“Zama”, de Antonio di Benedetto, é um romance de espera

por Miguel Fernandes Duarte,    3 Maio, 2019
“Zama”, de Antonio di Benedetto, é um romance de espera
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Estamos habituados a pensar na literatura da América Latina como uma povoada essencialmente pelo realismo mágico. Dessa região, chegaram com maior fama aos nossos dias nomes como os de García Márquez, Cortázar, Borges, Rulfo ou Vargas Llosa. Mas, como é óbvio, de bem mais vive a literatura dessa parte do globo, e é com agrado que vemos o argentino Antonio di Benedetto (1922 – 1986), uma das vozes cruciais da deriva existencialista da região, durante longos anos desconsiderado, chegar finalmente ao público português, em edição da Cavalo de Ferro.

Zama, o seu romance mais famoso, originalmente publicado em 1956 e adaptado ao cinema em 2017 pela mão de Lucrecia Martel, narra a agonizante espera de Diego de Zama, um funcionário do Império Colonial Espanhol, naquilo que se deduz ser Assunção, Paraguai (o nome nunca é explicitado), em finais do séc. XVIII. Tendo deixado a sua família para trás e sido enviado para essa cidade para desempenhar as funções de Assessor Letrado (o segundo na hierarquia da província, abaixo do Governador), espera pelo momento em que o transfiram para uma cidade mais importante e menos isolada. Mas tal desejo insiste em não se concretizar, e, assim, Zama é um romance de constante espera: por notícias da sua família, que deixou em Buenos Aires, pela transferência, por um acto heróico que o redima e até pelo dinheiro do seu salário, que insiste em não chegar àquele recanto do império, atrasando os pagamentos.

Filme “Zama” (2017), da realizadora Lucrecia Martel

Em constante antecipação e movendo-se entre a passividade e a acção, Zama é como o macaco que vê no início do livro, que, mesmo morto e boiando num rio, não consegue sair da mesma posição. Zama ali está, “quase de partida e não.” É um crioulo, um descendente de europeus já nascido na América, que continua a ter o Velho Continente como objectivo último, que despreza tudo o que é indígena e sonha em atravessar o atlântico. Mais um de entre os “tantos americanos que preferem parecer espanhóis a serem aquilo que são.” Sonha com a Europa, com neve, com mulheres brancas “sem roupa nos aposentos aquecidos, com lareiras e tapetes”. À falta de melhor opção, é sobre as mulheres brancas que se vislumbram por Assunção que incide a sua atenção, e a primeira parte do romance dedica-se sobretudo às tentativas de seduzir Luciana, a solitária mulher de um fazendeiro.

“É que Diego de Zama, sem ter beijado durante anos outro corpo que não o da sua mulher, sabia-se alheio à pureza da fidelidade e precisava de que mais alguém participasse na sua confusão de desejos e repreensões instigantes.”

Mas, julgando-a casta quando esta se queixa de ser cobiçada por tantos homens, Zama fica constantemente à espera que ela o deixe entrar na sua intimidade, apenas para descobrir que outros já chegaram onde ele não conseguiu. E quando vê Luciana partir para Espanha sem nunca nada se ter consumado, Zama permance no mesmo local, ainda sem mulher, ainda enquanto assessor letrado em Assunção, um cargo essencialmente burocrático que persistia em não lhe trazer a reputação que criara para si quando anteriormente desempenhara as funções de Corregedor. A todos insistia em lembrar quem tinha sido por não conseguir respeitar quem agora era.

“O doutor Dom Diego, de Zama!… O enérgico, o executante, o pacificador de índios, o que fez justiça sem usar a espada. Zama, o que dominou a rebelião indígena sem derramar sangue espanhol, ganhou honrarias do monarca e o respeito dos vencidos. Não era o Zama das funções sem surpresas nem riscos. Zama, o corregedor, ignorava com arrogância o Zama letrado, enquanto este se esforçava por mostrar, mais do que as semelhanças, a identidade absoluta que se impunha. Explicava ao antigo corregedor a assessoria, o segundo cargo em toda a província, imediatamente a seguir ao de governador. Mas, ao fazê-lo, o Zama assessor sabia, sem conseguir escondê-lo, que neste país, mais do que em outros do reino, os cargos não endeusam, nem se faz um herói sem compromisso de vida, mesmo que falte a justificação de uma causa. O Zama assessor tinha de reconhecer em si um Zama condicionado e sem oportunidades.”

Em constante luta interna, Diego de Zama é, como as personagens de Dostoiévski de quem Di Benedetto era enorme apreciador, um homem num estado marginal obsessivo, alucinado e agressivo. Mas, ao contrário do escritor russo, Di Benedetto deixa o dramatismo inflamado de parte e Zama é, pelo contrário, um romance sempre em câmara lenta, um romance de espera e de lassidão, com frases curtas que vão habilmente alternando entre o lirismo e a objectividade, deixando a instabilidade mental do protagonista espalhar-se, aos poucos, à medida que o romance vai avançando.

Antonio di Benedetto

Escrito em menos de um mês, numa casa vazia, durante um período em que Di Benedetto estava de licença do seu trabalho enquanto subdirector do jornal Los Andes, Zama nunca procura nem a verosimilhança do romance histórico nem os terrenos do realismo mágico pelos quais a literatura da América Latina se tornou famosa. Acaba por ser, acima de tudo, a história de quem espera sem esperança e um retrato da vida nas margens, na fronteira. Porque também na América do Sul se apregoava o sonho americano, e ainda hoje ele insiste em não chegar.

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