As dicotomias em ‘Cartas de Amor e de Guerra’, de Mikhail Chichkin
É discutível até que ponto a Rússia alguma vez conseguirá regressar ao seu período literário áureo, presente desde a segunda metade do séc. XIX ao início do séc. XX, e embarcando nomes como Dostoiévski, Tólstoi ou Tchékhov. Nos dias de hoje o grande nome, unânime nos círculos dos críticos e dos prémios russos, mas também internacionalmente, é Mikhail Chichkin, já apontado várias vezes, aliás, como favorito a receber o prémio Nobel. Chichkin chega, pela primeira vez, ao mercado português, pela mão da editora Ítaca, que nos traz agora Cartas de Amor e de Guerra.
Com um título português a aludir a Guerra e Paz, de Tólstoi (o original Pismovnik, traduzido à letra, seria algo como Livro de Cartas), a premissa do livro não podia ser mais simples – um conjunto de cartas que são trocadas entre Volódia e Sachénka, ele em clima de guerra, na frente, e ela em casa, em clima de paz. As alusões temporais não são muitas, ao início é difícil posicionar a acção do livro num tempo, tanto podendo decorrer no séc. XIX como nos finais do séc. XX. Tanto que, quando nos é dado a perceber que Volódia se encontra, na realidade, na rebelião dos Boxers, decorrida entre 1899 e 1900, na China, a especificidade do conflito em questão nos acaba por parecer, de certa forma, irrelevante. Tanto podia ser esta guerra como outra, porque o foco da obra não é o retrato deste conflito em específico, mas sim a dicotomia que é marcada entre as vidas dos amantes no qual se centra o livro.
O que interessa a Chichkin não é, de todo, o enredo. As cartas são uma forma de se livrar do mesmo, como se cada carta encerrasse em si uma pequena história, um relato quer de histórias da infância e adolescência de ambos os protagonistas, quer de coisas do quotidiano pelo qual têm passado. Aprendemos acerca dos seus momentos a dois quando ambos estavam ainda juntos, ou das coisas que aconteceram no seio de ambas as famílias.
E se a forma e organização deste livro epistolar é estanque, Chichkin usa-o para brincar com o tempo. Enquanto as cartas de Volódia são temporalmente pouco espaçadas, descrevendo acontecimentos ocorrendo na guerra uns a seguir aos outros, as de Sachénka vão começando a dar saltos temporais maiores com o avançar do livro, ao mesmo tempo que são intercaladas com as de Volódia, na lógica sempre respeitada ao longo do livro de a cada carta de Volódia se seguir uma de Sachénka e vice-versa. É como se as cartas de Volódia se fossem perdendo e chegando a Sachénka com anos de distância, mesmo tendo sido escritas a apenas dias de distância entre si.
Não é este distanciamento, quer geográfico quer temporal, que afasta a necessidade de ambos os amantes se escreverem e, mesmo se as frases apaixonadas vão sendo cada vez menos recorrentes ao longo do livro, Volódia e Sachénka continuam a escrever e a contar as suas histórias da mesma maneira que o faz Sherezade nas mil e umas noites, como forma de escaparem à morte por mais um dia.
Cartas de Amor e de Guerra acaba por ser, fundamentalmente, um livro sobre a vida e a morte. “(…) do ponto de vista das cartas, já morremos. Não há cartas alheias”. É vida encerrada em forma escrita, independente da morte que possa chegar ou que já tenha chegado.