Arte com vida
Aquecimento global. Poluição marinha. Esgotamento de recursos. Todos os dias se leem manchetes de jornais e revistas onde estes parecem ser os temas de destaque. É percetível que em pleno século XXI o maior receio antropogénico seja a forma como toda a biosfera é afetada pelos problemas causados, precisamente, pelo antropocentrismo. Deve-se também considerar que o próprio medo em questão tem fundamento antropocentrista; receia-se a mudança, não pelo que esta possa infligir na biosfera em geral, mas pelo que pode infligir na atual esfera de influência do ser humano. Isto é, o ser humano preocupa-se finalmente com o ambiente, na medida em que percebe que pode deixar de fazer parte deste, por sua própria responsabilidade. Ouvem-se imensas vozes, umas apelando à conservação dos meios afetados, outras à transformação destes; no final de contas, tudo o que interessa é a manutenção da supremacia do Homo sapiens sapiens.
Por outro lado, um conjunto de vozes começaram a surgir na viragem do milénio, preocupadas não com projeções de soluções para o futuro humanitário, mas sim com o debate de como os problemas em questão devem ser abordados e discutidos dentro das comunidades; numa sociedade desinformada sobre o que é realmente uma proteína e quais as suas funções, na qual o entendimento de sistemas de biologia roça por vezes o analfabetismo, parece lógico que as soluções apresentadas não sejam francamente sólidas ou funcionais.
Hoje, fenómenos como Greta Thunberg parecem incentivar uma abordagem ao ecossistema global paralela à dos pregões religiosos tão conhecidos do progresso humano. Não que a ação desta mereça crítica negativa, no atual panorama evidenciava-se a necessidade duma voz emergente relativa a esta temática, e claramente o papel foi cumprido. O que merece crítica negativa é a opinião global, com ou sem influência de Greta, que parece olhar para o ambiente como algo a ser conservado a todos os custos, não aceitando qualquer principio transformativo, olhando para resíduos como algo que deve ser controlado sem compreensão da real influência destes no natural funcionamento do planeta, debates sobre recursos, sem entendimento do que estes simbolizam para o ecossistema global. Quero com isto criticar o fanatismo com que vozes se opõem ao “deitar uma corisca para o chão”, desconhecendo a razão física pela qual esta ação não deve ocorrer, nomeadamente os efeitos da lixiviação de águas em materiais cujo tempo de degradação supera em muito o processo de morte humana, e consequentemente, a influência que estes materiais podem vir a ter no normal funcionamento biológico dos ecossistemas afetados. Deve-se referir que a maior arma atualmente ao dispor do ser humano seja, sem sombra para dúvidas, o poder da informação; na eventualidade de se continuar a criticar e abordar temas com base em domínios desinformativos, certamente se chegará a um ponto equivocado e falacioso na história humana; parece-me que exemplos negativos existem já no nosso progresso, gratuitamente influenciados por ignorância factual, e devem mais do que nunca ser observados e cuidadosamente discutidos, para que momentos negros da história não se venham a repetir.
Porém, revela-se árdua a tarefa de informar quase 8 biliões de seres humanos da sua real importância na esfera biológica planetária. Mais árdua é ainda a tarefa de informar estes mesmos humanos de como sistemas de biologia se processam. Uma aparente solução passaria por uma educação reformulada, assente numa aprendizagem mais interativa com o domínio das ciências da vida; porém esta solução desprezaria grande parte da população mundial, já que esta já não se encontra atualmente em fase de ser educada, devido essencialmente a um envelhecimento globalizado, mais fortemente exprimido no contexto ocidental. Por outro lado, a conjetura da cultura consumista incentiva cada vez mais à obtenção, crítica e produção de material expressivo. Cada vez mais indivíduos veem nas artes uma solução para um mundo que parece oprimir a livre expressão, e cada vez mais indivíduos veem nas artes uma forma de obterem inspiração e, de forma indireta, pedaços de informação que doutra forma lhes ficariam vedados por trás de academias e corporações que se afirmam detentoras da sabedoria mundial. Logo, parece lógico que, talvez pela primeira vez em cinco séculos, a livre e criativa expressão tenha um lugar pedagógico de destaque, podendo partir daqui um incentivo a um melhor entendimento de sistemas de biologia e de como, em geral, se processa o fenómeno da vida. Este entendimento deve ser alargado a toda a biosfera, e não apenas a bocados sensacionalistas que incentivem a um domínio da desinformação por parte de órgãos sociais que continuam a lucrar com assuntos que deveriam ser, claramente, causas maiores.
Entramos no contexto da arte com vida. Demonstra-se relevante que com todo o sensacionalismo em torno de questões ambientais, obras de expressão que façam uso de sistemas de biologia nos aproximem mais da realidade ecológica da biosfera.
Bioarte, termo informalmente criado por Eduardo Kac em 1997 para o seu trabalho Time Capsule no interface biologia/tecnologia, coloca intervenientes dos palcos e oficinas com intervenientes de laboratórios lado a lado, com vista a criação de produtos de expressão que façam uso de materiais biológicos, sejam estes componentes celulares ou moleculares, células, tecidos ou mesmo formas mais complexas, com destaque para material genético, sendo que muitas vezes os produtos obtidos resultam de modificações génicas promovidas pelos autores. Este tipo de produção não procura, em geral, encontrar soluções para problemas atuais; no entanto, consegue iniciar e moderar discussões que devem ser debatidas com a comunidade; destas discussões podem surgir novas possibilidades de soluções, ou mesmo soluções. Veja-se o trabalho de Kac “GFP Bunny (2000)”. Na realidade, o autor apenas incluiu no genoma duma coelha albina o gene que exprime GFP (sigla para Green Fluorescent Protein, proteína verde fluorescente em português), muito usado em laboratórios como marcador biológico pelas suas propriedades, desta forma dando a Alba (nome dado pela família de Kac ao animal em questão) um brilho natural quando iluminada com luz no espectro azul, sendo estas propriedades mais ativas a 488nm. É importante referir que este gene codificador de GFP não é de si algo sintético; este gene (avGFP) exprime-se naturalmente em Aequorea victoria, uma alforreca com propriedades bioluminescentes (Kac usou uma forma mutante, denominada EGFP, que produz melhores resultados quando inserida em genomas de mamíferos, como é o caso de Alba). Esta arte transgénica, como apelidada pelo autor, propõe uma profunda discussão bioética; se por um lado, a transformação em formas de vida complexas, no caso de mamíferos, é contestada, sendo legalmente impossível na EU, com exceção de laboratórios com níveis de segurança elevados e estatalmente reconhecidos, por outro também o respeito pela vida e bem-estar animal está atualmente em fogosa discussão. Ora, apesar de muito criticado e censurado pela comunidade internacional após mostrar Alba ao público, Kac demonstrou que Alba era simplesmente um coelho mutante, com apenas um gene diferente de todos os restantes da sua espécie, cujo bem-estar seria mais que assegurado pela família de Kac, este incluído. A discussão sobre este tema de modificação foi, desta forma, levada a contextos fora dos laboratórios de grandes corporações, para dentro das casas de qualquer individuo interessado.
Hoje, empresas americanas já comercializam peixes zebra modificados com GFP para aquários de recreação, existem estudos, em gatos, sobre a utilização de GFP para identificação de infetados com HIV na população, projetos como Glowing Plant Project propõem uma alternativa ao uso convencional de eletricidade para efeitos de iluminação (conferindo a plantas, no caso Arabidopsis thaliana, brilho natural, tornando-as curiosas luzes de presença) para além de Alba, que ainda hoje tem imenso destaque em discussões bioéticas. Parece lógico assumir que a ousadia de Kac direcionou a discussão relativa a OGM (organismos geneticamente modificados) num sentido totalmente diferente, confrontando o religiosismo das academias de ciências e pensadores bioéticos relativamente a património genético. Parece-me também digno de referência que grande parte da população mundial não conhece ainda a diferença entre um organismo geneticamente modificado, que pode ser um subproduto de engenharia metabólica (isto é, pode ter a expressão de algum gene de interesse aumentada, sem uso de genes exóticos ou externos ao organismo em questão) e um transgénico, o qual compete a inserção de material genético de outro organismo no organismo a ser modificado (Alba é um exemplo de um organismo transgénico; já o “salmão transgénico”, AquAdvantage Salmon, pode ser considerado um subproduto de engenharia metabólica, sendo que se estimula a expressão da hormona de crescimento do salmão atlântico recorrendo a um gene existente noutra variedade de salmão, Chinook, sendo geneticamente modificado, mas não transgénico).
Outros artistas seguem uma direção diferente em questões e ações, sendo de referir os trabalhos de Stelarc de biomodificação e performance, nomeadamente o controlo de um exoesqueleto com a mobilidade do autor, aliado a um braço pneumático controlado pelo braço esquerdo deste, ou a produção de uma terceira orelha, posteriormente inserida no seu braço esquerdo; Oron Catts e Ionat Zurr (entre outros) nos seus projetos saídos da SymbioticA, dos quais partiram relevantes críticas à perceção de tecidos, sendo Victimless Leather (2004) um exemplo, no qual produzem um pequeno casaco de pele de rato reforçado com células ósseas humanas que mantêm em ambiente controlado, questionando a finalidade, inicialmente defensiva, atualmente identitária, do uso de vestuário, bem como abordando o tema do uso de tecidos, previamente vivos, para manufaturação têxtil; e, claro, da portuguesa Marta de Menezes, que pela mesma altura que Kac produziu a “GFP Bunny”, estava a produzir arte interferindo nos padrões de crescimento das asas de borboletas, criando padrões nunca antes vistos na natureza, com a beleza de não haverem elementos sintéticos no processo. Todos parecem dirigir-nos no sentido de fortalecer a nossa cultura sobre vida, ou biologia, no sentido da sua formação, transformação e evolução, quebrar tabus e superstições e informar sobre técnicas laboratoriais e o seu peso no quotidiano, no mínimo.
Mas talvez o mais importante seja que apesar de toda a contestação e receios, esta prática parece, finalmente, ter a capacidade de aproximar a comunidade do sistema biológico, como um todo, e incentivar à consciencialização sobre o que somos, onde estamos, e o que fazemos.
Crónica de Vítor Silveira
Licenciado em Biotecnologia, tendo previamente estudado Sociologia, tem no interface Biologia e Tecnologia a sua constante investigação autónoma. Entusiasta e ativista Biohacker, desenvolve protótipos de equipamentos de laboratório de biologia, em contexto DIY, para uso em investigação independente e produção biológica expressiva.