A sátira racial de ‘A Dança do Rapaz Branco’, de Paul Beatty
É inegável que, na América dos dias de hoje (e em todo o mundo), nascer negro não traz consigo os mesmos privilégios que nascer branco. Num mundo ainda dominado pelo ocidente e criado sobre o privilégio branco, muito se tem discutido quanto à possibilidade de o racismo acabar e de todas as raças poderem viver pacificamente num ambiente de multiculturalidade, onde a cor não signifique mais que um diferente passado. Para os afro-americanos, a presidência de Obama abria uma grande esperança neste sentido, mas, passada a primeira presidência negra dos EUA, o mundo viu-se a braços com Donald Trump e com um renascer do nacionalismo xenófobo um pouco por todo o mundo ocidental, novamente vincando o abundante prejuízo racial e cultural.
Foi nesse contexto que, em 2016, o romance O Vendido, de Paul Beatty, arrecadou o Man Booker Prize. Num romance provocador sobre um negro que tenta reintroduzir a segregação e manter um escravo enquanto produz marijuana artesanal e melancias, o autor queria explorar o que era ser negro nos Estados Unidos da América e abalar as convenções impostas, alargando o mais possível a narrativa no espectro do absurdo, algo que prevalece nas suas restantes obras. A Dança do Rapaz Branco, o seu primeiro livro, originalmente publicado em 1996 e agora publicado em português pela Elsinore (tal como já tinha feito com O Vendido), aborda esses mesmos temas através da história de Gunnar Kaufman, um rapaz negro que, crescendo em Santa Monica, zona quase exclusivamente branca, é obrigado pela sua mãe a mudar-se para o gueto de Hillside quando esta percebe que o seu filho não conhece a cultura afro-americana e tem medo dos seus congéneres.
Nesta toada Swiftiana, com narrativas que são intricadas paródias exageradas, Beatty excele por caminhos onde muitos não se atreveriam sequer a colocar o pé, a sua prosa igualmente divertida e séria, obrigando-nos a questionar a sociedade ao mesmo tempo que provoca o riso..
Beatty, desafiando as noções tradicionais daquilo que entendemos como negritude, tem como preocupação não propriamente a exposição simples e positiva (ou negativa) de como é ser negro na América, mas tentar entender e organizar toda a complexidade (e complicações) dessa situação. Porque se as audiências e os leitores se confortam consumindo a diferença e a multiculturalidade, quem tem de viver entre essas linhas são esses mesmos negros, em cidades e identidades desconsideradas pelo resto da sociedade, onde até os próprios negros criados fora delas, como Gunnar no início da obra, têm medo de entrar, tendo incorporado os preconceitos da sociedade branca.
Ao chegar a Hillside, Gunnar sente, portanto, dificuldades em se adaptar a um ambiente que é efectivamente bastante diferente daquele ao qual estava habituado, onde era o negro fixe, o único da escola, contando as histórias da sua genealogia de cobardes vendidos à causa negra, indo desde Swen Kaufman, negro livre que decide regressar para a escravatura, ao pai do próprio Gunnar, Rolf Kaufman, membro da força policial que não só aceita o racismo como também o exerce ele próprio. Em Hillside, no entanto, Gunnar é apenas mais um, ou, pior, é mais um que não se sabe defender nem impôr, desabituado que estava a ter de criar o seu lugar num ambiente que é inevitavelmente hostil a alguém que chegue de fora, mesmo a alguém que partilhe da mesma cor de pele.
Mas se a certa altura Gunnar se adapta, nomeadamente a partir do momento que descobre que possui um talento para o basquetebol, não deixa nunca de ser um mulato cultural, ou seja, alguém que frequenta tanto o mundo branco como o mundo negro, e que não se sente capaz de se imiscuir perfeitamente em nenhum dos dois. No mundo branco, é demasiado consciente da sua própria negritude, e no mundo negro vive sempre na angústia de tentar cumprir as expectativas que nele são colocadas já que, como o seu amigo Scoby, é representante da minoria talentosa capaz de escapar de Hillside, com acesso ao ensino superior e a um suposto futuro promissor.
No entanto, precisamente por ser um mulato cultural, o seu sucesso, dentro da comunidade branca, é entendido de forma diferente do seu congénere de Hillside. Scoby, o jogador de basquetebol perfeito que é incapaz de falhar um só lançamento, é vilificado e visto como um demónio pagão africano, com poderes místicos, e, em contraste, Gunnar, também ele grande basquetebolista ainda que não tanto quanto Scoby, é aceite e tolerado devido à sua aparente falta de negritude. Ao não cumprir o estereótipo de negro, é menos visto como um pária.
Ainda que exceda no basquetebol, aquilo que de facto move Gunnar acaba por ser a poesia, com a qual se cruza desde cedo, compondo poemas que pinta pelas paredes e muros de Hillside. Para ele, jogar basquetebol não lhe é inerentemente interessante, e fá-lo pelo seu sucesso e porque tal o torna popular. Mas, sendo esperado que Gunnar seja bom a jogar basquetebol para que se torne um verdadeiro homem negro, a satisfação que tal lhe traz é apenas superficial e dependente do olhar dos outros. A poesia, pelo contrário, é algo ao qual Gunnar efectivamente se dedica, e se inicialmente era expectável que o que validasse a excepcionalidade de Gunnar dentro da comunidade fosse o basquetebol, o que acaba por o tornar famoso a nível nacional é a poesia. Precisamente devido à fama que alcança através dela, Gunnar, num protesto contra a atribuição de um grau honorário a um estadista corrupto africano, acaba nomeado pela multidão Demagogo Negro, num discurso onde acaba por decretar o suicídio como forma de alcançar a liberdade.
Ora, ainda que Gunnar se referisse apenas ao seu próprio suicídio, ao ouvir as suas palavras, um pouco por todo o país negros começam a matar-se, enviando-lhe os seus “poemas de morte”. E se, ao ser nomeado Messias da comunidade negra, Gunnar parecia ter invertido a tendência familiar que o sugeria como o próximo traidor à causa, a verdade é que, ao causar o suicídio em massa de negros por todo o país, não é claro que tenha sido capaz de inverter a sua genealogia.
Face a tais relatos, talvez se caia na tentação de classificar a prosa de Paul Beatty como nonsense, uma extravagância pouco séria e quase no domínio da fantasia. Mas, havendo obviamente maneiras mais sérias e ortodoxas de pensar o problema, Beatty, juntamente com o seu humor irrepreensível, causa uma ruptura indispensável para vermos que, afinal, talvez este absurdo não esteja assim tão longe da realidade.