A persistência da memória em “Uma Solidão Demasiado Ruidosa”, de Bohumil Hrabal
“Uma Solidão Demasiado Ruidosa”, reeditado agora pela Antígona, é um livro de 1976, de Bohumil Hrabal, um dos maiores escritores checos do séc. XX. Obra censurada e publicada em samizdat, uma forma de activismo dissidente onde obras censuradas pela antiga URSS e países apoiantes acabavam por ser impressas clandestinamente e depois distribuídas.
O anti-herói deste romance, Haňta, que em comum com Hrabal tem o seu amor pela Cultura e pela cerveja, e que a narra na primeira pessoa-, era, mais que tudo, um culto, independentemente da sua vontade. Tratava-se de um guardião do conhecimento e da cultura por obra e acaso da vida, sendo esse o seu principal ofício que cumpria com devoção. Haňta não era um mero Sísifo apesar da constante repetição, ao longo dos oito capítulos, dos seus orgulhosos “trinta e cinco anos” que tinha de ofício numa cave fedorenta do subsolo de Praga onde prensava, orgulhosamente, quase duas toneladas de livros por mês, em média. Não é esse Sísifo por não se ter resignado à continuação e destinado somente a um lavor perpétuo e imutável junto da sua prensa. Desde logo porque o fazia com gosto. Não pelo ofício em si, mas pelas suas “regalias”: os livros que pela sua raridade, qualidade ou autor levava para casa e que já enchiam todas as divisões da mesma, deixando o espaço estritamente necessário à sua existência – Haňta vivia com o receio que uma das suas estantes lhe caísse em cima durante a noite e o peso dos livros o esmagassem.
Esta obra intemporal de Bohumil Hrabal, é repetidamente conotada ao seu período político e histórico-coetâneo, A Primavera de Praga, de 1968. Porventura, sobretudo se nos focarmos na história paralela que Haňta nos conta, onde nos esgotos de Praga, os “ratos” e as “ratazanas” lutam pela hegemonia desse submundo, ou se quisermos, quando Haňta nos transmite objectivamente a importância das obras literárias de que tanto nos fala ao longo da sua obra. Ainda que o seja, “Uma Solidão Demasiado Ruidosa” nunca poderá ser “só” isso. A sua perpetuidade obriga-nos a ir além dessa consideração política à época. Hrabal e o seu Haňta permanecem até hoje por algo que é comum a todas as obras: se o quisermos, é também um olhar antecedente para os tempos de hoje, e é essa permanente actualidade de uma obra que a diferencia das demais e a perpetua na sua essencialidade.
Nesse aspecto, a obra de Hrabal ganha uma dimensão acrescida. Encontram-se facilmente os paralelismos de então e que permanecem aos dias de hoje. A substituição da pequena prensa de Haňta por uma maior e mais moderna, capaz de fazer de uma assentada aquilo que a sua fazia em várias vezes, a substituição da mão de obra por jovens mais “qualificados”, que usavam luvas despreocupadamente – ainda que estas os fizessem estar incapacitados de sentir o toque do livro como refere Haňta com pesar – e a sua ânsia de passarem férias na Grécia se nada conhecerem da sua riqueza cultural, arquitectural e as mentes de Platão ou Sócrates. Tudo isso afligia Haňta, como poderiam as coisas perder tanta palpabilidade, tanto significado, ser tudo tão à superfície.
No meio dos livros e dos jarros de cerveja, Haňta leva-nos ainda, ao longo desta prosa, em digressão por algumas das suas histórias de vida, onde Hrabal aproveita para dar largas ao seu sentido de humor peculiar – grotesco até -, como é o caso do nosso protagonista a comparar o corpo do seu falecido tio, derretido no linóleo, a um “camembert muito mole” (que o próprio limpa a troco de uma garrafa de rum), ou os episódios “azarados” da sua amada Mancinka.
“Uma Solidão Demasiado Ruidosa” é, antes de mais, uma declaração de amor à Literatura, à descoberta de lugares novos sem se sair do mesmo sítio, ao Conhecimento, ao cheiro e toque ímpar de um livro. É também uma homenagem – porque não? – a todos nós, que em alfarrabistas recém descobertos ou indicados por amigos bibliófilos, ansiamos por descobrir um pequeno tesouro em forma de livro de autor que admiramos ou uma “simples” edição antiga de uma obra conhecida – “eu que não podia viver sem a surpresa de a cada instante vir a repescar, no meio do papel repelente, um belo livro como prémio, tinha de ir empacotar papel branco, de uma brancura desumanamente imaculada” (pág. 116). Hanta somos todos nós, também, e Hrabal, que neste pequeno livro de graciosa e grandiosa fluência intelectual, se eterniza a si, à sua obra, e a todos os autores que admirou também.