“Apontar é Feio”, de Joana Marques: um livro extremamente agradável

por Herman J. Ribeiro,    19 Julho, 2022
“Apontar é Feio”, de Joana Marques: um livro extremamente agradável
Capa do livro “Apontar é Feio”, de Joana Marques

Há três humoristas portugueses que arrancam de mim as maiores gargalhadas. Que são dois: Chaplin. 

Porém, a humorista Joana Marques, autora de Vai Correr Tudo Mal (Manuscrito, 2019) e o seu magnus opus O Meu Coração Só Tem Uma Cor (Contraponto, 2018), escreveu, não vai para dois meses, um belíssimo volume de crónicas humorísticas titulado Apontar é Feio, editado pela Contraponto. No momento em que escrevo, o livro está na secção da Bertrand on-line «Os Livros De Que Todos Falam» e no Top Fnac, em segundo lugar. Facto que, na verdade, para um humorista, não quer dizer muito, dado que o sucesso — «pelo menos é assim que eu vejo as coisas» — não tem graça nenhuma. Já o livro tem muita. 

Na contracapa, lugar estratégico que permite a leitores vários afirmar no Instagram terem lido Guerra e Paz, a editora refere-se ao livro como «um caderno com apontamentos que Joana Marques sempre usou para tomar notas na escola.» Ora, é comummente sabido, pelo menos entre os entusiastas da autora, que «caderno de apontamentos» nada mais é do que um eufemismo para ridendo castigat mores. Tal como As Viagens de Gulliver tinha a pretensão, segundo o autor, de agredir o mundo, não de o divertir, Apontar é Feio de Joana Marques assume ser as duas coisas: uma agressão que também diverte o mundo. 

O livro começa com um prefácio da autora, porque «até à data de impressão […] a minha avó não se mostrou disponível para escrever algumas linhas a destacar os meus principais atributos». O prefácio é precedido por uma advertência em epígrafe, encetada aos dois filhos, que passo a citar: «para que aprendam que apontar é feio e tenham boas maneiras, ao contrário da mãe», revelando o natural egoísmo de todo e qualquer comediante — em querer que a graça fique só com ela. 

Do prefácio em diante, as disciplinas que dividem os temas das crónicas: «Ciências da Natureza», «Educação Física», «Educação Visual e Tecnológica», «Estudo do Meio», «Físico-Química», «Português», «História», «Geografia» e «Matemática». Em todas elas, situa-se, na abertura, um breve sumário da «matéria dada», ajudando o leitor preguiçoso — ou crítico literário — que deseje escrever, à revelia, para um qualquer jornal, um texto sobre o livro sem necessitar de o ler. Não é o caso, evidentemente, do autor deste texto, excelsa figura de assinalável compromisso com a literatura. 

Dos temas da sociedade portuguesa escolhidos por Joana Marques, destacam-se aqui os mais preeminentes: «O espaço aéreo da Venda do Pinheiro», «Penálti assinalado a Marega» — talvez a crónica mais levada a sério —, «Cheeseburgers que explicam o sucesso de Cristiano Ronaldo», «Desconfinamentos, festas da espuma, manteiga Primor», «Divórcio provocado por bananas», «Portugueses com gel no cabelo e um pijaminha de sobremesas», «Neologismos das Spice Girls», «A Nelly Furtado do terrorismo», «Cabelo-oxigenado-shaming». 

À conta dos títulos das crónicas não pense o leitor fina flor, habituado às andanças eruditas de um Tchékhov ou Louis MacNeice, que não há matéria faceta que lhe encha as medidas, pois a autora prova que ambos os leitores são dignos da sua obra: tanto o leitor erudito como o de Prometo Falhar. Pois se alguém há que não discrimina é Joana Marques. 

Assim sendo, as crónicas podem ser lidas e usufruídas a bel-prazer do leitor sem que por isso dê conta de trocadilhos que remetem para Descartes, «Arbitro, Logo Existo»; Peter Handke, «A angústia do árbitro no momento em que decide ser árbitro»; Vasco Santana, «Treinadores há muitos, seu palerma!», sucessos de Lena D’Agua, «É para o juiz e para a juíza», ou até à mais alta arte iconoclasta, disruptiva, pioneira — e é aí que o livro ganha em credibilidade, claro — o êxito do douto Tino, «Pão com Manteiga»; e por aí fora.  

Em súmula, o livro de Joana Marques está, de facto — e eu nunca li os formalistas russos — muito bem esgalhado. E o leitor chegará ao fim do livro com a matéria na ponta da língua, as boas maneiras adquiridas e, claro, com a lição de que — apontar é feio e extremamente desagradável.

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