A solitude da pintura de Edward Hopper
Quando se aborda a pintura do século XX nos Estados Unidos, é quase incontornável mencionar o nome de Edward Hopper, um dos mais icónicos realistas da sua fase. Nascido em 1882 e falecido a 1967, percorreu mais de oitenta anos à descoberta de uma pintura personalizada, nas suas aguarelas e águas-fortes que produziu, embora se tivesse destacado nas pinturas convencionais a óleo. Representou, assim, cenários urbanos e rurais da chegada dos norte-americanos ao século XX e, com esses retratos, marcou profundamente a imagem da modernidade norte-americana. A sua intenção de agitar com o mundo a partir da pintura dos seus interesses mobilizou-o numa visão que aprendeu com o seu mestre, Robert Henri, um dos “The Eight” (ou Aschan School), que abriu as portas para o mundano do urbano e do rural começar a ganhar vida na arte.
Um estóico e fatalista, embora simples e franco, Hopper era bastante introvertido, o que ajudou a dar personalidade às suas pinturas. Captava pequenos momentos, bem isolados, que pudessem, não obstante, sugerir várias interpretações e configurações. O silêncio era um objeto que o pintor procurava potenciar nas suas pinturas, permitindo que a vulnerabilidade pudesse ganhar verdade e autenticidade na sua revelação. Por isso os tons melancólicos que, por norma, eram sugeridos e retratados pelo seu uso da cor e pela forma como conseguia acender e desligar a luz da mesma. De certa forma, era um purista, para além de conservador nas suas convicções, o que o limitavam na sua forma de encarar a realidade, embora fosse formado e culto. Assim, encarava a arte com seriedade e com franqueza, como uma expressão da intimidade do artista e da sua mundividência e como um veículo da capacidade inventiva da imaginação, algo que a abstração não conseguia, a seu ver, conceber, do ponto de vista do intelecto. Um interesse na envolvente do subconsciente permitiu-o decifrar a arte como, na sua substância, em muito inconsciente.
Hopper pintou, assim, em vários formatos e em diferentes configurações, como os próprios esboços que ele fez, somente para fins privados. Em todos eles, porém, sempre se mobilizou no sentido de pintar com rigor geométrico e com um equilíbrio saudável entre o espaço e a presença humana. Tudo isto, claro está, como um processo metódico e paulatino, perfeitamente calculado, que é processado mentalmente até à sua expressão mais imediata e inconsciente. Exemplos deste seu génio são as obras “Early Sunday Morning” (1930, mostrando algumas das montras da Seventh Avenue novaiorquina, em que as figuras humanas são substituídas por pequenos objetos citadinos, como um lampião) “New York Movie” (1939, um quadro que apresenta uma sala de cima vazia e, a seu lado, uma mulher pensativa, resplandecida pelo trabalho de luz), “Summertime” (1943, onde está uma jovem à porta de um edifício, ao que tudo indica, à espera do seu companheiro, que está na Segunda Guerra Mundial), “Seven A.M.” (1948, que apresenta uma montra despojada de gente e com alguns objetos na sua vitrine) ou “Sun in an Empty Room” (1963, onde, numa sala vazia, entra um rasgo de luz e se prolonga por todo o espaço). São referências nesta dicotomia da luz e da sombra, similar àquilo que é o tratamento dessa luz no cinema, em especial no film noir, seu contemporâneo, um estilo de cinema voltado para os criminais, onde o jogo entre o preto e o branco é determinante na exploração do enredo.
É um realismo, desta feita, que, embora se consagre com rigor, é feito com simplicidade nas formas e nos detalhes, um pouco em contrapartida àquilo que o pintor Andrew Wyeth, seu conterrâneo, fazia por volta desse período. É a mesma simplicidade que encontra nas situações que procura explanar e que identifica no dia-a-dia, encontrando-as com ou sem pessoas, quando capta momentos da vida rural e urbana, nomeadamente nas paisagens. Por isso, Hopper busca pintar bombas de gasolinas, motéis, restaurantes, cinemas e estradas, vazias ou ocupadas por personagens pontuais, indo em busca do convencional não-artístico. Assim, acaba por se rever como uma mistura de diversos estilos, embora nem sempre compatíveis com as correntes artísticas vanguardistas que partiram da Europa, mas sempre com uma forte empatia pelo realismo e pelo naturalismo, que herdam as impressões do impressionismo. As suas paisagens bucólicas, com a presença das rochas, do mar, mas também de barcos, de faróis ou, mais na ruralidade, de quintas, fazem prevalecer a luz e um clima sereno e pouco turbulento, onde as estações do ano e as suas alterações têm pouco ou nenhum relevo. Exemplos são “The Long Leg” (1935, mostra uma pequena embarcação na costa, numa extensão de areia onde as poucas casas que existem são ladeadas por um farol), “Ground Swell” (1939, onde um grupo de jovens superam uma onda no seu pequeno barco) e “Rooms by the Sea” (1951), uma obra um tanto ou quanto surrealista, visto que a porta da entrada, que se encontra aberta, se entrega ao mar e a toda a sua extensão, aberta ao silêncio e à solidão.
Na urbanidade, o encontro da harmonia é um objetivo e é uma realidade, com o uso dessas cores ternas e macias, por mais austeros que os espaços e as figuras sejam. Em “House by the Railroad” (1925), é uma pequena mansão do estilo vitoriano (século XIX) que, num espaço deserto, se impõe, sendo somente circundada por uma longa estrada, embora seja discreta e quase invisível na pintura. As tonalidades quentes de um fim de tarde sugerem, nesse vazio, a solitude que é tão captada por Hopper, por mais que nem existam figuras humanas nos seus quadros. Quando as inclui, a relação que procura que essas figuras tenham com o ambiente circundante é o de uma introspeção que só fala para dentro da própria pintura, resultado de emoções de solidão, de arrependimento ou até de tédio e de resignação para com o meio envolvente, seja em espaços públicos ou privados, urbanos ou rurais. Nunca se procede, assim, a captar momentos de elevação emocional, focando-se, sim, nos seus antecedentes e nas suas próprias consequências, bem mais quietas no espaço.
É o que acontece em “Girl at Sewing Machine (1921, onde uma jovem se senta numa máquina de costura encarando o Sol de frente), “New York Interior (another woman sewing)” (do mesmo ano, onde, desta feita, a mulher está de costas para quem encara a pintura), “Moonlight Interior” (1923, onde, num ténue fim de tarde, uma mulher, que está nua, se vai deitar), “Automat” (1927, em que uma jovem, totalmente sozinha, desfruta de um café numa mesa no exterior de um restaurante) e “Hotel Room” (1931, onde é novamente uma mulher a protagonista, desta feita na cama, sentada, somente com roupa interior, a ver o horário do comboio para o seu dia seguinte, após um dia de exaustão). Também “Morning Sun” (1952) mostra uma mulher sozinha, na sua cama, confrontada com a luz do Sol que lhe entra pela janela. A normalidade é o argumento mais forte de uma pintura que se quer, para lá de sensível, dramática, sem deixar de ser simples e colorida. O pintor fez mais retratos de mulheres nuas, não com um sentido estético e de glorificação do seu pendor erótico e feminino, mas sim para revelar a sua dimensão psicológica, nomeadamente, claro está, a sua solidão. “Girlie Show” (1941) mostra uma mulher totalmente nua num palco, que aparenta receber um espetáculo burlesco, exibindo uma confiança destemida perante o seu público.
Ainda na década de 1930, “Room in New York” mostra um casal distante num apartamento novaiorquino, quase alienado, onde o homem está a ler o jornal e a mulher vai tocando notas aleatórias ao piano. A pintura faz com que o seu apreciador se torne quase num voyeur, ao invadir o espaço privado deste casal e ao decifrar o seu distanciamento. Por sua vez, “Cape Cod Evening” (1939) é uma pintura diferente, onde, também um casal, embora num ambiente rural, observa o seu cão a brincar no meio do seu pátio. Nas entrelinhas, e dado ao seu contexto social, mostra um casal esquecido pelas movimentações urbanas, muitas delas feitas por seus conterrâneos em direção “à terra prometida”, no estado da Califórnia, em busca de trabalho e de prosperidade. O tema da relação conjugal volta a surgir com “Office at Night” (1940), embora noutras configurações. Um homem sentado no seu escritório está focado no seu trabalho, enquanto, a seu lado, está uma mulher mais jovem que o olha, enquanto está a organizar documentação. Evidente parece estar uma tensão propositada, motivada pelo erotismo que a figura feminina procura provocar. A luz, aqui, é originada, tanto pelo exterior, como pelo pequeno candeeiro na secretária do homem. A última grande pintura de um casal remonta a “Excursion into Philosophy “(1959), em que um homem está sentado, de forma resignada, na sua cama, ao lado da sua esposa, deitada para o lado da parede, escondendo-se da luz que entra pela janela. Essa luz pode, de algum modo, simbolizar um chamamento espiritual, que contrasta com as tentações mundanas personificadas pela figura da mulher, levando esse choque a um estado de melancolia.
No entanto, é em 1942 que Hopper desenha aquela que é a sua obra mais conhecida. “Nighthawks” (1942) observa, do outro lado da rua, um típico diner americano (um pequeno restaurante), no qual está sentado um casal e uma figura de um homem a sós, que capta a atenção de quem observa a pintura. É a luz do espaço interior a única presente no quadro e que ilumina todo o resto em sua volta, incluindo as duas ruas nas quais está esse restaurante (fixa-se na sua esquina). A rua está deserta e fortalece a sensação de melancolia e de solidão, ao mesmo tempo em que a interação humana que consta na pintura parece ser minimalista. Outra das suas célebres pinturas é “Gas” (1940), que apresenta uma bomba de gasolina no fim de uma extensa autoestrada, onde está um homem a ajustar o seu posto. É um espaço limpo, vazio, que se apresenta quase como um refúgio da velocidade urbana, mas que também contempla a solidão e a melancolia como notas dominantes. É similar ao que capta em “Portrait of Orleans” (1950), captando a monótona vida urbana dessa cidade, onde os objetos que aparentam ter mais movimento são as casas, contíguas umas às outras, por mais que elas sejam imóveis. Hopper faria, ainda, uma ou outra pintura referente à Guerra Civil Americana, tema pelo qual era fascinado, e a momentos dinamizados pelo movimento. A que mais se destaca é “Birdle Path”, onde três homens trotam a cavalo na cidade. A sua última pintura a óleo seria “Two Comedians”, de 1966, onde dois atores agradecem ao público no fim de um espetáculo, ostentando os dois um fato branco (são atores de pantomina, algo que Hopper adorava). Na verdade, trata-se de um casal que representa o próprio pintor e a sua esposa, simbolizando a sua despedida como casal (e a despedida de Hopper da sua vida).
Apesar das suas obras parecerem escorreitas e de simples interpretação, o norte-americano fez sempre questão de provocar controvérsia quanto aos significados das suas expressões e à simbologia dos aspetos que foi pintando. Uma obra que levantou questões foi “Summer Evening” (1947), onde figura um casal à conversa no alpendre de sua casa, numa noite cerrada, em que a única iluminação está na lâmpada do tecto desse alpendre. Ao analisar a indumentária, a pose e as feições de rosto de ambos, é difícil definir uma interpretação totalmente verdadeira, onde só o contraste da luz e da sombra é uma certeza. A ação é, assim, trocada pela força da quietude, que, por si mesma, impele a uma agitação da mente para se perceber o que realmente está apresentado na tela. Por mais simples e concreto que aparente ser, o azo que é dado a leituras distintas é real. Nisto, Hopper inspirou-se nas pinturas dos seus compatriotas John Sloan e George Bellows, em especial na sua técnica de desenho e de pintura e nas suas temáticas urbanas.
O pintor dedicou-se a desconstruir os contextos pintados para uma geometria quotidiana e descomplicada, embora, de certa forma, abrindo espaço a problematizar os perigos da melancolia e da solidão. No entanto, e por ser tão mundano, suscitou inúmeras referências ao longo dos anos, já após a sua morte. Isto porque a similitude da sua pintura ao dia-a-dia permite estabelecer paralelismos comuns, fazendo despertar uma espécie de beleza que permite encarar o quotidiano com outros olhos. Hopper seria uma influência ao nível do cinema, abrindo espaço a referências, como Alfred Hitchcock (a mansão do filme “Psycho” é quase tirada a papel químico da pintura “The House by the Railroad”) ou Terrence Malick, para beber dos seus trabalhos (como em “Days of Heaven”). Também na música, como o álbum de Tom Waits “Nighthawks at the Diner” (1975), entre muitas outras expressões artísticas, Hopper se mostrou relevante como influência presente e futura.
Edward Hopper tornou-se um dos grandes pintores do século XX, nomeadamente uma das grandes referências dos Estados Unidos neste prisma. Com os cenários quotidianos que identificou e que trabalhou, procurou ver e rever o dia-a-dia de um ponto de vista artístico e fê-lo com tamanha mestria que influenciou muito mais do que as gerações seguintes de pintores. Inspirou cineastas e escritores nas suas mundividências e nos seus entendimentos de como compor arte. Hopper, entre luzes e sombras, entre cores quentes e frias, iluminou um caminho artístico real e natural, mas que se revelou cada vez mais recheado de interrogações e de incertezas? Afinal, a situação que está ali é assim tão clara? Se não é, então, o que está a acontecer? As perguntas continuam vivas. As respostas, por sua vez, continuarão a ser incógnitas para a eternidade.