As restituições do nosso património
Somos impelidos a recuperar muito daquilo que vivemos, e de o tornarmos perene, como espelho da nossa civilização. Foi assim com gerações passadas, que trataram de patrimonializar outras tantas, e que nos chegam aos dias de hoje como motivos de recordação, de estudo, de investigação, de perceção daquilo que, outrora, os nossos congéneres já foram. É um percurso que continua a ser percorrido com especial interesse, em que nos vemos em perspetivas anacrónicas, onde desejávamos viver nesses tempos remotos e primitivos, em que a noção de teconologia se tornava outra distinta da que tomamos por sabida nos dias de hoje.
Os museus são os espaços em que mais se exibe este legado, que perpetua uma história singular, mas pluralizada nos meios e nos protagonistas das suas atividades. São esforços primordiais para que a reconstituição da nossa verdadeira história seja fiel e consentânea com o que nos contam desde miúdos, nas salas de estar ou nas de aulas, ouvindo as referências familiares e letivas a apresentarem-nos histórias. As próprias fantasias que preenchem os factos de magia e de diferença fazem parte das narrativas que ilustram o nosso historial, que também sempre se inspirou num sonho. Foi a crença inabalável naquilo que é o conhecer o reconhecer do desconhecido.
O património identifica-se para lá daquilo que podemos conferir nas nossas mãos. É algo mais, o algo mais. Aquilo que armazenamos connosco, que assimilamos como parte da história que vivenciamos e presenciamos, sobre isto ou aquilo. Por mais que as versões sejam forjadas, e a verdade distorcida, também isso faz parte de uma realidade patrimonial que supera a sua mera condição de material. O indicativo que subsiste nos sentidos, e que não ganha autonomia para lá dessa intangibilidade, não pode ser escamoteado, por mais que as escavações sejam feitas nos terrenos e nos lugares. A arqueologia também é feita pelas mentes, pelas experiências, pelas emoções. Também isso é parte fulcral da nossa história, que, apesar de não ser transportável para um museu, pode ser colocado a entender e a discutir no feliz palco da realidade.
A nossa cultura é material, e reconhecer a existência de algo imaterial como uma substância equivalente em virtude e em relevância ao tangível é difícil. Ainda para mais, para explicar um dado plano da história, em que se veem essenciais as fundamentações palpáveis, como das experimentações e investigações científicas. Os resultados precisam de vir até à mão, e de serem escrutinados e apalpados, confirmando a sua veracidade. A verosimilhança aproxima-se, mas nunca o será de forma consolidada. Porém, não pode, nem deve ser esquecido de uma discussão daquilo que é o ser e o viver em história. Os testemunhos têm vida própria, funcionando como extensões diretas da vida de alguém que esteve nesse plano representativo e elucidativo de um hemisfério de património.
De um vestígio se conta uma narrativa imensa, envolvida numa epopeia de circunstâncias e de heróis, mas também de vilões e de mitos que, até ver, nunca chegaram a ser confirmados. Permanecem na boca dos deuses tamanhas façanhas, mas que se coadunam com aquilo que nos chega da História, e que nos fazem recordá-la com um especial sabor, com um carinho peculiar. Por nos dizer mais, ou até por nos motivar, a dimensão mitológica daquilo que conhecemos dá um elã renovado, esforçado em novas fragrâncias do ser. A novidade do velho, claro está. Um velho que não é quantificado pelo número de anos, nem que deve de ser rotulado pela sua longevidade, mas estimado pela sua memória e sabedoria, pelo património que, por si mesmo, acaba por ser. Os museus ambulantes caminham com as mais ricas aventuras, envolvendo glórias e desventuras, à imagem dos calorosos descobridores, dos quais se descobrem os destroços das magníficas viagens.
Aquilo que uma conversa pode trazer é um bailado de memórias, que se articulam para lá do inimaginável. São retratos que condensam o vivido, que poderiam preencher uma galeria expositiva alusiva ao mais rocambolesco tema. A questão está na diversidade que os próprios patrimónios, repletos de vida, conseguem transportar nas suas energias, que se transmutam no conforto e no confronto, na sua valorização e discussão, arrecadando uma nova vida. Não é a de nos prender no passado, mas é a de catapultar, a partir deste, para um novo sensorial de presente. São percursos que a verdade não cansa de reclamar, memórias alinhadas em pensamentos muito próprios, narrativas entre matéria e vida, entre organismo e razão. A energia humana, a sua curadoria, também ela é um património que não se calcula, mas que vale a pena perspetivar e sondar, a complementar as expeditas práticas de perscrutar e de expor.
O nosso património, o património constitutivo de toda a história humana, permanece em plena descoberta, exponenciada naqueles que, na primeira pessoa, o são e o fizeram ser. Não há prazo de validade para que nos descubramos nesta trajetória, porque somos um extenso passado, um eterno presente e um inestimável futuro. Não há delimitações que encontrem o fim para o processo de nos maravilharmos com o nosso mundo, nas suas diferentes formas e constituições. Reinstitui-se, assim, um caudal de paixões pelo que vamos sendo, diariamente, para além daqueles que, mais ou menos ligados a nós, o foram e o serão, com asas para infindáveis voos. Porque é da nossa história que reserva a memória que acumula a vitória e a glória, a incessante e pulsante vibração do ser, do estar, do chegar, do ficar e do partir. O património é tudo isto e muito mais, mais o que falta ser e abranger.