As orientações do geógrafo Orlando Ribeiro
Orlando Ribeiro foi um distinto marco naquilo que é o trabalho e o desenvolvimento da geografia nacional, interrelacionando-a com toda a história do país. Mais do que a fazer progredir no seu plano meramente conceptual, proporcionou-lhe um amplo raio de envolvência e de influência, agregando ramos que lhe permitiu avistar a ciência. Toda a base histórica e antropológica não deixou de ser providencial para que isto se pudesse consumar, mas salta à vista o impulso nacional e internacional que Ribeiro conseguiu prover, tornando a geografia uma área de interesse, de recursos e de relevo para o estudo multidireccionado do país.
Orlando da Cunha Ribeiro nasceu em Lisboa, a 16 de fevereiro de 1911. A primeira paixão pelo estudo foi-lhe incutida pelo avô materno, Augusto Carvela, ex-oficial do Exército, que tomaria conta dele após o falecimento da mãe, aos quatro anos de idade de Orlando. Passando algum tempo na zona interior da Beira Alta, tanto em Viseu, como no subúrbio Runa, é lá que ganha familiaridade com o campo, que lhe transmite o gosto pela geografia, no estudo da natureza e da própria vida rural, cultivando apreço pelas origens. Para além disso, sendo o avô um ávido leitor, conquista a paixão livresca, para além das paixões e episódios ofertados por este seu familiar. De regresso a Lisboa, a casa do pai, sairia do Liceu Passos Manuel com 20 valores, deparando-se, apesar de tudo, com um progresso que lhe era, à data, incógnito. Vai-se adaptando a partir das bibliotecas populares, aliviando as saudades do meio rural nos jardins públicos da cidade.
O trabalho que efetivou iniciou-se, sobretudo, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde se licenciou em Geografia e História (1932), e onde se viria a doutorar (1935), com a tese “A Arrábida: Esboço Geográfico”. Isto no rescaldo de uma série de viagens como bolseiro do Instituto de Alta Cultura, redescobrindo Portugal como o iria fazer nas suas férias futuras, de Norte a Sul, com a predileta câmara fotográfica. A curiosidade que toda a ampla cartografia que consultou se lhe instalou levou-o a seguir neste trilho, revigorado pelas viagens literárias do autor francês Jules Verne. Para além disso, revelaram-se-lhe cruciais a leitura de Vidal de La Blanche, nome importante na geografia humana moderna, em detrimento dos deleites proporcionados pela História narrada por Alexandre Herculano, criando peculiar interesse pelo trabalho de campo. Antes de se debruçar para fora, incluindo num cruzeiro estudantil, dirigido por Marcello Caetano, pelas colónias africanas portuguesas, leciona no Colégio Infante de Sagres, em Lisboa, até 1936.
No pré-período bélico, iria viver em Paris, estudando na Sorbonne ao lado de conceituados historiadores, como Marc Bloch, Albert Demangeon ou Emmanuel de Mortonne (com quem organizou excursões práticas), para além de emergentes geógrafos de nacionalidade gaulesa, antes de estagiar num Seminário de Geografia e Geologia em Liège, na Bélgica. Para além de estudar, lecionou na sua École Normale Supérieure e no Collège de France. A bagagem que importaria de fora seria crucial para que se afirmasse como um renovador da geografia portuguesa, com equivalente projeção para fora de portas. Porém, reconheceria as tendências literárias que dominavam no ensino nesta instituição académica, embora não as ocultasse da sua personalidade operativa. O mote para que esta ciência social adquirisse um novo assomo de proeminência estava dado, já para lá dos obsoletos jesuítas, exploradores e cartógrafos dos séculos XVIII e XIX, que assessoravam a História. Apesar do ímpeto conduzido por alguns nomes, como o engenheiro florestal Barros Gomes, e o oficial Gerardo Pery, foram poucos os esforços para uma afirmação contundente e independente da Geografia.
No ano de 1940, de regresso a Portugal, tornou-se professor extraordinário na Universidade de Coimbra – onde se havia doutorado Amorim Girão, em 1922, em Ciências Geográficas – na sua Faculdade de Letras. Porém, pouco tempo depois, mover-se-ia, novamente, para Lisboa, onde se tornou professor catedrático, e fundou, em 1943, o pioneiro Centro de Estudos Geográficos, na Universidade de Lisboa, desdobrando-se da arcaica Secção de Ciências Históricas e Geográficas, onde havia privado com o geólogo Silva Telles, e o historiador Manuel Ramos. Esta foi uma primeira experiência, em Portugal, de autonomia da Geografia na academia, de pendor regional e nacional, que era corroborado por expedições e congressos organizados em ambiente académico, mas contando com uma plenitude de agentes incluídos; de onde seriam originários os nomes de Ilídio do Amaral e de Raquel Soeiro de Brito. Toda a base naturalista com a qual se fez assegurar, para além do espírito humanista cultivado em França, foram premissas consideráveis neste empreendimento científico, contando com um lote de académicos na observação e renovação dos cânones do estudo e do ensino da Geografia. Como mote conceptual, importava unir, ao invés de fragmentar, a dimensão física, a cultural e a social, estudando com minúcia e envolvência a entidade geográfica. Nesta altura, iniciou a sua profícua colaboração com a Revista Municipal, relativa ao concelho de Lisboa, entre os anos de 1939 e de 1973; colaborou na organização do XVI Congresso Internacional de Geografia, em 1949; e redigiu algumas atas sobre excursões científicas à ilha da Madeira e a demais povoados de raízes lusas.
Fundamentando a visão multidisciplinar que tinha, não só de Geografia foi feito o seu percurso académico, pois debruçou-se na própria História, na Antropologia e na Etnografia, muito por via dos nomes do historiador David de Melo Lopes, e do arqueólogo Leite de Vasconcelos, seus mentores, e do médico Barahona Fernandes, para além do geólogo Carlos Teixeira, do historiador de arte Mário Chicó, e do médico Juvenal Esteves, estes seus companheiros na Sorbonne. Aliás, chegaria a redigir sobre os seus motes humanos, para além de, neste lote, incluir os autores Luís de Camões, Rosalía de Castro e Goethe, e o naturalista Alexander von Humboldt, interrelacionando as suas experiências e reflexões descritivas com a geografia passada e contemporânea. Destacando Leite de Vasconcelos, a quem tratava por “mestre”, viria a mostrar os vários pontos de convergência com este daí em diante, sustentando-se, amiúde, na obra “Etnografia Portuguesa” (1933), de estudo sobre a realidade nacional, no binómio povo-território, no decorrer dos séculos. É, em especial, com este nome que reforça essa vocação de diferentes áreas do saber no seu estudo.
Trabalhos de proa do seu repertório científico começaram a multiplicaram-se, destacando-se “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico” (1945); que reenquadra Portugal no mapa, muito além da sua extensão terrestre, sem deixar de caraterizar o profundo cantão agrícola na ponta da Península Ibérica, organizado em regiões onde se denotam os efeitos da sazonalidade e das migrações intranacionais. É importante denotar o momento cronológico no qual se redigiu este ensaio, em pleno Estado Novo, no qual a ruralidade era profundamente incentivada. A obra denotava, desde logo, uma polidez de discurso peculiar e diferenciado no meio académico, capaz de, não só produzir valor científico, mas também de elucidar e de cativar literariamente. Tornou-se, subsequentemente, numa das obras de referência cultural deste período cronológico, num estudo escrutinado sobre Portugal e o seu posicionamento referencial, numa diversidade oposta à unicidade defendida pelo regime político vigente.
Para lá dos eventuais limites geográficos de Portugal continental, surge um importante ensaio, escrito nos anos 50, de seu título “A Ilha do Fogo e as suas erupções”, num trabalho à semelhança do que viria a fazer no Vulcão dos Capelinhos, na ilha açoriana do Faial, entre 1957 e 1958. Relativo a um dos componentes do arquipélago de Cabo Verde, este trabalho assenta em registo fotográfico criado nesse lugar, reportando, para lá da geologia e da morfologia física da Ilha, para lá da erupção do seu vulcão, um vasto estudo sobre as comunidades residentes, debruçando-se sobre os modos de ser e de viver das mesmas. Aqui, incluiu as próprias provações que sentiam, perante os cenários de fome e de seca, que escapou à censura da Junta de Investigações do Ultramar pelo estatuto que, na altura, colhia internacionalmente, sendo vice-presidente da União Geográfica Internacional. Toda a envolvência da obra torna-se determinante como uma referência naquilo que é o entendimento do país cabo-verdiano, a partir das impressões de Orlando Ribeiro; que seria reconhecida pela mesma Junta, empossando-o da incumbência de redigir um relatório confidencial sobre os problemas que afetavam a esfera de influência portuguesa na Índia (“Goa em 1956”).
Já nos anos 60, o seu Centro de Estudos lançou a principal publicação nacional sobre Geografia, a revista “Finisterra”, que abrange uma série de temas, desde a geografia física e humana, até ao ordenamento do território, passando por preocupações ambientais e até pela proposta de inovadores sistemas de informação geográfica. Foi nesta publicação, para além das memórias que foi redigindo, que apontou algumas preocupações em relação às carências de integração e, por conseguinte, de síntese na evolução da área, ainda afastada das demais. Defendia, como sempre o fez, uma Geografia humana, mas capaz de se sustentar na análise, no esboço de cenários e de hipóteses, e na experimentação, integrando os diversos parâmetros de uma dada região, unidade ainda desvalorizada na conjuntura de então. Nestas práticas, integra-se a fotografia, uma das grandes paixões de Ribeiro, e que levou à reunião, no Centro de Estudos Geográficos, mais de dez mil fotografias tiradas pelo mundo, incluindo no Brasil, no México e no Egito, para além de Portugal e das antigas colónias.
Esta foi uma linha de pensamento que permaneceu folgada nos seus dias de reflexão, para além da investigação que foi sempre efetuando. A separação temática era, no seu entender, uma desvantagem, perante a oportunidade de separar o estudo por regiões. A chegada de tecnologias modernas, aplicadas a abordagens mais criteriosas da Geografia nacional, consagram um estudo presente para lá da cartografia propriamente dita, mas que, não só por este desenvolvimento, se propicia. Esta mudança vem no seguimento da proposta de Ribeiro para todo este caminho, unindo Etnografia, Arqueologia e História nesse rumo, estudando o povoamento e as identidades regionais, no acalentar de um espírito comprazedor com a descoberta em plena investigação, sendo ela mais ou menos formal. Este caminho seria explorado em obras, como “Atitude e Explicação em Geografia Humana” (1960), “Geografia e Civilização” (1961) e “Aspectos e Problemas da Expansão Portuguesa” (1962), “Introduções Geográficas à História de Portugal” (1977), e “Geografia de Portugal” (1987-91). Sobre o Mediterrâneo, escreveria “Mediterrâneo. Ambiente e Tradição” (1968), e “A Evolução Agrária no Portugal Mediterrâneo” (1970), e analisando o futuro nacional e internacional em “Variações sobre Temas da Ciência” (1970), “A Colonização de Angola e o seu Fracasso” (1981).
A interdisciplinaridade, que asseverava como pertencente à “sua” geografia humana, não era preconizada, porém, pelos emergentes geógrafos, ainda muito restritos em espaços teóricos, perante relações isoladas. Os conjuntos e os pormenores desses conjuntos são a base que sempre afiançou, resultado do estudo das demais ciências sociais, para esta onde ofereceu tanto, para além de uma tolerância recetiva à novidade. Com isto, nunca esqueceu o desejo que foi alimentando de exportar e de reforçar o espírito científico da geografia, assentes nas atividades do ensino, da instrução e da própria investigação, alicerçando-se no seu Centro de Estudos Geográficos. O ambiente de confraternização intelectual e humano foi sempre marcado como referencial para a visão que tinha deste ramo do saber, que reforçou nos “Opúsculos Geográficos” (1989-95), e que havia apresentado em “Iniciação em Geografia Humana” (1986) e “Introdução ao Estudo da Geografia Regional” (1987).
O caminho das reflexões levá-lo-ia a efetuar algumas recensões científicas, a obras de vultos, como o historiador Torquato Soares, o cabo-verdiano Baltazar Lopes, e o sãotomense Francisco José Tenreiro, sobre o traçado histórico-geográfico dos países lusófonos. Ribeiro seria galardoado com o grau de Grande-Oficial da Ordem da Instrução Pública, em 1981, seguindo-se, seis anos depois, o mesmo grau, mas da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada. O geógrafo partiria, algum tempo depois, a 17 de novembro de 1997, com 86 anos, na cidade que o viu nascer, e à qual emprestou o seu nome para uma rua e para uma biblioteca, na zona de Telheiras. Grande parte da bibliografia postumamente publicada seria-o por via da sua esposa, Suzanne Daveau, também ela geógrafa, que, fruto de uma consciência crítica singular e de um método assinalável, honrou o discurso sincronizado entre aquilo que é a ciência e o demais, que inclui os prismas cultural, físico e humano. Assim, acompanharia edições reeditadas, para além de outras inéditas, com várias anotações e com introduções devidamente elucidativas do percurso científico de Orlando Ribeiro, atendendo à temporalidade das mesmas. Daveau foi prima-neta do botânico Jules Daveau, que seria companheiro de trabalho de um dos impulsionadores do seu marido, sendo este Leite de Vasconcelos.
Orlando Ribeiro permanece como um dos mais relevantes nomes da caraterização do estudo académico do século XX, destacando-se no contexto das ciências sociais. A geografia, área esbatida nos tempos anteriores a esse, conheceu um reforço importante, consubstanciado em figuras de áreas diferentes, mas vizinhas e passíveis de serem cruzadas com o ideário da geografia do português. A articulação entre tradição e inovação é uma dicotomia exemplarmente caraterizável do que foi o seu trabalho, e do que é o seu legado para as gerações presentes e futuras, compreendendo e atualizando meios e recursos para atitudes igualmente humanas e físicas. Apaixonado por música, destacava o adágio da Sétima Sinfonia do compositor austríaco Anton Bruckner, sentindo-se contagiado, à imagem do seu perfil científico, pela divina precisão. Uma precisão constante e exultante na legitimação da geógrafa expressão.