Afrofuturismo: um movimento, uma expressão artística
Na herança dos discursos pós-coloniais e dos movimentos de defesa e de salvaguarda dos direitos das comunidades de etnia negra, surgiu, subjacente ao crescimento da ficção científica, um discurso artístico distinto: o afrofuturismo. Este, fundindo estas duas dimensões, permitiu explorar, a partir da música, da literatura, do cinema e das artes visuais, as questões tão presentes e consistentes na discussão das manifestações dessas comunidades, embora com um sentido futurista e vanguardista. Um dos primeiros rostos desse movimento foi o músico Sun Ra, que, com uma personalidade artística em muito influenciada pela mitologia egípcia, desenvolveu um jazz com muito de inovador e de efervescente. Na literatura, seria Octavia Butler, que criou ficções científicas com temáticas sobre o racismo e o preconceito a si subjacente. No cinema, mais recentemente, o filme “Black Panther”, sob a chancela da Marvel, é o mais caraterístico deste movimento tão diferenciado, que também inclui, na pintura e nas artes visuais, Jean-Michel Basquiat.
O afrofuturismo, perspetivado pela comunidade científica, é visto como uma fusão interdisciplinar — e, por ser algo de novo, torna-se transdisciplinar, dando origem a uma nova disciplina. Integra, assim, claro está, uma visão africana e afrocêntrica, mas também as vertentes das artes, das tecnologias, da religião e da sua dimensão espiritual, e da visada ficção científica, para além de considerar a realidade virtual. É, de certa forma, uma reimaginação e uma reconstrução passada, presente e futura das questões associadas às comunidades negras, com vista à sua emancipação, encarnada numa autêntica transformação social. Enquadrando esta nova disciplina na História da Arte, percebe-se que é a junção de África com o futurismo, um movimento vanguardista artístico que ocorreu na primeira metade do século XX na Europa. De certa forma, é uma resposta a uma realidade que não incluía as expressões destas comunidades, procurando, assim, de forma autónoma, encontrar o seu espaço e a expressão das suas identidades. De qualquer forma, concorda com os ideais futuristas, ao ser avesso ao passado e à moral convencional, valorizando a juventude e o dinamismo, para além da modernização.
É um discurso de valorização das proveniências africanas e das suas texturas, que interroga e que propõe, à boa maneira da ficção, sempre com uma pitada de ciência e de tecnologia. A projeção de realidades utópicas e distópicas não é incomum, tendo em vista a questionar e a problematizar o passado, o presente e o futuro da negritude (entre outras definições, trata-se de um autêntico movimento cultural e artístico que aspira à valorização das identidades dos povos africanos, nomeadamente os de etnia negra). Projetam-se, assim, conjunturas que anulam os preconceitos e os estereótipos racistas. No entanto, as influências das expressões europeias são claras, que ajudam a que as bases das expressões artísticas — de certa forma, a sua formalidade — sejam construídas. No mundo da música, por exemplo, na atualidade, Janelle Monaé, tanto nas suas composições musicais, como nos próprios videoclips, é uma figura de destaque deste tipo de expressões, inspirando-se em Sun Ra e no músico George Clinton (também ele um autêntico afrofuturista), da banda Funkadelic, para criar um R&B e um soul quase psicadélico com a valorização da figura de etnia negra em cenários futuristas e quase cósmicos. O mesmo se pode ver em vários dos videoclips (e das próprias canções) de outras célebres cantoras de R&B, como Elza Soares (no Brasil), Erykah Badu, Lauryn Hill, Jill Scott e, com ainda mais notoriedade, Beyoncé ou Rihanna. Esse “psicadelismo” também é um mote para outras expressões musicais, como no rock, onde Jimi Hendrix é um exemplo prático. São expressões que originam uma nova linguagem, devidamente contextualizada social e politicamente, em que o cósmico, o gráfico, o mitológico e o científico são dimensões consistentes.
É o mesmo psicadelismo que, mais recentemente, também se sente nas mesas de mistura e na música eletrónica. Casos exemplificativos dessa presença afrofuturista na criação são a dupla Dopplereffekt, de Detroit, que muito usam a ciência como temáticas das suas faixas e a própria política como inspiração para uma posição consolidada e forte. Dos seus membros, destaca-se Gerald Donald, que também compôs música associada à mitologia africana e de etnia negra com a sua outra dupla eletrónica, Drexciya, nome que designa um país onde habita uma espécie humana subaquática, que não são mais do que os filhos das mulheres africanas que tinham sido arremessadas para o mar durante o comércio de escravos nos séculos passados, entre África, Europa e América. As suas crianças adaptaram-se ao mar e a respirar nele enquanto estavam nos ventres das suas mães e dão origem a esta autêntica cosmologia que se sustenta nos já referidos Sun Ra e George Clinton É por isso que a dupla, Donald e James Stinson (que viria a falecer em 2002), se apresentavam mascarados, incorporando os temas marítimos e as nuances aquáticas na sua música. Depois da sua morte, assumiu o pseudónimo de Arpanet, que se assumiu individualmente como os Drexciya. Também no techno norte-americano, destaca-se Jeff Mills, um dos fundadores da Underground Resistance, um coletivo de DJs que, ao lado do baixista de George Clinton nos Parliament, “Mad” Mike Banks, desenvolveu uma retórica revolucionária e envergava, nas suas performances, máscaras de esqui e fatos de combate totalmente negros. É um caminho de experimentação e de exploração, que almeja uma transposição das linhas tradicionais definidas pela raça e pela etnia, alcançando a mudança política e social.
São realidades distintas, claro está, das que o futurismo original criam e exprimem, muito porque as suas causas são diferentes. São quase fugas dos discursos pré-concebidos e ocidentalizados, que marcam uma postura social vincada, da qual a arte nunca está dissociada. Uma postura que se catapulta nos feitos das vagas independentistas no continente africano e que pautam uma inovação concreta e sentida no panorama do pós-colonialismo, um panorama onde se procura, assim, a tal emancipação de um racismo sistémico que ainda persiste. De igual modo, a própria desigualdade socioeconómica presente entra como um fator de peso para que o afrofuturismo se afirme com tanta pujança, com vista a examinar o passado numa proposição futura. Aqui, ao invés de uma demarcação do passado, como acontece no futurismo convencional, há mesmo essa revisão e essa necessidade de identificar as identidades do comum indivíduo de etnia negra para se poder projetar um futuro em que ele deixa de estar dependente de outrem e de outros para a sua afirmação e para a sua liberdade autêntica. De certa maneira, como a ancestralidade é algo esquecido e desprezado no passado, a necessidade de projetar esses valores também é presente e traz a si associada uma presença política firme e superadora dos costumes racistas.
O presente é uma dimensão temporal que não pode, nem é esquecida, dada as problemáticas tão reais e presentes. As desigualdades já referidas também se materializam nas dificuldades de acesso à educação, à cultura e à própria tecnologia, onde o progresso, apesar de ser dito que é universal, não o é. São estas as ideias do passado e do presente por parte dos artistas afrofuturistas. A fuga do passado e do presente sofridos e oprimidos são uma forma de reconstruir a realidade das comunidades negras com um sentido isento e imaculado de tantas vicissitudes. É uma visão otimista e revolucionária, embora a dimensão da alteridade (do outro) seja uma constante, com um sentido de valorização e de reestruturação. A herança passada é, assim, a raiz para que o caule do presente se prolongue até ao fruto projetado e desenhado. Aliás, o tempo é uma variável que deixa de ser linear e que se torna maleável às aspirações especulativas da criação artística. Essa desconstrução do tempo é motivada pela necessidade de valorizar a resiliência e a capacidade de superação das comunidades negras, onde esse mesmo tempo é veloz, acompanhando o sentido viajante e viajado do indivíduo dessas comunidades.
É uma impossibilidade, já que se trata de uma utopia (ou de uma distopia). No entanto, serve para inspirar e para idealizar aquilo que pode ser o futuro das comunidades de etnia negra, depois de ver os preconceitos e os estereótipos vencidos e (quase) esquecidos. Alimenta as aspirações dos mais jovens e ajuda a fundamentar os instintos dos mais velhos na defesa das suas causas elementares. É uma inspiração que, de forma implícita, classifica o presente como mau e como insuficiente, onde a negritude não se vê reconhecida e totalmente independente. As expressões afrofuturistas estão, assim, ligadas por esse passado em constante crítica e pelo presente que urge ser repensado através de diferentes conjugações artísticas. A ficção científica, um tubo de escape para a discussão social e política, é o suporte que mobiliza este dinamismo afrofuturista. No entanto, atualmente, questionam-se eventuais apropriações destas expressões por parte de grandes indústrias de conteúdos culturais, nomeadamente a Marvel (com o filme “Black Panther”, onde se apresenta um autêntico cenário afrofuturista em que as comunidades negras são as grandes protagonistas, embora cruzado com as instituições presentes e com a cronologia da história ocidental) e a própria indústria de Hollywood, tendo em contra as tendências do mercado económico e cultural vigentes. Para além disso, os próprios Estados e outros organismos poderão anular a dimensão crítica, social e política destas linhas de criação artística e o seu caráter inovador. São questões que se colocam e que discutem o próprio significado da arte por si mesma, perante a possibilidade desta poder ou não ter compromissos com ideais que não os da própria criação. A superação dessas limitações e dessas influências é uma problemática bem presente, que pode beliscar o sentido e o impacto de cada expressão.
O afrofuturismo é, assim, também herança de um constante combate artístico por parte das comunidades negras perante as suas dificuldades e vulnerabilidades. Desde o Renascimento de Harlem e o surgimento da músca gospel jazz, passando pelas suas manifestações claramente sociais e políticas nas décadas de 1950 e de 1960, há um lastro de manifestações em que a arte é a linguagem e a liberdade é o seu pilar. São, quase sempre, expressões individuais com sentido coletivo e plural, sempre denunciando um instinto subversivo e de resistência. Porém, desta feita, a realidade é outra, infundida com o vanguardismo e com o antever de uma realidade harmonizada e pacífica, numa dinâmica de transcendência do passado e do presente. É o que faz Sun Ra, tanto na forma como se apresentava, como na sua própria música, materializando uma realidade quase alternativa, distante das configurações convencionais, que atua como um confronto e como uma resposta às suas atitudes e comportamentos. Como tal, numa nova realidade, são criadas formas de atuar e de ser bem distintas, que não se enquadram nos parâmetros normalizados. De certa forma, Sun Ra encarna uma divindade, um herói, à imagem de tantos outros personagens que são criados à luz deste movimento.
Os objetivos não são, assim, os de definir essas realidades como certezas futuras ou como projeções ideais. São, sim, cenários através dos quais se pode vislumbrar uma sociedade mais harmoniosa e feliz, com destaque para os membros das comunidades negras. Permitem encarar questões maiores, de maior amplitude e com um cariz universal, nomeadamente questões estruturais da sociedade e da sua hierarquização, desde as estruturas capitalistas, patriarcais e imperiais passadas e presentes. O desafio consiste, assim, no reconhecimento do passado e do presente de forma transparente e limpa, de forma a poder, com toda a propriedade, questionar os regimes, as relações e as instituições de poder para capacitar as comunidades negras de caminhos para a sua libertação coletiva e concertada. O sentido coletivo é determinante, dado que as identidades redescobertas neste processo são, por norma, associadas a comunidades passadas e até presentes, de forma a originar outras tantas futuras. Isto, claro está, com as devidas considerações sobre o que aceitar e o que descartar, numa dinâmica em constante transformação, dado que o processo de descoberta é permanente.
É discutido, de igual modo, a validade e o valor de verdade dessas identidades, que podem condicionar as comunidades negras a conformarem-se nessa postura de alteridade, de alienação, quase submissa aos valores ocidentais predominantes, à imagem do que ocorreu nos últimos séculos. O alerta obriga a que os artistas sejam a voz dessa contestação e desse choque, numa diáspora pela história até ao seu momento de realização artística. O protagonismo induzido às personagens de etnia negra só se concretiza nessas realidades alternativas, que funcionam como uma história alternativa, que contrasta com as dinâmicas de exclusão e de opressão que marcaram a vida dos seus antepassados. A palavra “alienação” muda de significado, passando para a sua conotação extraterrestre e espacial, que difere do panorama térreo e dominante da etnia branca e que resgata a população de etnia negra, tornando-a quase um mito. Um mito feito a partir dos ideais de beleza e de valorização racial e espiritual, sem deixar de valorizar, de igual modo, a mulher e a necessidade dela se tornar autónoma, com base e inspiração na sua força de caráter e na sua resiliência. Exemplo disso está, assim, na ficção de Octavia Butler, onde a consciência de raça e de sexo permanece como o grande elemento da sua imaginação e da sua mundividência, desvelando as suas hierarquias e apontando para a construção de uma nova atitude humana.
O afrofuturismo é, mais do que um movimento, uma forma de se exprimir artisticamente. Com uma orientação ficcionada e imaginada, permite discutir e colocar em causa o passado e o presente da vivência dos membros das comunidades de etnia negra. Sem beliscar o objetivo artístico de revelação e de afirmação de valores estéticos e culturais, é uma expressão com um sentido subversivo e emancipatório, tendo em conta que permite a afirmação das suas vontades e das suas identidades. Numa perspetiva mais universalizada que ocidentalizada, é uma imaginação que se alicerça em valores coletivos, associados à negritude, e que permite que se reconstruam visões e experiências, fugindo àquilo que está normalizado e abrindo espaço para que o surgimento de novas perspetivas muito pessoais (embora com o sentido (coletivo) racial vivo) possam ser uma realidade. Assim, e de uma recuperação crítica mas valiosa do passado, e de uma interrogação constante e perseverante do presente, se imagina e se traça um distinto e mitológico futuro, onde as comunidades negras, agora com a possibilidade de fruir plenamente dos seus direitos, são as protagonistas. É o resultado, assim, de uma justiça que se faz valer da história e da memória no complexo tecido da imaginação e da sua criação.