As cores do Brasil em “Marrom e Amarelo”, de Paulo Scott
Separados por cores, unidos por uma história moldada pela força. O Brasil, para quem vive na Europa, é um território de promessas. O idílio encontrado há séculos mantém o fascínio de quem olha de fora, do estrangeiro, de quem procura a beleza do turismo asséptico. Do outro lado, do lado de quem percorre as avenidas, ruas e favelas já não há o fascínio do índio pelo branco colonizador ou pelo negro escravizado. É demasiado intrínseco para causar estranheza. O olhar estrangeiro é o de quem procura conhecer sem ser incomodado. Quer ver o Cristo Redentor olhando por cima das cabeças de quem fez do Brasil o seu dia-a-dia. Se tiver o interesse em baixar o olhar e ver mais de perto observará múltiplas tonalidades na tez do povo brasileiro. Se procurar além do samba na fala, então olhe um pouco mais para baixo, olhe para as prateleiras das livrarias, selecione o trabalho de quem espelha a vida nas palavras. Livros como “Marrom e Amarelo” (Tinta-da-China) são o oposto dos postais ilustrados. Autores como Paulo Scott (n. 1966) não se prestam ao serviço de guias turísticos a pastorear turistas. O Brasil de Paulo Scott é o Brasil de quem conhece o cheiro das favelas, o Brasil de quem sabe como os séculos os empurraram até este momento.
“Nenhuma boa história é leve, Federico, Nenhuma boa história deixa de fora o que é denso, o que é pesado, observa.”
A consciência social do autor nascido em Porto Alegre já havia ficado bem vincada em “Habitante Irreal” (Tinta-da-China). Nesta obra, galardoada com o Prémio Machado Assis em 2012, é pensada a questão indígena e o autoconhecimento do indivíduo, necessariamente contextualizados pela vertente sociológica. Scott procura compreender o outro e denunciar as injustiças endémicas da sociedade brasileira. “Marrom e Amarelo” mantém essa substância. Agora não são os indígenas, mas esse racismo endógeno à psique do povo brasileiro. A miscigenação é em tal grau que a divisão cromática é inverosímil. Tudo fica mais complexo quando a existência de racismo não é declarada inimigo público. Mais, nem é reconhecido como problema. Neste mês de Novembro de 2020, aconteceu mais um exemplo. Um homem foi espancado até à morte numa loja Carrefour. Chamava-se João Alberto Silveira Freitas, 42 anos, e a sua pele tinha a cor “errada”. É um daqueles casos em que arte e realidade se cruzam. João Alberto Silveira de Freitas foi morto na cidade do autor, foi morto na idade dos personagens Federico e Lourenço.
Hamilton Mourão, vice-presidente da República afirmou, em declarações à comunicação social, que “No Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil. Isso não existe aqui.” Esta opinião é secundada por Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares, quando afirmou que não existe racismo estrutural no Brasil. Para Sérgio Camargo, é algo circunstancial.
Não é o que história nos ensina.
Entre o princípio do século XVI e o fim do século XIX, mais de 12 milhões de africanos foram raptados, vendidos e transportados para o continente americano. Cerca de 5 milhões foram para o Brasil. A miscigenação entre indígenas, europeus e africanos foi consequência previsível. A formação da identidade nacional fundou-se na mestiçagem como local de convergência entre negros, indígenas (também escravizados), portugueses e outras nacionalidades europeias.
O Brasil é um dos países com maior população negra fora de África. No entanto, a representação negra no poder de decisão na sociedade brasileira é reduzida. Mesmo que haja instrumentos legais que impeçam descriminação, o racismo manifesta-se informalmente. Essa informalidade espelha-se no poder, mas tem raízes emaranhadas no substrato do pensamento do povo brasileiro. No pensamento, mas não no diálogo. É algo latente, mas afastado do debate.
Em “Marrom e Amarelo” existem dois irmãos com peles e pensamento distintos. Federico é de poucas falas, mas de muito activismo. Tem a pele clara, ao contrário do seu irmão, Lourenço.
Os dois vivem nos subúrbios de Porto Alegre, onde cresceram, e sentem a mal-escondida tensão racial. Federico, em conversa com a mãe, atreve-se a destapar esse mal-estar: “Eu olho pra maneira como vocês me criaram, pra criação que tu e o pai deram pra mim e pro Lourenço, e não vejo quase nada de negritude, do mundo negro, quase nada da cultura negra, falo dum modo dramático, que, por ser a minha mãe a interlocutora, não consigo evitar, Nós somos uma família negra, porque tu sempre disse que a gente era negro, Tudo bem, Mas onde tá a nossa negritude, Nós parecemos uma família branca, só nos relacionamos com gente branca, teus colegas e amigos, com exceção dos Moreira e dos Arantes, são gente branca, os colegas e amigos do pai são brancos, A gente se blindou, Porque acho que, no fundo, esse era o jeito do pai de se afirmar, De se blindar e não enxergar nada que envolvesse essa história de raça, de ignorar os brancos, de ignorar os brancos que não gostam de gente escura, Mas também de ignorar todo o resto, Os negros, A cultura negra, O racismo, digo. Tu tá falando do quê, Federico, diz. Estou falando dessa palavra que, até pra nós, é um tabu, Racismo.”
Paulo Scott não cala a denuncia. Em cada palavra há um assomo de raiva, de ferocidade, perante as assimetrias sociais no Brasil. A torrente de frases intercaladas, qual estilística saramaguiana, levam o leitor ao ritmo dessa ânsia de justiça brandida por Paulo Scott.
A narração não cabe a um “eu” narrativo, mas dificilmente poderia ser mais pessoal. A corrente interna da prosa de “Marrom e Amarelo” é o ponto de vista do autor sobre o país onde vive. Talvez devesse ser denominado como países, ou como Brasil –Reino policromático e desunido pelas diversas cores dos seus constituintes. E são tantas e esbatidas pela miscigenação racial até ao ponto de ser caricato dividir a sociedade conforme a cor da pele. No entanto, essa divisão existe:
“Tu é metidão, Federico, sempre foi, Olha tua cor, olha o teu cabelo, o jeito que tu usa esse teu cabelo lambido, Tu tem essa tua casca de branco, essa pele passe-livre do caralho, Tu nunca vai entender o que é ser preto, ser um fodido perseguido vinte e quatro horas na tua rua, no teu bairro, na tua cidade, Tu não sabe, Tu é metidão (…)”
Parece haver uma separação insanável marcada pelos efeitos sociais provocados pela cor da pele, ou melhor, as divisões sociais que aproveitam a cor da pele para separar e escarnecer. O que poderia ser riqueza e orgulho é transformado em pobreza e violência. A pluralidade racial está na raiz do Brasil. Como diz um personagem,
“Não tem como criar uma régua de cor, um negrômetro, uma régua racial para inserir num programa de computador (…)”
A tentativa de fixar quotas no Ensino Público Federal, com base nas nuances cromáticas, mostra o absurdo de uma sociedade mais burocrata que libertária: “Da parte dos negros, primeiro foram alguns alunos pretos contra alunos pardos que, nos critérios daqueles alunos pretos, não eram suficientemente pardos (…) E também os alunos pretos e alunos pardos contra os alunos que se diziam pardos claros, mas nem pardos claros eram porque eram brancos na avaliação dos núcleos de militância negra, brancos safados que, aproveitando a exclusividade do critério da autodeclaração racial, pegando umas sessões em câmara de bronzeamento, aplicando autobronzeador spray na pele, pintando a pele, fazendo permanente no cabelo, preenchimento labial com botox, alegavam ser negros ou, sem recorrer a qualquer artifício, deixando que a pele clara continuasse clara, juravam ser de comunidade negra, netos de negros, bisnetos de negros (…)”
Identidade é a palavra chave das ideias de Paulo Scott. Mais do que protesto- e também “Marrom e Amarelo” tem essa vertente- o livro agora semifinalista do Prémio Oceanos é uma honesta procura da identidade brasileira. Nessa procura, cabe a denúncia, as dúvidas, a raiva e a frustração.
“Marrom e Amarelo” não é um panfleto; é uma ferida destapada por Paulo Scott.
Fica confirmado, em Portugal, o que “Habitante Irreal” apresentou: uma voz autoral distinta, denunciadora e apaixonada pelas causas que a substanciam.