luz pousou no horizonte e foi substituída por um lusco-fusco que fundiu os restantes passageiros com a silhueta da paisagem, agora quase preta. A única excepção são os focos de luz que partem das suas mãos e se refractam nas suas nucas descaídas. Essa luz não é natural como a da paisagem que não estão a ver. Essa tende a tornar-se numa escuridão maior que a da noite que se aproxima, e que os impedirá de desfrutar da naturalidade dos dias que ainda lhes restam.
Crónica de Pedro Soveral Elias
Fotografias de minimore