Arca confronta-nos com a sua voz no seu álbum homónimo
Antes de me dedicar a escrutinar o álbum sobre o qual escrevo esta crítica, há que explicar que o atraso se deve ao facto de que este não e um álbum fácil de ouvir, quanto mais de analisar. Há algo confrontador no mesmo, começando logo pela capa, criada por Jesse Kanda, em que a imagem de uma face nos perscruta. A mesma está muito processada e saturada, com a pele retocada e brilhante. O olhar é desafiante e atractivo. Como a maioria do universo visual de Arca, é intrigante e provoca uma reacção que nem sempre é positiva. Mas tudo isso faz parte da sua arte.
Como a capa nos permite inferir, este novo álbum de Alejandro Ghersi (vulgo Arca) é bastante mais pessoal que os prévios. A sua voz figura ao longo de uma boa parte do mesmo, sem sequer estar mascarada por efeitos. Nos álbuns anteriores, as reacções suscitadas pela audição da sua música eram maioritariamente viscerais, reacções naturais e involuntárias a sons electrónicos desconcertantes. Aqui, a resposta é maioritariamente emocional, devida à vulnerabilidade, pureza e honestidade conjurada pela voz de Ghersi, que escolhe cantar em espanhol por ser a língua em que, segundo ele, aprendeu a sentir emoções.
Depois de colaborar com Björk, em Vulnicura, os dois tornaram-se amigos. Foi por influência da islandesa que Ghersi decidiu voltar a incluir a sua voz na sua música, algo que fazia nos primórdios da sua carreira musical. Tendo em conta o resultado final, pode dizer-se que é uma aposta ganha, logo após a primeira faixa, a arrepiante “Piel”, em que, num quase sussurro, Ghersi pede: “Quitame la piel de ayer”, num apelo para se tornar numa pessoa diferente, algo que estabelece a toada do resto do álbum.
Este novo foco na voz não resulta num descuramento dos sons electrónicos, que continuam a ser a base das canções de Arca. Soam maioritariamente profundos e atmosféricos, como se estivessem rodeados de nuvens tempestuosas, nomeadamente nas canções sem percussão. Alguns sons soam familiares, como a melodia de “Saunter” ou a marca dos dois minutos em “Reverie”, que é reminiscente de “Gratitud”, do álbum de 2015, Mutant.
A beleza e reverência conjurada pelas canções mais tranquilas é quebrada ocasionalmente por momentos mais caóticos, aos quais Ghersi já nos habituou. O exemplo mais gritante é “Whip”, uma peça opressiva e hipnotizante, com quase nenhuma estrutura, que usa samples de chicotes para dar ao ouvinte uma espécie de castigo auditivo, como se nos quisesse afastar deste álbum, para não entrarmos mais na psique do seu autor. Claro que o efeito é o contrário, é uma canção que prende a atenção, talvez denotando uma curiosidade mórbida humana pela opressão e pelo masoquismo. “Castration” é outro clímax percussivo, bem mais estruturado e com alguma sensibilidade dançável, sendo um dos números mais cativantes do álbum.
No geral, as canções surgem de uma forma mais despida e organizada que nos álbuns anteriores. O epítome desta tese é “Desafío”, provavelmente a canção mais acessível e pop de Arca, o que não significa que a ouviremos na Rádio Comercial dentro de uns tempos. Tem uma estrutura, sim, com pontes entre os versos e o refrão glorioso, mas soa etérea, como se planasse pelos nossos ouvidos adentro. É estranhamente leve, para uma canção que descreve uma paixão que rebenta por dentro e que cria um abismo dentro do músico.
Este é um álbum feito de oposições e confrontos, e rico em textura, que cria um suspense temático e sonoro. Talvez por isso seja tão complicado de se ouvir. Esse suspense estende-se para lá do álbum, ao próximo passo de Alejandro Ghersi. A sua música sempre foi imprevisível, mas agora fica muito difícil traçar o próximo passo lógico da sua carreira desafiante. Para já, podemos contentar-nos com o facto de que conhecemos um pouco melhor a figura críptica que dá pelo nome de Arca.