Ai de quem disser mal de Sérgio Godinho

por Romão Rodrigues,    18 Julho, 2020
Ai de quem disser mal de Sérgio Godinho
Fotografia de Tore Sætre (@toresetrephoto) / Wikimedia
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Longe vão os anos 40. País quedado e vítima de uma depressão cultural, com o ímpeto de nenhures e, por isso, inapto a levantar uma barreira ao salazarismo “impoluto”. A classe operária predisposta a cometer uma loucura de estirpe desconhecida a fim de contrariar a miséria e a fome que a deglutia. Precariedade genuína. Os loucos, os revolucionários, os exilados, os presos políticos, os conformistas, as panelinhas e os tachos do “governo”, a labuta diária nos campos agrícolas, as indústrias e o fumo, o presente ali tão trágico e alheio a esperanças — ou fé, para quem considerou a Igreja capaz de partilhar o protagonismo da revolução — e o futuro com travos do passado.

No âmago do estado calamitoso, a 31 de agosto de 1945, nasce aquele a quem todos devemos — no mínimo — alguma coisa. Almas que já transpuseram o lado de lá (ou não) falam e descrevem que, à data, foi notório um pequeno abalo à superfície terrestre. Inversamente, prefiro não crer em palermices e tiradas hiperbólicas: “com um brilhozinho nos olhos”, corroboro e exulto com o nascimento de Sérgio Godinho, figura ímpar da música popular portuguesa, poeta a quem poucos reconhecem o epíteto, ator (de modo a agudizar a ignomínia de uns), escritor, um dos alguns coarquitectos da democratização do estado português e um licenciado em Economia. A mãe tocava piano, a curiosidade rugiu e a aprendizagem deu-se. O irmão mais velho era tido como uma referência pelo culto prestado ao eterno rei do Rock ‘n’ Roll Elvis Presley.

O estouro dos Fab Four, meninos bonitos de Liverpool, e a melodia harmoniosamente cândida instigaram a música do futuro intérprete. A convivência constante com a língua francesa espevitou os ouvidos aquando da escuta de Brel, Brassens e Ferrer. A atenção confinada aos temas brasileiros da época e o aparecimento do doutor José Afonso. A guitarra auferida por intermédio do primeiro salário ganho e do primeiro suor promotor de alegria.

No auge da juventude, o elixir dinamizou o desejo de partir, de sulcar e palmilhar as travessias possíveis. Cá não restava um esconderijo para o menino já politizado. A cidade do Porto aprisionava-o, a sua alma naufragava no Douro. A efervescência atafulhava os órgãos e arrumava-os sem organização aparente; o espaço de sobra estava destinado a alguns dos tentáculos da Arte. Kerouac (On The Road) representou, à época, o ponto de inversão de marcha racional e fê-lo ir mais além. Durante o período de viagem, sempre se alimentou da palavra e pretendia, através dela, experimentar “outros povos, outras culturas”, torná-la o seu andarilho: daqui, ressalta ao campo de visão a participação no prestigiado musical “Air”, em Paris, a companhia de teatro de Vancouver da qual fez parte, o tempo bimensal no Brasil e a prisão provocada por um estudo feito no seio da comunidade trabalhadora e pela índole (semi)anarquista e refratária do Living Theatre.

A erroneamente rotulada música de “intervenção”, “canto livre” ou “canção-arma” instaurava no pensamento de quem a ouvia um duplo sentido, o ler nas entrelinhas, a mensagem trespassada por intermédio de códigos e acessos restritos: o que foi escrito representa — apenas — a vegetação que cobre a opulência da floresta musical. Portugal apresenta um certo estigma em denominar e atribuir apressadamente um significado a algo e colocá-lo na respetiva prateleira. Ignobilmente, permanece a impossibilidade de criação de um novo espaço, novo lar ou nova gaveta. Repare-se que Zeca Afonso, José Mário, Sérgio Godinho, Fausto e Vitorino são prontamente agarrados e dispostos sob o teto falso da intervenção. Até Sam The Kid — numa homenagem póstuma a Zeca Afonso — (imagine-se!) foi envolvido nesta tramoia. Daqui, certamente que se extrai o poder do comportamento análogo…

Adiante! Se, por exemplo, Zeca Afonso abraçou África e a associou a melodias da Beira Interior, Sérgio Godinho quis adornar o seu trabalho com observação massiva e a aplicação da estratégia do “saber ouvir para depois contar”. Até 1971, a grande maioria das suas canções eram erigidas sob a paleta de tintas francófonas; contudo, Sobreviventes sinaliza a transposição para a língua-mãe. A construção dos seus projetos, mesmo durante o período atribulado da pré-revolução e do tão atual PREC, açambarcou tudo o que pôde das relações humanas e sociais (que uma quase licenciatura em Psicologia influenciou?) e emproou-se num conjunto de vocábulos grafados com o mesmo prefixo: autorreflexão, autocrítica, autoconvencimento, auto heroísmo, autoconsciência, autoironia. Admitoque, há 45 anos, perante tamanha barafunda, a confusão e o arrastamento para o campo da política fosse normal; hoje em dia, reaproveitando um “trumpismo”, é fake news.

Em diversas entrevistas concedidas a estâncias de informação, Sérgio afirma sempre que a poesia o acompanhou quase desde berço. Para quem o conhece minimamente, é um dado adquirido porque, segregando a melodia da lírica, resta uma bela colheita de palavras, num pleno de sabor e capazes de provocar o típico estalido de boca de quem prova um vinho.

Mas continua a ser “muito parado”. Porque nos concertos de Sérgio Godinho não existem guitarras elétricas e percussão ativa, nem diferentes — destaque para a palavra — estilos de músicos a colaborar no cimo do palco. E continua a ser “muito sem sal”. Porque o cantautor permanece agarrado ao objeto do primeiro e segundo disco, nunca deu mostras de inovação ou originalidade e não repensou ou se adaptou às exigências do que julga ser a música; ou porque não integrou projetos aparentemente sem a mínima símile visível (com os Clã foi fraco, fraquinho, e com Chico Buarque nem se fala). E continua a ser “muito para velhos”. Eu
sou um exemplo disso. Vi dois concertos dele há mais de dez anos e ignorei o aviso na soleira do recinto “proibida a entrada a menores de 65 anos”. Senti o cheiro da naftalina e coloquei-me em alerta. Mas os meus pais passaram despercebidos. Assim como tantos outros.

Sérgio Godinho não é o rapaz da camisola verde, embora ainda possua muito do seu espírito. Regenerou-se, sofreu mutações, mas não é vírus. Enforma as palavras, deforma-as no verso seguinte e alimenta-se de trocadilhos mordazes no conteúdo. Redunda entre a festa e o silêncio, a agitação profana e a calmaria. Sobrevoa gerações com a mesma vitalidade e encontra o ponto de fusão. Não perde a essência, confere-lhe toques amigáveis de reconstrução e doma-a consoante o autodidatismo.

Sigo a linha de Capicua em entrevista: ai de quem disser mal de Sérgio Godinho!

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