Entrevista. Bordalo II: “O lixo de uns é o tesouro de outros”
Bordalo II é um dos nomes mais sonantes da arte urbana, em Portugal. Figuras animalescas, tridimensionais e animadas, de cores vibrantes, são a sua assinatura artística inigualável. O artista, de seu nome Artur Bordalo, visa alertar a sociedade para os perigos do consumo e materialismo excessivos, através do uso de lixo na construção das suas obras. José Saramago dizia que no fundo, não inventava nada. Apenas se limitava a levantar algumas pedras e colocar à vista o que escondiam por baixo. Não era culpa dele que, por vezes, saíssem alguns monstros. As tuas obras põem à vista alguns monstros, com os quais a sociedade coexiste sem se parecer importar – consumismo, desperdício e materialismo excessivos. Que legado gostarias de deixar, no Mundo, como ser humano e artista? O que pensas sobre esta cegueira mental que não nos permite ver o que temos à frente dos olhos?
A cegueira pode ser idêntica a apreciar uma obra de arte sem ver o que está por detrás dela, sejam ideias, mensagens subliminares ou os materiais que a conceberam, como lixo camuflado com cores vivas que o façam passar despercebido. É certo que o meu objectivo é mudar o mundo, ainda que seja difícil, impossível ou utópico, no entanto, tranquiliza a minha inquietação enquanto artista ou humano tentar e fazer a minha parte.
Real Bordalo, artista do século XX e teu querido avô, foi uma das maiores fontes de influência artística e criativa, contudo foi nas ruas que descobriste a tua identidade e o caminho a seguir. As ruas escondem segredos só acessíveis aos que
ousam conhecer as suas horas mais sombrias. Quais os maiores ensinamentos da rua? Qual a mensagem a transmitir a tantos humanos que as pisam, sem nunca parar para as ver e lhes conhecer as cores, os cheiros e os sentidos?
É fácil enumerar uma lista de ensinamentos, talvez seja o conjunto de experiências e vivências que nos tragam algum tipo de ensinamento. É diferente utilizar o espaço público com intuito construtivo ou destrutivo seja com graffiti ilegal ou com um passeio de carácter cultural, de o usar como mera via de transporte casa – trabalho – casa no tal modo de cegueira mental em que não se usufrui de tudo o que se pode retirar de bom, de mau ou de ferramentas para mudar o que está mal.
Recentemente, mais uma colaboração com o Wool Festival ( foi pelo Fablab do Fundão, não pelo wool) , uma iniciativa que visa trazer mais cultura, novidade e cor ao Interior do país. Como sentes a vivência do encontro geracional e da ousadia de trazer algo tão novo para a maioria da população envelhecida do Interior? Quais são as reacções dos idosos à medida que acompanham a evolução do teu trabalho? O que mais te marcou neste projecto?
É sempre mais interessante contrastar e trabalhar “fora da área de conforto” onde posso despertar sentimento mais fortes e onde a população não esteja acomodada ao que estou a fazer. Para além de transmitir ideias e de procurar que sejam absorvidas, também eu sou uma esponja que tento tirar proveito das experiências e vivências que posso retirar de sítios diferentes de onde vivo, são os tais ensinamentos da questão anterior.
O teu trabalho permite-te conhecer outros países, outros artistas e novas formas de estar e ver a vida. Como definirias o estado civil da relação da sociedade portuguesa com a cultura? O que permite a relação de uma sociedade com a cultura concluir sobre o seu povo e a sua mentalidade?
O estado civil da relação da sociedade com a cultura, bem para já não se deve generalizar, há casos de casamentos de longa data e outros de solteiros frígidos. Penso que mais do que uma relação com o povo e a mentalidade podemos relacionar com a política, não só do país, mas como do grupo de países que o envolvem. É complicado querer ensinar a trabalhar a quem não tem que comer, assim como é difícil ensinar a trabalhar melhor a quem é explorado, é também difícil cultivar uma sociedade que vive numa situação de instabilidade, e ainda que nada disto seja desculpa para que as pessoas se tranquem em casa a consumir todo o lixo que dá na TV, infelizmente está tudo relacionado. Não parte duma população que vive em condições deficientes interessar se por cultura, e assim sendo deveria haver um esforço, tem que ser introduzido e motivado pelas “ordens” que vêm de cima, mas como a ignorância é uma arma preciosa para quem manda, não há interesse em mudar isso.