As lições para o presente e para o futuro do taoísmo
O taoísmo é herança das primeiras civilizações organizadas de origem chinesa e incorpora diferentes e importantes noções do que constava a sua filosofia de vida. Não esquecendo a importância e a relevância de Confúcio na dimensão moral de como funcionar uma sociedade, o taoísmo traz uma outra dimensão, que consolida as formas de pensamento destes povos. A diferença que distancia o taoísmo do confucionismo reside na ausência de uma ordem social rígida, embora também esteja vocacionado para um caminho “ideal”, sendo, nesta linha de pensamento, conhecida como o “tao”. O tao é o caminho, é o percurso dos ritmos que o universo traça ao longo dos tempos, sendo que o grande objetivo desta filosofia é a de encontrar a fonte e a substância de tudo que existe neste mesmo caminho.
Os conceitos e a visão
Como grandes premissas desta forma de estar no mundo, existem outras noções de especial relevância. A primeira é herança do pensamento de Confúcio (assim como de Shen Buhai, embora com uma visão voltada para a burocracia e para a administração), e trata-se do “wu wei”, ou seja, da ação sem intenção, sem esforço, em que a harmonia se gerar conflitos predomina, entregando-se à espontaneidade dos tempos e dos acontecimentos, rendendo-se à simplicidade e à natureza das coisas. De igual modo, as virtudes básicas do taoísmo são conhecidas como os “três tesouros”: a compaixão, a frugalidade e a humildade. É uma linha de pensamento que remonta ao quarto século antes de Cristo, bebendo da escola dos pensadores naturalistas de Yinyang, em que se procurava explicar o funcionamento do universo através das forças básicas da natureza. Aqui, assistia-se à primeira divisão dessa mundividência em duas dimensões: o yin – representativo do escuro e do feminino – e o yang – representando a leveza e o masculino. Na sua essência, estão os cinco elementos: a água, a terra, o fogo, a madeira e o metal.
Igualmente influente seria o livro “I Ching”, um livro de adivinhação codificado e transformado numa tentativa cosmológica de explicar o mundo, sendo composto por hexagramas (figuras com seis linhas horizontais, representativas do yin e do yang). Como pano de fundo, procurava dar os primeiros passos a uma forma de pensar como o comportamento humano poderia estar alinhado com os ciclos da Natureza, que tanto tinham de mutáveis como de imprevisíveis. Aquele que seria o grande manual deste percurso filosófico seria o “Tao Te Ching”, da autoria de Lao-Tsé. É um livro breve, de pequena dimensão, embora polvilhado de uma imensidão de provérbios que retratariam a mais profunda substância desta linha de pensamento. É o reflexo de uma tradição oral coletiva aprofundada, envolta de dúvidas e de incertezas (tal como o é a própria identidade do autor do livro). No entanto, procura vislumbrar a certeza da virtude no tal caminho do universo, o “tao”.
Outro pensador crucial no desenvolvimento do taoísmo seria Chuang-Tzu, autor de um livro que ficaria conhecido com o seu próprio nome. É escrito dois séculos depois da obra de Lao-Tsé (enquanto este escreveu o seu livro por volta do século XI a.C., Chuang-Tzu fê-lo já praticamente na viragem para os anos d.C.) e apresenta uma coleção extensa de anedotas, alegorias, parábolas e fábulas que refletem sobre os principais temas da filosofia taoísta. Abrangem a espontaneidade da ação humana e a liberdade, procurando mostrar, a partir dessas narrativas, a banalidade das distinções feitas entre o bem e o mal, o amplo e o pequeno, a vida e a morte e a humanidade e a natureza. Aponta o caminho, assim, ao “tao” que Lao-Tsé apresenta na sua filosofia, seguindo o rumo da natureza com as ditas liberdade e espontaneidade.
Porém, a palavra “tao” conhece mais significados do que aqueles que, inicialmente, se conhecem. Para além de caminho, de canal ou de princípio, foram várias as conotações que foi descobrindo, especialmente em torno de “a forma” ou de “o certo”. É uma caraterização daquilo que se vislumbra como a fase de iluminação espiritual. Porém, uma das tónicas que, tanto o “Tao Te Ching”, como o “I Ching”, colocam é a do “tao” ser inominável, transcendendo o capítulo das palavras e dos símbolos e sendo algo sem representação na dimensão linguística. O “tao” é esse fluxo do universo, como se alguma essência subjacente ao funcionamento do mundo o mantivesse balanceado e ordenado; alinhado pelo “qi”, ou seja, a energia fundamental de toda a ação e de toda a existência, a energia vital.
Até chegar ao “wu wei”, que já foi mencionado acima”, existem conceitos intermédios que importam ser explorados. O “wu” simboliza o vazio, a ausência, que se cruza com a realidade do yin (escuridão) e do yang (luz), a dualidade pela qual o taoísmo é tão conhecida. É aqui que entra a influência dos pensadores naturalistas, ajudando a caraterizar o mundo de uma forma em que os opostos acabam por estar interdependentes e por serem complementares. O universo é explicado a partir de um caos de energia material, que se organiza em ciclos de yin e de yang, que, por sua vez, dão origem à vida animada e inanimada, tanto aos seres vivos como aos objetos. É aqui que nasce a ideia de yin ser o ente recetivo e o yang o ativo, que explica a própria noção das estações do ano. É assim que se organiza a “qi”, disposta por estes seres e pela realidade acessível aos sentidos, que se torna sensível após o estado da quintessência (o tal vazio).
O yin e o yang permanecem em movimento até voltarem a encontrar essa quintessência, o vazio, e funcionam em constante parceria: apesar de opostos, e na presença, por exemplo, do yin, esse yin naturalmente encontra a sua transformação para o seu oposto, o yang, e vice-versa. Assim funcionam os rios, assim funcionam as florestas, assim funcionam os dias e as estações do ano. Esse ciclo é infinito e infindável, enquanto o yang se levantar e se transformar no yin enquanto pousa, revelando o que está obscuro e obscurecendo o que é revelado. No domínio do yin, a lentidão, a leveza, o frio, a passividade, a água, a terra, a lua, a noite, a feminilidade. No do yang, a rapidez, a dureza, o calor, a atividade, o fogo, o céu, o Sol, o dia, a masculinidade. Nenhum consegue separar-se do outro nem sobreviver sem o outro, havendo essa interdependência até a um fim que não se conhece.
Põe de lado os estudos e não conhecerás o sofrimento. Põe de lado a erudição e afasta a sabedoria e o povo será cem vezes mais beneficiado. Põe de lado a benevolência e afasta a rectidão e o povo te pagará com dever filial e amor fraternal. Põe de lado o artifício e afasta o lucro e não haverá mais bandoleiros e ladrões. Mantém-te na simplicidade, restringe o egoísmo e refreia os desejos.
Lao-Tsé no seu “Tao Te Ching”
É assim que se chega ao princípio do “wu wei”, a inação, o caminho através do qual é possível aceitar a unicidade do universo e abraçá-lo de forma natural e leve. É anunciado e desejado o regresso à mãe primordial, à Natureza. O “tao” flui e funciona como a água, de forma diferenciada, renovadora, leve e serena, embora poderosa e generosa. Tudo isto sem esquecer toda a dimensão que não se consegue definir ou exprimir por palavras, mas que, somente, pode ser experienciada e seguida, praticada. É uma prática que procura, como mencionado, a unicidade, a harmonização com o “um” que existe, harmonizar o ser com a Natureza, tendo em vista a ação sem esforço, a inação. Cada ação gera sempre uma contra-ação, que se trata da manifestação do “tao”, e a prática leva a que se possa aceitar e conviver de forma leve e natural com os seus desenvolvimentos. Só desta forma se pode alcançar o “de”, a virtude, a força interior e o caráter, a moralidade. São os argumentos que referem o comportamento adequado, com vista a eventuais consequências que surgem de forma espontânea e natural.
O “de” é, mesmo, essa plena vivência e convivência com o “tao”. Cada elemento tem a sua forma própria de se manifestar, fazendo parte da sua natureza interior. O “wu wei” torna-se mais individual e pessoal, variável por via da perceção e da aceitação da natureza interior, que pode, depois, ser ampliada a uma escala cada vez mais generalizada dentro do Universo, respeitante à natureza humana já alinhada com o “tao”. Este “de” não é a imposição moral que Confúcio incute no seu entendimento do comportamento em sociedade, organizado num conjunto de regras devidamente definidas e codificadas. O taoísmo amplia todos os conceitos a uma dimensão mais naturalista e metafísica, que consiga harmonizar a humanidade com o Universo. As regras sociais seriam uma natural reflexão das interações espontâneas entre os indivíduos, tendo em vista o evitar dos conflitos que as estruturas burocráticas e rígidas pudessem gerar.
O “tao” é um caminho, que, embora correspondente à espontaneidade e à fluidez do Universo, se desdobra em diferentes visões. Por isso, conhece-se a sua vertente religiosa e a sua vertente filosófica. A primeira dirige-se ao “tao” como uma divindade a louvar e a seguir, com um pano de fundo místico, quase como a devoção às divindades que é feita no hinduísmo. Filosoficamente, que corresponde mais aos escritos originais, o caminho é mais humanista e naturalista, sem a vocação religiosa, embora dispondo de um misticismo que não se atreve a ascender à transcendência. De igual modo, não assumem o “tao” como a verdade confucionista ou como o absoluto, como também não é o encontro com a fonte universal do “darma” ou com a meditação adequada do “nirvana” budistas. O taoísmo, embora com literatura produzida, e por muito comparável que possa ser feito ao estoicismo, não detém a sua tradição intelectual. É algo que se condensa em muito menos e que, por mais ordens cosmológicas ou normativas sociais o convidem, está, precisamente, entre eles, no que não se escreve nem se define.
A reflexão
O taoísmo sugere-nos um regresso a uma pureza à qual as sociedades ocidentais não estão habituadas. Por norma, entre ateísmos e monoteísmos, as formas de culto são sempre direcionadas a uma ordem maior, povoada por Deus e pelas suas expressões, tanto auxiliadores como assessores. É uma ordem que, entre diferentes expressões, conhece uma maior complexidade, enredada em expressões difíceis de desconstruir e onde o próprio discurso não é o mais acessível. Embora pese o seu valor moral e a qualidade de muita da sua força religiosa, é, de igual modo, verdade que se inspira num conjunto de comportamentos bem mais rígido e mais doutrinado, composto por preces e por reverências que escapam a muitas das formas de ver o mundo no Oriente.
Aquilo que nos é estranho cai sempre com alguma desconfiança ou até com algum desprezo de quem vê o diferente. É assim que a moral funciona, em certa medida. Aquilo que tomamos como certo, quando em choque com o que não é bem assim, causa estranheza e nem sempre é bem recebido. Os horizontes nem sempre estão assim tão abertos, em especial quando a educação se fecha em si mesma, no restrito domínio do Ocidente, enquanto, a Oriente, é tudo tomado como se de um outro mundo se tratasse. A verdade é que assim não é e que, ao mesmo tempo que o Ocidente poderia dar mais ao Oriente, o Oriente também poderia acrescentar e muito ao Ocidente.
Aquilo que o taoísmo sugere é mesmo um desprendimento das rotinas desenfreadas do trabalho e da submissão da mente e do corpo às tarefas do dia-a-dia. O taoísmo convida a esse encontro com a Natureza das coisas, com o livre fluxo do universo. Para os mais céticos, não é preciso pôr os termos em visões mais astronómicas e do Cosmos. Ficar pelo essencial não exige que se vá muito longe. Basta ir de encontro à ordem natural das coisas. No entanto, é verdade que as responsabilidades e os compromissos não ajudam. Restringem em muito o tempo e o espaço, nem sempre dando chance para que se possa ir mais longe numa descoberta interior recheada de sentido e de verdade. Uma verdade que não tem de ser verbalizada para fora mas que deve ser assente e reconfortante para dentro. O encontro connosco mesmos não é algo que esteja corporizado nas formas de viver a Ocidente. Algo maior se alevanta enquanto os ritmos alucinantes de carros, de pessoas e de bens fluem sem cessar.
Não se pretende fazer qualquer tipo de evangelização, mas sim tentar ampliar a forma de ver como o mundo funciona. Porque o mundo atua de formas que são, durante tantas vezes, questionadas. São as reflexões que levam a abismos sem fim, a atalhos que se esquece do outro ou de si mesmo. É importante que se possa comungar de diferentes olhares, de diferentes planos, todos eles com um núcleo com um potencial que, por vezes, se encontra por ser explorado. É esta a dádiva da diversidade, recheada de formas como podemos confecionar melhor a nossa filosofia de vida. Beber de várias fontes, com vários sabores, só pode enriquecer, fazer de nós mais conhecedores de quem somos, do que realmente gostamos e de como poderemos ser daqui em diante. A riqueza do Oriente torna-se sem quantificação possível, despojada nas suas dimensões filosóficas e religiosas, de um caminho tão doutrinado e minucioso, entregando mais ao Universo a missão do funcionamento da vida e das suas variáveis. É um rumo diferente, é certo, mas não está mais ou menos acertado do que o do Ocidente. É distinto e, por si só, uma oportunidade.
O taoísmo é um convite a que possamos olhar para a natureza das coisas e tomá-la como nossa. As coisas têm o seu fluxo natural, assim como cada ser humano. Encontrar a nossa harmonia com o decurso natural da vida é algo que vem escapando a muita gente, enquanto olha para o relógio e para a agenda. As portas estão abertas e o Sol a raiar. Não é necessário procurar uma viagem longa, de horas extenuantes, e conhecer o outro mundo. Basta aceitar, com naturalidade e espontaneidade, aquilo que se encontra à nossa volta. As oportunidades para dar maior valor às pequenas coisas e, delas, fazê-las grandes. Fazê-las, acima de tudo, parte desta ordem da vida que, embora não ordene nada, não dá impressão de haver desorganização. Tudo decorre e percorre o caminho, o percurso. É o percurso que se quer encontrar connosco e que quer fazer de nós melhores connosco mesmos, para que possamos ser melhores com os outros. Haverá convite mais generoso e bondoso que este?