A nossa herança cultural refletida na relação de nós com o Outro

por Diogo Senra Rodeiro,    9 Outubro, 2019
A nossa herança cultural refletida na relação de nós com o Outro
Detalhe de “La réproduction interdite” (1937), de René Magritte
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Sendo de Coimbra, e estando desde cedo consciencializado sobre a importância de todo o património que nos rodeia e abarca, não foi senão até 2015, aquando do meu Erasmus em Budapeste, que tomei uma posição mais sólida quanto à nossa própria herança cultural. De certa forma, foi o Estrangeiro (stranger ou foreigner) ou o Outro (other) que me convidaram a conhecer a mim próprio.

Cultura é a forma como nos relacionamos connosco próprios, o que leva a que, muitas das vezes, não percebendo ou não conseguindo ler, de uma forma compreensiva o suficiente, qual é a relação que temos com o espaço que habitamos Esta relação pode mesmo gerar apatia ou até uma anomia social. Esta é sobretudo bastante visível nas gerações mais novas. Esta é uma consequência grave, como descreve Orwell: The most effective way to destroy people is to deny and obliterate their own understanding of their history.

Por isso, tendo voltado da Europa Central, e tendo percorrido locais com uma história longa e deveras respeitável, com uma arquitetura que Anthony Bourdain considerou, inclusive, “pornográfica” (Parts Unknown, Budapeste), o choque de voltar a casa deu-se como isso mesmo – um choque. O lugar que eu conheci durante todo o período que foi até aos meus 20 anos, momento em que fui estudar 5 meses para o estrangeiro, apresentou-se, para mim, mais estrangeiro do que os locais explorados. Falar com ou aprender a língua do Outro é conhecermos algo sobre nós que não conhecemos:

“They call it the travel bug, but really it’s the effort to return to a place where you are surrounded by people who speak the same language as you. Not English or Spanish or Mandarin or Portuguese, but that language where others know what it’s like to leave, change, grow, experience, learn, then go home again and feel more lost in your hometown then you did in the most foreign place you visited.”

Kellie Donnelley

Esta é a culpa de não (re)conhecermos devidamente ou de conhecermos extensivamente a nossa história e de já não experienciarmos nada cada vez que vamos para fora. Coimbra, a minha terra-natal, é um lugar estritamente incomparável no panorama europeu, acima de tudo ao nível intelectual (cf. Cursus Conimbricensis e a Geração de 70 são apenas dois dos mais flagrantes exemplos disso mesmo).

Mas afinal o que importa é que as gerações mais novas se conectem com renovados olhos na realidade já existente, moldando-a consoante os desafios do tempo corrente, para que não caia em marasmo a cultura como os jovens. Apesar de bastante abstrato ou altamente etéreo, há que reconhecer que a colina cujo topo é ocupado pela Universidade de Coimbra, num convertido palácio do século XVIII, seria, quer ao nível físico, quer ao nível cultural, diferente. Muito provavelmente diferente para pior. Acima de tudo porque “uma universidade deve ser uma escola de tudo, sobretudo de liberdade” (Bernardino Machado, 1904).

Foi tendo em conta este ideal em mente que, em setembro de 2017, uma equipa formada de alunos de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da UC organizou o University of Coimbra International Model United Nations – UCIMUN, a primeira simulação internacional das Nações Unidas em Portugal, tendo contado com jovens de cerca de 10 países, contabilizando, no total, 70 alunos. Através da partilha da herança cultural e da discussão livre de assuntos prementes que decorreram nos dias do evento, que é parte da herança europeia que pertence a todos aqueles que vivem de Lisboa até aos Montes Urais, decidimos prestar homenagem tomando parte ativa naquele que é o único continente “caminhável” de uma ponta à outra. Um continente onde os cafés da Brasileira de Pessoa aos cafés da Viena de Freud, a Paris de Beauvoir ou a Budapeste de Lukács sempre desempenharam o papel da real praça pública onde o conhecimento foi sempre gerado. É esta a “Ideia da Europa” que George Steiner nos fala.

O declínio do Ocidente, que Spengler começou a falar no início do século XX, só se dá se eu excluir o Outro de conhecer a minha realidade, bem como vice-versa. A tarefa parece demasiado hercúlea, mas, na verdade, faz-se apenas através de uma auscultação e de uma atenção redobradas. Porque as respostas apresentam-se nos nomes das nossas ruas, edifícios ou espaços públicos, naqueles e naquelas que, durante um período, se aperceberam que é em Coimbra, ou melhor, a partir dela que se “pode fervilhar com tudo o que vem da Europa”. O mesmo se aplica a qualquer geografia local na Europa, que tem de fazer um combate ativo ao Global.

Só conhecendo o Outro nos podemos conhecer totalmente. Por isso é que os discursos devem sair do pedestal, merecendo uma verdadeira discussão com aqueles que partilham, bem como com aqueles que pertencem a diferentes comunidades com diferentes abordagens quanto ao que os rodeia e de que forma se lêem os seus monumentos e tradições. Só para que não caíamos no último pecado contra a alma, que é o orgulho. É dentro do orgulho que as culturas se fecham e, passado um certo ponto, perecem ou apodrecem.

Friendliness means freedom. (…) The politics of beauty is the politics of hospitality. Xenophobia is hatred, and ugly. It is an expression of a lack of universal reason, a sign that society is still in an unreconciled state. How civilized a society is can be judged by its hospitality in particular, indeed its friendliness. Reconciliation means friendliness.” 

Byung-Chul Han, The expulsion of the other, p. 17/18

A Europa já foi, em tempos, hostil mas, depois desse período, tornou-se um continente hospitaleiro. Hoje, há um diferente Outro (o “refugiado”) que estamos a excluir. Se não sabemos a nossa história, estamos a ser hostis. É a hospitalidade que é o oposto da hostilidade.

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