A necessidade de repensar a cultura desportiva em Portugal
Desde que me lembro que vejo futebol e que adoro futebol. Cresci a ver as grandes vedetas nos mundiais, nos europeus, nas Ligas dos Campeões. A admirar os grandes cromos do futebol português, as figuras mais ou menos caricatas, os Barcelonas e os São Pedros da Cova, mas, acima, de tudo, a identificar-me e a adorar uma instituição: o Sporting Clube de Portugal. Foram anos de altos e baixos mas o amor permanece. É irracional, como todos os amores verdadeiros. No entanto, feita a declaração de interesses, este artigo não é uma ode nem uma dedicatória de amor ao Sporting, mas antes aos valores que me levaram a ser deste clube. Uma palavra que, hoje em dia, deixou de ser tão cara e é cada vez mais ouvida: o ecletismo.
Uma instituição desportiva ter várias modalidades ativas sempre foi significado de interesse e de investimento (financeiro e humano) no desenvolvimento dessas mesmas modalidades. É um sinal de que quer investir nos seus atletas, no seu staff e no interesse dos adeptos por estas outras formas de fazer desporto. Porque nem tudo é futebol, muito menos masculino. Foi uma premissa que, consoante comecei a diversificar o desporto que via, se foi aprofundando no meu íntimo. Comecei a vibrar com o futsal, com o hóquei em patins (não necessariamente com o Sporting, que nem tinha equipa profissional na altura, mas vivi muito tempo numa cidade onde o hóquei é rei há já umas décadas), com o andebol, com o basquetebol, com o voleibol. Até deu para vibrar com ténis de mesa e ciclismo (esta sem ser necessário ter os clubes pelo meio, embora a história nos dissesse algo distinto).
Inicialmente, tudo em tons de masculino. Gradualmente, fomos vendo o feminino a ganhar destaque no desporto coletivo. O voleibol feminino sempre foi pioneiro, mas foi aparecendo o futebol, o futsal, o hóquei, modalidades que ganharam tanto e tanto destaque entre passado e presente. Percebi que o desporto não é só de alguns, mas antes de todos. Não há diferença nos aspetos da competitividade e do entusiasmo que assistir a um jogo traz. O que se passa dentro das quatro linhas agarra-nos da mesma forma e apaixona-nos quando vemos a paixão que os atletas e as atletas colocam em campo, na perspetiva de ganhar o jogo.
A importância dos clubes (que podem ser associações e, vendo bem, grupos culturais) é determinante. Do maior ao mais pequeno, têm identidades próprias, constituídas nas suas fundações e cuja história não deixa esquecer. Por vezes de lugares, em outras de comunidades, mas sempre com origens bem traçadas. São eles que carregam o quotidiano das competições nacionais das principais modalidades que se praticam em Portugal. São eles que fazem com que grande parte dos portugueses, mobilizados pelo fenómeno do futebol e divididos entre as várias associações desportivas que existem (em especial os “grandes”), acabem por se sintonizar com esses novos espetáculos, as suas regras e a sua arte. Pelo caminho, nascem seleções nacionais fortes e competitivas em sede internacional, crescendo em proporção ao investimento que lhes são dedicadas.
O meu périplo pelas modalidades (do Sporting, é certo) nos últimos doze meses permitiu-me tirar mais algumas conclusões sobre tudo isto. Para além do fenómeno contagiante e vibrante que faz tema de conversa em tantos almoços e cafés da manhã que é o futebol, quis ver mais e conhecer mais de mais. Comecei por ver uma final de taça de andebol e vi um pavilhão quase cheio para ver um jogo sensacional, rasgado até ao fim entre duas das melhores equipas nacionais e que vão dando cartas lá fora. Dois prolongamentos foram a cereja no topo de um bolo que chegou trémulo, tamanhos nervos que se iam instalando.
Mais três dérbis Porto-Sporting, agora no basquetebol, no hóquei e no voleibol feminino. Mais três lugares onde a paixão pelo jogo notava-se à distância. Notava-se o envolvimento dos adeptos no desenrolar da partida, assistindo a cada momento como se fosse o mais importante. Notava-se que, naquele momento, o futebol não era prioridade. Era o que se assistia naquele momento, naquele lugar. Para além desses jogos maiores, ainda deu para ver outras modalidades, entre elas mais um dérbi, agora de futsal feminino. Não o considero nos outros três dérbis, porque a massa adepta não lhe fez jus (o horário da partida, 13h00, não o favorecia). É um sinal claro do que a modalidade precisa de evoluir em todos os aspetos – na logística, no investimento e na promoção -, não tendo grande competitividade interna que alimente o entusiasmo por esta.
Um pouco à imagem do que se viu no hóquei feminino, onde, num jogo de primeiro escalão, num sábado à noite, onde pouco mais de duas dezenas estiveram num pavilhão secundário de um clube com pergaminhos na cidade do Porto – o Académico Futebol Clube, forte na formação e, também, no célebre ecletismo. Talvez por isso também tenham acabado a outra das equipas que esteve em competição agora no fim da época, por mais que mostrassem uma atitude e uma paixão pelo jogo inexcedíveis. Porém, também há boas surpresas: no Castêlo da Maia, os seus recintos encheram para ver a equipa de voleibol masculino e uma de formação do feminino, com grande adesão e motivação por parte do seu público. Num jogo da Taça de Portugal de futebol feminino, num domingo marcado por nevoeiro cerrado, vimos estádio cheio de uma equipa de terceira divisão e sentimos o calor humano e a ligação estreitíssima entre adeptos e jogadoras. O final do jogo foi caloroso e emotivo, havendo uma sintonia entre plateia e artistas que até motivaram palmas dos adversários.
Também houve espaço para ir a Caxinas e conhecer mais um bastião do futsal (masculino) português nos dias que correm, com casa cheia e corações nas mãos a ver cada movimento alucinante dos membros da quadra. É prova cabal de que o futsal está para as curvas, com tantos títulos internacionais e competições cada vez mais competitivas. Por mais que questões políticas e até legais acabem por condicionar os espetáculos nos seus bastidores, mal o apito soa pela primeira vez, tudo é colocado de parte e o jogo jogado é quem mais ordena.
É importante não esquecer outras modalidades que merecem mais olhares: as artes marciais, os demais desportos de combate, a ginástica (artística), o râguebi, a vela, o surf, o pólo aquático, o atletismo, o ténis de mesa, os desportos motorizados (entre tantos outros) e até os e-sports. O desporto é uma das forças mobilizadoras mais impressionantes e convergentes da humanidade, porque dá sentido ao corpo, mente e alma ao mesmo tempo, quando disputado com paixão, com intensidade, com ética, com talento(s). De igual modo, é quase estruturante, dado que, em todos os países, nos vamos deparando com grandes atletas e, por detrás deles e delas, grandes clubes.
Um incentivo que fica para o futuro é permitir que não haja rótulos nem fatores discriminatórios que impeçam crianças e jovens de praticar os desportos que pretenderem. Para além dos reconhecidos benefícios na sua saúde física, mental, emocional e até espiritual, é um contributo importante para o ser humano (individual) e o ser coletivo (social). Um pouco à imagem da sábia interpretação do professor Manuel Sérgio, com a sua afamada noção do “movimento intencional de transcendência”, o desporto é uma mais-valia para o um, para o todo e para o tudo. Pede-se que não se confine ao futebol, por mais fantástico e agregador que seja.
Os clubes têm uma responsabilidade social imensa: para além de contribuir para a formação de seres humanos, no seu percurso de formação desportiva, são os responsáveis por impulsionar as modalidades desportivas através do seu nome e do seu peso social nacional e internacional. São os grandes agentes de mobilização dos miúdos aos graúdos, do mais local ao mais nacional, dos masculinos aos femininos, do esforço físico mais ou menos exigente. São aqueles que têm a palavra no que toca a dinamizar a prática competitiva de desporto.
Não é por falta de interesse, nem por falta de conhecimento que Portugal não é mais eclético. É, antes, pela cultura desportiva que existe, em muito arrebatadora pelo futebol e pelas questiúnculas que enchem manchetes dos jornais desportivos: erros de arbitragem, episódios de corrupção mais ou menos ativa, entre outros fenómenos que despoletam atentados aos próprios direitos humanos e à Constituição que nos é tão substancial. Uma cultura desportiva, que espelhe a cultura de um lugar, de uma região, de um país, pode e deve ser equilibrada, variada, sustentada pela vontade daqueles que praticam, dos que admiram e apreciam as modalidades e das principais instituições desportivas em Portugal. Com ética e com valores de desportivismo que são basilares na prática e na teoria.
Apesar de tudo, a cultura desportiva portuguesa é cada vez mais sensível para as modalidades e para o desporto feminino e jovem. Consciente da capacidade que o desporto tem para mitigar discriminações de ordem social e cultural, os clubes procuram, na sua comunicação e na sua abordagem prática, ter estes aspetos em conta, sob forte escrutínio dos próprios atletas e dos seus adeptos. O que falta fazer em Portugal é pensar que o desporto é muito mais que o futebol. Os pavilhões enchem e as ruas enchem com a prática desportiva, que se desloca dos grandes (e dos pequenos) estádios para estes espaços alternativos. O caminho faz-se caminhando e o desporto em Portugal tem o seu caminho à vista. Contamos com todos para que sejamos muito mais do que onze homens contra outros tantos.