As vidas dos artistas famosos ao longo de ‘A Autobiografia de Alice B. Toklas’, de Gertrude Stein
Paris modernizou, inegavelmente, a arte. Foi na cidade francesa que se formaram muitos dos principais movimentos artísticos modernos. Começando no século XIX, com o Impressionismo (ao qual se seguiu o Simbolismo, o Pós-impressionismo e a Arte Nova), foi o século XX que veio trazer uma mudança ainda maior na arte, com a chegado do Fauvismo, ao qual se seguiu, por exemplo, o Cubismo e o Surrealismo, após o famoso manifesto de Breton. Foi nesta Paris que a escritora americana Gertrude Stein se estabeleceu, ao mudar-se para terras francesas em 1903, quando contava vinte e nove anos, marcando a arte, essencialmente, na passagem do Pós-Impressionismo para os tais movimentos artísticos que marcaram a arte da primeira metade do século XX. Como colecionadora de arte, foi uma das grandes responsáveis, em conjunto com o seu irmão Leo Stein, pela aclamação da arte de vanguarda protagonizada por artistas como Pablo Picasso, Paul Cézanne e Henri Matisse. Os quadros por si adquiridos eram dispostos na sua casa, em Paris, onde eram exibidos a convidados, e onde Stein passou a organizar um salão juntando, além dos pintores já atrás mencionados, também poetas e escritores, essencialmente expatriados americanos da qual foi mentora, como Ernest Hemingway, James Joyce, Ezra Pound e Scott F. Fitzgerald, e não só.
Naquela que é, provavelmente, a sua obra de maior renome, A Autobiografia de Alice B. Toklas, de 1933, editada agora em português pela Ponto de Fuga (que editou também, recentemente, O mundo é redondo, livro infantil da mesma autora), Stein apresenta-nos uma desconstrução do conceito de autobiografia, escrevendo um livro através do ponto de vista da sua companheira de vida, Alice B. Toklas, e contando a vida de ambas, mas maioritariamente a sua, de Gertrude Stein. A Autobiografia de Alice B. Toklas acaba, portanto, por ser, mais do que um retrato da vida de Toklas, um retrato da vida de Gertrude Stein escrito pela mesma. Imensos são os momentos em que a narradora, ou seja, Alice B. Toklas, se refere a coisas ditas por, ou opiniões de, Gertrude Stein, explorando esse esbatimento de fronteiras entre a ficção e a realidade de ser uma mesma pessoa a escrever sobre si própria na terceira pessoa.
Sendo uma das pioneiras do modernismo, e uma clara desconstrutora da linguagem, o estilo da prosa de Gertrude Stein é de difícil tradução e transposição para outras línguas, e, nesta edição da Ponto de Fuga, o tradutor Nuno Quintas fá-lo habilmente, preservando quer o ritmo quer as peculiaridades da mesma, que estão evidenciadas em pleno ao longo da obra. A quase ausência de vírgulas (“as vírgulas não eram necessárias, o sentido deve ser intrínseco e não ser explicado por vírgulas e além do mais as vírgulas eram só um sinal de que se deve pausar e ganhar fôlego mas devemos ser nós a saber quando devemos parar e ganhar fôlego”) e a repetição são duas das características mais evidentes, tendo até levado editores a achar que Gertrude Stein tinha tido uma “educação imperfeita”, como a própria divulga neste livro, quando fala de uma das suas primeiras edições de livros. Ela respondera-lhes que tudo estaria dessa forma de propósito.
Será, portanto, ao longo deste caminho percorrido pela prosa de Stein que percorremos a vida destas duas mulheres. Sempre com ponto de partida e ponto de chegada no 29 rue de Fleurus, onde habitavam as duas, passamos por serões em casa de Picasso, de Matisse, por viagens a Espanha, a Inglaterra, pela Primeira Guerra Mundial, que é inevitavelmente um acontecimento marcante para toda esta geração. As vidas de ambas as mulheres não são passíveis de serem desligadas das pessoas que as envolveram durante toda a sua vida em Paris, e é aí que reside grande parte do interesse da obra, na cusquice que nos leva pelas histórias privadas das vidas de tantas celebridades quanto Picasso, Matisse, Hemingway, e tantos outros. Por estas mesmas razões, muitos dos visados, aquando da primeira publicação do livro, mostraram o seu desagrado. O irmão de Gertrude, Leo Stein, classifica o livro de “chorrilho de mentiras”, Henri Matisse ofende-se com as descrições da sua mulher. O livro acabou por ser, no entanto, um sucesso comercial, e um dos grandes responsáveis pela fama da autora, muito por causa dessas histórias, polémicas, sem dúvida, que alentam o leitor ao longo das ainda cerca de trezentas páginas do livro. De louvar também o cuidado por parte do tradutor de contextualizar, através de notas de rodapé, quem são a maior parte destes nomes citados ao longo da obra, já que, se uns deles são amplamente famosos, outros há que não resistiram à passagem do tempo, tendo sido esquecidos nos livros de história.
Não sendo um substituto das diversas biografias oficias ou oficiosas que existirão acerca de todos estes nomes, A Autobiografia de Alice B. Toklas, é, provavelmente, o melhor registo do ambiente e das dinâmicas interpessoais em que se vivia nesta Paris da primeira metade do século XX. Dá-nos, encerrado num estilo único como o de Stein, o que se passava nesta cidade que cativou tantos artistas, sem a qual não teríamos a arte que temos hoje. Melhor que isto, só mesmo indo ao museu ver as obras que saíram deste cosmos particular.