Afonso Sereno: ‘Parece que a fotografia me fotografa a mim primeiro’
Afonso Sereno começou a viajar em 2014, quando foi ter com a irmã à Guatemala para participar num projecto social, e desde então não parou. Anda regularmente pela Europa fora, viajando à boleia ou de outras formas, e quer vá sozinho ou acompanhado, acaba sempre por rodear-se de pessoas. As suas experiências, que foi registando através de fotografias, culminarão no lançamento de um livro em breve – Travel Diaries – cujas primeiras 100 edições foram financiadas por crowdfunding. Estivemos à conversa com o portuense de 22 anos acerca dos seus projectos e das suas viagens.
O que é que te motiva a viajar?
Noutro dia fui dar uma palestra na Escola de Turismo do Porto e estava lá um viajante a sério – eu nem digo que sou viajante – que disse “pá, nós precisamos sempre de um pontapé para ir viajar: seja o que for, acabar com a namorada, uma chatice com a família, etc.” Eu fui viajar um bocado sem pontapé nenhum; a minha irmã estava a dizer-me cenas, eu estava a sentir que se calhar podia ir viajar e então fui só ter com ela à Guatemala, antes de começar este projecto. Depois disso é que eu percebi que gostava de viajar. Basicamente, o que me motivou a viajar foi ter feito essa viagem inicial, e depois é quase como um… não é um vício, mas é… quero ir descobrindo mais. Depois, não tive ainda a hipótese de viajar muito mais para fora da Europa, portanto criei o projecto do Viajar Como um Nómada Moderno, que basicamente foi o impulsionador das minhas viagens pela Europa: eu tinha que chegar à Eslovénia e decidi ir à boleia e pronto. A partir daí, sempre que posso, vou visitar alguém, ando um bocado à boleia e estou assim, slow travelling pela Europa.
Como é que surgiu inicialmente a ideia de fazer uma viagem low-cost; isto é, andar à boleia, etc? Gastaste só 50 euros, não foi?
Sim. Lá está, foi esse projecto de Viajar Como um Nómada Moderno: eu tinha de ir para a Eslovénia porque tinha lá um curso de Verão promovido pelo BEST, mas as viagens eram muito caras e então pensei que se calhar seria uma boa hipótese. Tinha visto o projecto de um rapaz – Vou Ali e Já Venho –, que foi viajar com 1 euro por dia pela Europa; falei com ele, também me inspirou um bocado e pá, a partir daí lembrei-me.
Dizes que essa viagem foi uma experiência que mudou a tua vida. Houve momentos determinantes para isso ou foi mais um processo contínuo?
Não sei se mudou a minha vida ou não, mas acho que se pode dizer que sim, estou sempre em mudança e as viagens que fiz foram marcos na minha vida. Foram várias as pessoas que me ajudaram – às vezes até costumo quase falar como se fossem mentores – pode ser a minha mãe como pode ser o Mirsad, que eu conheci na rua – pá, claro que são coisas diferentes, mas o Mirsad, sinto que aprendi bastante com ele e que teve a sua parte em mudar alguma coisa na minha vida.
Quais foram as maiores dificuldades que sentiste?
Eu tento sempre ver as dificuldades como coisas positivas, portanto, mesmo que eu estivesse a passar muito mal – por exemplo, uma vez estava a acampar perto da auto-estrada, numa estação de serviço desactivada, porque tinha ido a pé até lá, estava em obras e pensei “vou dormir aqui porque já é tarde e vai chover”. Pá, foi uma dificuldade: entretanto choveu, eu não tinha água, estava desconfortável na tenda, mas está-se bem; entretanto a noite passou e acordei com a polícia – mais uma dificuldade, mas pronto, quando me aparece alguma dificuldade, estou logo a pensar numa solução e depois parece que as coisas realmente se solucionam. Neste caso, os polícias chegaram lá e disseram “ah, não podes estar aqui a acampar, tens de sair”, mas depois acabaram por me dar boleia. Portanto, são histórias que acabam por ficar positivas no fim, nas quais estou sempre a tentar arranjar uma solução, portanto já nem as imagino como dificuldades.
O trabalho que vais editar vem no decurso de várias viagens. Qual é o fio condutor?
Eu não quero que tenha de haver um fio condutor para os leitores – embora possa haver –; para mim há, que é o meu crescimento. Chama-se Travel Diaries porque é como se fosse um diário da minha vida, são três anos – está em fotografias porque eu agora fotógrafo – mas para mim é mesmo um diário e basicamente é o meu processo, o meu crescimento; essa é a maior linha condutora. Portanto, também se pode dizer que é parecida com a viagem que eu fiz, porque tem a parte de auto-descobrimento, o desconhecido, o partir para o vazio, a ausência – depois começas a perceber que mesmo na ausência também se está bem, a aprender a estar sozinho, a estar bem comigo próprio – e daí, perceber que, para além disso, como diz o Christopher [McCandless], no Into the Wild, “happiness is only real when shared”; e é verdade, por mais que eu esteja bem sozinho, senti que quando estou com os outros é melhor. Tenho a parte de aprendizagem, de sentir que todas as pessoas podem funcionar como mentores para mim e absorver delas muitas coisas, como depois também partilham comigo os momentos e é daí que vem a felicidade, por assim dizer. Portanto, é um bocado esse o fio condutor.
O que é que te passa pela cabeça quando vês algo para fotografar? Fotografas já com a ideia de partilha da imagem?
Isso é uma boa questão. Pá, aqui no livro até escrevi uma coisa – primeiro, eu digo que estas fotos têm um estilo documental, porque, no fundo, se fores a ver, é onde se enquadraria mais, mas quando estava a fotografar não era numa de documentar a viagem em si – escrevi uma frase do género: eu vejo as coisas, os sítios captam-me e depois é que me lembro de fotografar, parece que a fotografia me fotografa a mim primeiro. Depois claro que há momentos que merecem mais um estilo de documentação: uma boleia num sítio todo maluco ou um prédio que eu realmente gostei, e eu penso logo “quero mesmo fotografar aquilo” e aí fico um tempo ainda a pensar.
Hoje em dia, há várias pessoas a ter experiências semelhantes às tuas e a partilhá-las, nomeadamente em formato digital. O que sentes que te distingue dos outros projectos?
Esta é a pergunta de que gosto menos, porque eu não gosto de me comparar ao resto da malta; mas sim, agora há muita partilha digital, muitos bloggers. Pá, cada um tem os seus projectos, o meu é este; na verdade, eu comecei a deixar o meu blog um bocado mais de parte, na parte da rede social e do blog diário – faço mais neste registo, também entrei na fotografia para criar mais profundidade no que eu partilho com as pessoas – nada contra, acho que faz sentido se quiseres, eu é que comecei a gostar menos, aproveitava melhor se estivesse o dia todo sem estar com o telemóvel e depois é que eventualmente faço o que tiver de fazer. Falando em distinguir, não sei o que me distingue; o que eu faço é ir viajar, não só numa de documentar, mas numa de ver e ter experiências, e depois sentir se faz sentido partilhá-las.
As pessoas são uma parte determinante das tuas viagens. Foi por isso que te fez sentido fazeres uma campanha de crowdfunding?
Sim. A viagem começou – ainda nem estava a fotografar com uma DSLR, eu ia com uma GoPro marca branca, só numa de fotografar o processo da viagem, isto na primeira viagem que fiz à Eslovénia –, fiz um vídeo e parte eram só caras das pessoas a darem-me boleia, porque foram mesmo muitas, para aí 40. Então claro que acho que as pessoas são a parte determinante de tudo isto. A partir daí continuaram a ser as pessoas, não só pelas boleias, mas por tudo; eu depois já não viajava só à boleia, mas também com amigos – e os amigos são pessoas que realmente marcam a minha vida – e todas as pessoas que fui encontrando na rua. Ainda na parte das boleias, gosto de o fazer porque conheço uma cultura não por ver a cidade, mas por falar com alguém de lá. As pessoas transmitem tipos de culturas diferentes, tal como estarmos só a deambular e a observar por nós, mas eu gosto mais da cultura que as pessoas me passam.
Também não tinha dinheiro, é verdade, mas depois pensei “este livro é feito para pessoas, a partir das pessoas”, achei que era fixe ter o crowdfunding. Até porque agora tenho 100 edições que vou entregar a pessoas ou que conheço ou que conheceram o projecto posteriormente. Gosto desta primeira edição ser assim um grupo pequeno de pessoas que eu conheço, por isso acho que tudo se liga às pessoas – o livro até se podia chamar Pessoas, mas não ia ter nada a ver com as fotografias [risos].
De que forma sentes que a tua consciência social evolui com as tuas viagens?
Acho que é por causa da tolerância que estar com vários tipos de pessoas e em vários tipos de situações me traz – o tal Mirsad, um senhor de 60 e tal anos, dormi dois ou três dias com ele numa praia em St. Tropez, percebi cenas que para ele fazem sentido; também com duas miúdas húngaras da minha idade, dormi com elas na Croácia, já não sei onde; portanto, esta adaptação e, ao mesmo tempo, consciência que vou tendo em conversas e na vivência com essas pessoas, acho que socialmente vai criando aqui alguma personalidade, que eu depois tento transmitir no meu dia-a-dia.
Dizes que não pensas muito no futuro, mas tens ideia do que se pode seguir para ti depois deste projecto?
Pois, não penso, de facto… mais ou menos, penso num futuro curto. Agora penso que quero começar a entrar pelo Médio Oriente. Gosto disto de viajar sempre por terra, gosto de ir assim pouco a pouco, e então agora quero ir para oriente. Mas é isso, não penso no futuro, não tenho tudo estruturado – também porque ainda falta algum tempo – mas sinto que quero começar a ter outra experiência de viagem. Até agora tive algumas experiências de que também estava à procura, vivi com pessoas na rua e já experienciei coisas que me moldaram, e agora quero sentir outras coisas; também é uma zona que está em conflito, acho que estou um bocado à procura disso – não fotojornalisticamente, quero é ter a experiência – eventualmente posso tirar fotografias, mas num registo mais social. Portanto, futuro para já é isso. Eventualmente quero aprofundar-me na teoria da fotografia e do cinema, mas quero dar tempo ao tempo e ver.
Travel Diaries será apresentado nos dias 5 de Julho, na Espiga (Porto), e 20 de Julho na Junta de Freguesia do Lumiar (Lisboa), com o Gerador.