A urgência ecológica em “Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos”, de Olga Tokarczuk

por João Estróia Vieira,    12 Maio, 2020
A urgência ecológica em “Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos”, de Olga Tokarczuk
Olga Tokarczuk / Frame do vídeo “Nike 2015”
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Emakimono é uma forma de narrativa ilustrada cuja origem remonta ao período Nara, no Japão, no século VIII. Com tradução seguida à letra, emakimono significa “rolo de pintura”, na qual obedecendo à estruturação ilustração-texto correspondente, são retratados romances, guerras, religião ou contos populares e cujas origens viriam a resultar no que conhecemos nos dias de hoje como mangá. Fiel seguidor desta tradição salta-nos à memória o nome do mestre Hayao Miyazaki, em especial duas das suas principais obras que importa trazer para o tema, como é o caso d’A Princesa Mononoke ou Nausicaä do Vale do Vento, a sua primeira longa metragem, e cuja princesa deve o seu nome à personagem Nausícaa, da Odisseia de Homero, mas cuja personalidade foi fortemente baseada na princesa Mushimezuru, que aparececu em Tsutsumi Chunagon

Monogatari, um conjunto de dez pequenos contos do período Heian, no Japão.  Em ambas as obras de Miyazaki temos heroínas que se debatem contra a degradação da Natureza por acção e/ou inacção humana. O mesmo acontece agora em Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos, de Olga Tokarczuk.

Capa do livro

Nome maior da literatura europeia contemporânea, quis o destino, mergulhado em coincidências — ou não —, que as suas obras começassem a chegar até nós no ano de 2019, onde que viria a ser galardoada com o Prémio Nobel da Literatura, após ter também ganho o Man Booker Prize International no ano de 2018 com o seu livro Viagens. Ainda em 2019, esta sua “nova obra” voltaria também a estar entre os finalistas do Man Booker Prize.

Em Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos, seguimos Janina Duszejko, professora reformada com uma grande paixão pela Astrologia e que passa os dias a traduzir a poesia de William Blake juntamente com o seu amigo e ex-aluno Dizzy. Sob um cenário quase tirado a papel químico de Fargo (obra cinematográfica notável dos irmãos Coen), onde a neve se impõe numa povoação rodeada por floresta densa e animais selvagens perto da fronteira entre a Polónia (país de origem da escritora) e a República Checa. A narrativa toma acção quando Janina e Papão, seu vizinho, encontram Pé Grande, morto em casa, após se ter engasgado com um osso de corça. Esta é a primeira de várias vítimas que vamos encontrando ao longo do livro que, entre buscando nunca se ficar por uma qualificação estanque, se vai tornando quase num policial noir onde os animais nos são em primeira instância apresentados como os presumíveis assassinos, agindo sob vingança contra a comunidade fortemente composta por caçadores.

Ao longo do livro vamo-nos cruzando com personagens que vão sempre acrescentando conteúdo narrativo e necessário ao decorrer da acção, e é também aqui que se nota a sensibilidade de uma autora que nos vai identificando muitas dessas personagens por alcunhas dadas por Janina e raramente pelo seu nome próprio (como os já mencionados Papão ou Pé Grande). Uma opção que nos retira (propositadamente) ligação aos mesmos e que se percebe ainda melhor quando os animais são tratados por espécie, também recorrendo a letras maiúsculas (“Corça”, por exemplo). Tudo fica assim em plano de igualdade, os humanos e os animais.

Janina é um ecoar de tantos nós, defensores da Natureza, e que por vezes somos considerados “outsiders” em tantos contextos, conversas ou culturas (tal como a própria autora, muitas vezes contestada no seu país por posições que toma). Tal como nas citadas obras do mestre Miyazaki, Janina é a personificação e frente de batalha da Natureza a rebeliar-se contra os humanos face a tantos abusos e comportamentos incorrectos.

Um profundo questionar de alguns hábitos ainda bem presentes em algumas das nossas comunidades e um debate colocado de forma inteligente sobre o que nos rodeia e que damos por garantido sob falsos pretextos. “Nós temos uma visão do mundo e os Animais têm um sentido do mundo, sabias?” (pág. 214), refere a autora a certa altura. Por vezes focamo-nos apenas no que nos interessa, no que nos dá gozo, sem o questionar. Vamos perpetrando hábitos antigos, sem nunca nos perguntarmos se são correctos ou não, mas que simplesmente aprendemos por observação e damos continuidade. Não nos questionarmos tira-nos humanismo e faz com que prossigamos sem nunca olhar sob o prisma do “outro”.

Alternando entre uma escrita objectiva e outra cheia de simbolismos, Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos, que também tem momentos de humor mordaz, é de uma absorvência e riqueza notáveis. Publicado pela Cavalo de Ferro (chancela do Grupo 20|20 Editora), foi também traduzido de forma exemplar por Teresa Fernandes Swiatkiewicz a partir do polaco original. Por cá, aguardemos ansiosamente a chegada de Os Livros de Jacob, até ver ainda sem plano de publicação em Portugal.

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