A memória e o esquecimento em “Os Informadores”, de Juan Gabriel Vásquez
Quantos de nós não se arrependem de acções tidas no passado? A maior parte do tempo enterramo-las a ponto de seguirmos a nossa vida como se nunca tivessem existido. Para nós, aquele que somos nada deve àquele que havíamos sido, é um passado deixado para trás, esquecido, ultrapassado. Mas, se as nossas acções afectaram outros, como podemos negar o poder da lembrança a quem com elas sofreu? E como podemos viver com a lembrança de algo que estava esquecido?
Os Informadores, do colombiano Juan Gabriel Vásquez, editado agora em português pela Alfaguara, recorre à história dos imigrantes alemães que, fugindo do nazismo, se fixaram na Colômbia para falar precisamente de memória e esquecimento, de redenção e de perdão.
Gabriel Santoro, jornalista, decide escrever a história de Sara Guterman, uma imigrante alemã judia, amiga de seu pai, que chegara à Colômbia precisamente nos anos que antecederam a 2ª Guerra Mundial. Face aos factos que veio a saber ao entrevistá-la, quis ele próprio mostrar o duplo sofrimento destes alemães que, na Alemanha, eram considerados estrangeiros, e, no estrangeiro, alemães, e, consequentemente, nazis. Perseguidos através de “listas negras”, incentivos a denúncias, despojos e represálias anti-alemãs, estes refugiados que tentavam agora reerguer a sua vida acabavam duplamente castigados.
Quem não compreende o impulso de Gabriel é o seu homónimo pai, respeitado professor de oratória que, poucos dias depois da publicação do livro, escreve uma crítica avassaladora contra o livro do próprio filho. Os Informadores é, portanto, um confronto entre Gabriel e Gabriel, pai e filho, um confronto entre memória e esquecimento. Mais tarde, ao descobrir que a rejeição do seu livro se prendia com factos esquecidos do passado de seu pai, Gabriel percebe que a rejeição se deve, então, ao lugar da memória nas nossas vidas. Tudo o que o seu pai quisera fora esquecer o que havia feito, enterrando-o para ser capaz de seguir em frente com a sua própria vida.
“Vocês tornaram públicas coisas que muitos de nós queríamos esquecidas. Vocês recordaram coisas que, a muitos de nós, demoraram muito a perder de vista. […] E aqueles que tinham feito as pazes com esse passado, aqueles que através das orações ou do fingimento tinham conseguido algum tipo de conciliação, agora estão outra vez no começo da corrida.”
É um conflito entre quem quer o silêncio e quem espera finalmente quebrá-lo para que justiça seja feita. O pai, que através das suas aulas de oratória toda a sua vida se dedicara a ensinar a falar, queria precisamente esquecer um momento em que falara demasiado. Precisamente por isso Sara o deixara fora das suas memórias, mas a mera aproximação a esse tempo de culpa é suficiente para destabilizar o velho Gabriel Santoro.
Na sua estrutura, e mesmo na sua obsessão com o opaco e o difuso da memória e das acções passadas, com o que está escondido atrás da história que de nós contamos, Juan Gabriel Vásquez aproxima-se a outro escritor de língua espanhola, Javier Marías, mesmo que não chegando à mestria que este último tem sobre a linguagem e a frase. O jogo de sombras é o mesmo.
Não deixa, portanto, de ser curioso o jogo que Vásquez estabelece com a vida do próprio Gabriel pai. Ao saber que terá de ser operado ao coração num procedimento de risco, o conflito com o filho e com Sara extingue-se, pai e filho voltam a aproximar-se para que o pai possa viver o tempo que lhe sobra em paz. No fundo, a doença permitiu-lhe voltar a colocar o passado atrás, enterrá-lo para que possa viver. Gabriel volta a estar com Gabriel, passa os dias em casa do pai e é o mais próximo que ambos haviam estado em muitos anos. Todo o conflito desaparece e o pai ganha uma vitalidade que meses antes parecia impossível. E só aí o filho descobre a verdadeira extensão do que o pai fizera.