A ponte entre o techno e a pop de ‘Kelly Lee Owens’
Há aqueles álbuns que nos surpreendem pela familiaridade evocada, ao mesmo tempo que não nos lembram de mais nada pré-existente. Neste momento, o sempre expansivo universo musical dificilmente criará algo totalmente novo, confiando mais em fundir géneros para dar origem a música que, pelo menos, soe diferente. Não que a mistura entre techno e pop não tenha sido feita antes; aliás, antes do género techno existir, criou-se a synthpop, também conhecida como technopop. Tal deveu-se à ascensão dos sintetizadores, e seu reconhecimento como instrumentos legítimos, que introduziram uma série de novos sons, característicos da new wave.
O que a galesa Kelly Lee Owens faz no seu álbum de estreia homónimo é, precisamente, buscar diversas sonoridades dessa new wave, e vestir-lhes uma roupagem moderna, assente na música electrónica actual. Para isso, recorre à sua própria produção, inspirada por contactos com Daniel Avery. Sintetizadores pop, a propulsão mecânica do krautrock minimalista e a voz etérea da artista sobrepõem-se a batidas e baixos profundos. É sempre curioso ver discos de estreia com uma visão tão bem definida, em que tudo parece contribuir para o produto final.
A verdadeira banger “Evolution” é, provavelmente, a canção mais acessível do álbum. Guiada por uma batida techno directa, que soa a um coração mecânico, a canção é, precisamente, um testemunho evolutivo, pela forma como se vai desenvolvendo. Camadas de som vão sendo sobrepostas na canção, o ritmo vai-se tornando cada vez mais rico, o baixo cada vez mais profundo. Ainda assim, continua a soar absolutamente limpa, permitindo distinguir cada pormenor sónico. Acima de tudo, é uma canção que exsuda classe. A curta duração da mesma leva-nos a pensar como seria se, simplesmente, continuasse por mais tempo a crescer, deixando água na boca.
O outro êxito óbvio é “Anxi.”, que conta com a colaboração da norueguesa Jenny Hval. Os sintetizadores ecoam pelo espaço amplo deixado pela produção, no qual as vozes das artistas nos parecem conjurar de longe. Por outro lado, a batida concentrada mantém-nos assentes na terra. Outra canção com o mesmo efeito é a curta “Throwing Lines”, exemplo magistral de pop etérea, em que a voz doce de Owens nos quer embalar, quase desaparecendo no meio das ondas sonoras, ao mesmo tempo que o ritmo materializa a canção. Essa canção demonstra, ainda, a capacidade auditiva da produtora, na qual, inventivamente, inclui um elemento sonoro que soa a uma corda a girar rapidamente. A frequência do som enquadra-se perfeitamente no ritmo, para além de adicionar textura à canção de estrutura relativamente linear.
Para além das qualidades de produtora, Owens é também uma compositora prendada. A construção das canções é interessante e concisa, em que é dado o espaço ideal a cada canção para crescer e transformar-se. “Lucid” e “Bird” são dois bons exemplos em que, subitamente, a canção muda de abordagem. “Lucid” passa de uma meditação com sintetizadores e violinos, para uma batida puramente synthpop, com uma certa ansiedade sempre à espreita que revela as emoções por detrás da música mecânica.
Por outro lado, a finalização do álbum fica um pouco aquém. Depois da alienígena e formidável “Keep Walking”, “8” é uma deambulação electrónica que vale pela viagem, mas acaba por não levar a lado nenhum, onde uma exploração rítmica mais interessante se impunha, deixando uma sensação de incompletude que pede mais música da artista.
O álbum, saído em Março deste ano, tem sido mencionado por algumas publicações musicais como um dos melhores da primeira metade do ano. Pela sua qualidade e visão, consideramos que não deve passar despercebido. Kelly Lee Owens revela-se como uma construção meticulosa, que abre uma janela para uma artista sobre a qual pouco conhecemos, ainda. Para o seu futuro, esperamos nada menos que a ambição concretizada deste primeiro registo.