“Livrarias”, de Jorge Carrión: a nostalgia das viagens passadas e o desejo das futuras

por José Moreira,    10 Junho, 2023
“Livrarias”, de Jorge Carrión: a nostalgia das viagens passadas e o desejo das futuras
Capa de “Livrarias”, de Jorge Carrión
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Este “Livrarias” (Ed. Quetzal, 2017) é o primeiro livro editado em Portugal da autoria do escritor espanhol Jorge Carrión – professor de literatura contemporânea e escrita criativa na Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona. Considero que se trata de uma obra essencial para quem aprecia livros, livrarias e viagens, e onde o autor não se limita a construir um simples itinerário geográfico e/ou temporal. É um conjunto de relatos interessantes, vindos de alguém que vive intensamente o mundo dos livros, são memórias que nos abrem as portas de livrarias de todo o mundo. Em paralelo, somos presenteados com uma profusão de fotos, que nos mostram os espaços, as montras e estantes, alguns cartões de visita e marcadores, elementos que ajudam a materializar esses lugares no nosso imaginário.

Desde logo, conseguimos vislumbrar a enorme devoção de Jorge Carrión aos livros e como, além da descrição das suas viagens, desenvolve quase uma análise metafísica das livrarias. Este ensaio oferece-nos uma relação intimamente complementar entre a história e as histórias dos lugares que vendem os livros, das cidades, dos autores (e respectivos livros) e dos leitores. Explora o papel das livrarias enquanto polo cultural, apresentando-as como algo mutável, quase como se tivessem vida própria, mas sem nunca esquecer os livreiros que as fundaram, geriram e dinamizaram. Aborda também alguns factores que ameaçam a existência e o funcionamento destes espaços, tais como as ditaduras e a censura, temas que abordei nesta crónica.

“Os livros sempre foram elementos fundamentais para o controlo do poder, e os governos desenvolveram mecanismos de censura livresca, tal como construíram castelos, fortalezas e bunkers que – inevitavelmente – acabaram por ser tomados ou destruídos, ignorando o que já Tácito dizia: «Pelo contrário, a autoridade dos talentos perseguidos cresce, e nem os reis estrangeiros, nem os que procederam como mesmo tipo de encarniçamento, conseguiram senão a desonra para si mesmos e a glória para eles.» Foi sem dúvida com a imprensa que os países começaram a ter sérios problemas para travar o tráfico de livros proibidos. E foram as ditaduras modernas que tiraram mais dividendos políticos da queima pública de livros, ao mesmo tempo que se destinavam fatias enormes do erário nacional aos organismos que se dedicavam à leitura.”

“Livrarias”, de Jorge Carrión

Os capítulos deambulam entre as reminiscências afectivas, intelectuais e profissionais do autor, desde a “fiesta de Sant Jordi” (a 23 de Abril, coincide com o Dia Mundial do Livro) da sua infância na Catalunha, às variadas incursões em livrarias de todo o mundo. Podemos ler sobre as suas diversas passagens por Portugal, dando destaque às lisboetas Bertrand do Chiado (Guinness World Record para livraria em atividade mais antiga do mundo) e Ler Devagar no Lx Factory; e à portuense Livraria Lello, considerada a mais bonita livraria do mundo, por Enrique Vila-Matas. Confesso que achei bastante interessante poder descobrir as histórias de livrarias que já tive oportunidade de visitar, como as mencionadas anteriormente ou a mítica Shakespeare and Company em Paris

“Como me disse José Pinho, a alma mater da lisboeta Ler Devagar, uma livraria é capaz de regenerar o tecido social e económico da zona onde é aberta porque é puro presente, um acelerado motor de mudança. Não é de estranhar, pois, que muitas livrarias façam parte de projectos sociais.”

“Livrarias”, de Jorge Carrión

As livrarias são colocadas num patamar de elevada importância no âmbito da produção cultural e dinamização social, na escala local e global. Jorge Carrión sabe perfeitamente que isto, por vezes, fica esquecido por parte do poder político, económico e até por ditos agentes culturais, algo que acontece demasiadas vezes, na verdade.

“As livrarias são negócios em dois planos, simultâneos e indissociáveis: o económico e o simbólico, venda de exemplares e criação ou destruição de famas, reafirmação do gosto dominante ou invenção de um novo, depósitos e créditos. As livrarias sempre foram amplificadoras do cânone e, portanto, pontos-chave da geopolítica cultural. O lugar onde a literatura se torna mais física e, por isso, mais manipulável. O espaço onde, bairro a bairro, aldeia a aldeia, cidade a cidade, se decide a que leituras terão acesso as pessoas, quais vão ser difundidas e, por conseguinte, quais terão a possibilidade de serem absorvidas, descartadas, recicladas, copiadas, plagiadas, parodiadas, admiradas, adaptadas, traduzidas. É nelas que se decide grande parte das suas hipóteses de se tornarem influentes.”

“Livrarias”, de Jorge Carrión

Remata de forma contundente estas noções, afirmando que: “a internet está a mudar esta democracia — ou ditadura, conforme o olhar — da distribuição e da seleção”. Ou seja, mesmo que a internet não tenha acabado com as livrarias físicas (previsão felizmente errada, até ver), afectou profundamente a forma como procedem às suas escolhas e divulgações culturais. Isto significa que, em plena era do digital, não se mudaram apenas hábitos de leitura, mudaram-se os próprios livreiros, em vários casos para melhor. Apesar deste livro partir do mundo pessoal do autor e da sua relação com as livrarias, complementa-o com bastantes referências históricas, políticas ou económicas, no entanto, o conteúdo não se torna dogmático em momento algum. Carrión deixa bastante espaço para reflexão na sua escrita, espaço que podemos preencher com as nossas próprias vivências, sejam as memórias de  já termos visitado algumas das livrarias que refere, ou apontando outras para visita futura. Quem tiver o hábito de adquirir livros nas suas viagens, irá certamente encontrar muitas sugestões interessantes. E talvez, como aconteceu comigo, alternar entre a nostalgia das viagens passadas e o desejo das futuras. 

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