Alabaster DePlume ao vivo: honestidade radical e alegria de viver
Há concertos que se assemelham a uma sessão de terapia, por diferentes motivos. Usualmente, é porque a música e o facto de sermos, de alguma forma, forçados a isolar-nos do mundo exterior e a concentrar-nos no que está a ser tocado no palco à nossa frente, abre espaço para que a nossa mente corra sem amarras. Entre apreciar a música, entregar-nos à corporalidade dos seus efeitos no nosso corpo e ocasionalmente incomodar-nos com pessoas que quebram o feitiço do concerto e nos devolvem à realidade imperdoável através de coisas como um ecrã de telemóvel brilhante ou conversas paralelas, o nosso cérebro não deixa de funcionar. Muitas vezes, isso leva-nos a locais que não sabíamos existir dentro de nós, permitindo que emoções desconhecidas aflorem. Esse é um dos grandes poderes da música e que sempre nos levará de volta a ela.
Um concerto de Alabaster DePlume leva a proposta da música como terapia ao extremo. Através de poesia e spoken word, jazz bucólico e post-punk propulsivo, o artista inglês pretende criar uma plataforma para que as pessoas se conheçam melhor e, principalmente, que se soltem. O que se espera é que, nesse processo, abram as portas ao mundo e a tudo o que nele há de bom. Para isso, Alabaster pratica o amor, a aceitação, o auto-conhecimento e a ligação interpessoal, exortando a todos nós que façamos o mesmo. Em vários momentos ao longo do último concerto que deu na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, no passado dia 29 de fevereiro — que dia mais adequado para um concerto assim do que o dia “extra” de um ano bissexto? — , disse a nós, público, que nos amava e, para além disso, que nos reconhecia.
O que é isto de nos reconhecer? Reconhece-nos como iguais, como pessoas que vivem e que, para o fazerem, fazem um enorme esforço. Para ele, viver é sofrer, mas o mero facto de aceitarmos isso já é um enorme passo na direcção de genuinamente desfrutarmos da vida e fazermos os possíveis para a aproveitar. É por isso que o facto de nós, como pessoas com agência para tomar qualquer decisão, termos escolhido passar aquele tempo com um dos seus concertos o enche de uma alegria incontrolável. “Vocês acham que vieram para me ver, mas na verdade eu é que vim para vos ver”, disse-nos o carismático poeta que se alimenta do que recebe das trocas com outras pessoas, seja através de conversas ou trocas de olhares honestas, canalizando-o em arte audível.
GOLD, o álbum que lançou em 2022, é pontuado várias vezes pela frase “I am brazen like a baby”, que se traduz em algo como “Sou descarado como um bebé”. Esse bem-vindo descaramento é aquilo que o permite criar arte tão honesta. Os seus poemas e interacções connosco guiam-nos pelo seu processo de pensamento. A certa altura, depois de ter largado o saxofone pela guitarra para uma música, começa a dar-nos contexto sobre o que aí vem mas detém-se a meio de uma frase.
“O que é que acabou de acontecer?”, pergunta-se a si mesmo. Após uns segundos de análise, descobre que estava preocupado com a reacção do público ao ver que ele iria para uma segunda canção sem saxofone, talvez um dos chamarizes do público à sua música. Como tal, pensou que teria de dar um sinal ao público para o assegurar de que o saxofone ainda voltaria. É aquilo a que chama pensamento intrusivo, que muitas vezes nos assalta. Esta abordagem de Alabaster DePlume é algo como chegar ao palco, abrir a cabeça, dispor todos os pensamentos possíveis à nossa frente e organizá-los de alguma forma, usando a música como invólucro perfeito.
Em termos musicais, as suas canções parecem brotar da terra como o vapor lento de fumarolas, pelo favorecimento dos sons graves da bateria, do baixo e do seu saxofone “trémulo”, como o próprio Alabaster o descreveu repetidamente ao longo do concerto. Daí, ou se esfumam em segmentos etéreos que o poeta preenche com os seus pensamentos de fluxo de consciência — por vezes improvisados, por vezes não — ou vão-se enchendo de som até ao seu natural e necessário clímax.
“Don’t Forget You’re Precious”, das poucas canções que não faz uso do saxofone, é uma carta de amor a ser humano, relembrando-nos que somos preciosos e devemos cuidar-nos como tal. Nós lembramo-nos de coisas como “verificar o nosso Instagram” ou do “e-mail do nosso ex”, mas não de que somos preciosos. No entanto, está tudo bem, isso também é parte de ser humano. Só não nos podemos esquecer tão frequentemente. “People: What’s the Difference?” exalta as nossas semelhanças, entrando num trance repetitivo que realmente enfatiza o ridículo de nos separarmos em facções e nos atacarmos mutuamente. Como tal, a letra repetida de “people in the sea” é interpolada por “from the river to the sea”, o canto adoptado da causa pró-Palestina. Aliás, Alabaster é bastante vocal nesse sentido, cantando uma canção inédita que escreveu “para suportar o Natal” que inclui referências ao genocídio que está a acontecer perante os nossos olhos e envergando um keffiyeh palestiniano.
Enfim, toda esta conjugação de abordagens pode não tocar a todos da mesma forma. O seu estilo pode ser demasiado alternativo ou até radicalmente honesto para algumas pessoas. Mas quem se permitir abrir a percepção e tentar ver o mundo da forma brilhante como Alabaster o vê, certamente encontra na sua música e na sua maneira de viver a vida um exemplo a seguir. Para mim, a coisa especial é que, apesar de os temas que o artista aborda se aproximarem perigosamente do movediço terreno da auto-ajuda, a leveza e comédia com que ele o faz tornam a mensagem em algo desprovido de hipocrisia. É algo que se aproxima mais do genuíno encantamento de um bebé. É isso que Alabaster demonstrava no final de canções mais exigentes ou compenetradas, celebrando-as como se fosse a primeira vez que as tivesse tocado bem. Joie de vivre, é o que nos falta um pouquinho a todos.
Este concerto em Lisboa foi o primeiro de uma pequena tour portuguesa, que prosseguiu em Coimbra, no Salão Brazil, no dia 1 de Março, e terminou em Braga, no GNRation, no dia 2 de Março.