Branko ao vivo: dançámos sentados e viajámos confinados
Estamos a duas horas do início do recolher obrigatório, mas o público continua a entrar e a ocupar os seus lugares sentados na arena do Campo Pequeno. As pessoas vêm para dançar sem poderem levantar-se, ao som dos ritmos quentes e balançados do maestro da Enchufada. “Pensem que é a última vez que vão ouvir um concerto meu sentados”, palavras de Branko ditas a meio do seu set no sentido de consolar uma plateia que, ao longo da noite, tanta tentação sentiu de esquecer o contexto e fruir a música com o corpo todo.
Ao mesmo tempo que valorizávamos a festa tal como a vivíamos fora da pandemia, o concerto de Branko no Campo Pequeno obrigou-nos a redobrar a atenção auditiva, assim como a desfrutar das construções do artista português a alto e bom som (tão bom quanto aquela arena consegue permitir…), sem o filtro que os nossos pés aplicam a tudo o que dançam. Músicas pintadas a timbres claros e definidos, texturas múltiplas adornadas pelos beats autorais, um desfile de vozes gravadas ao longo dos anos, adicionando mensagens, línguas e expressões sobre as entusiasmantes camadas de electrónica percussiva.
O set começou com o remix de Madredeus com que Branko abriu a performance gravada na Serra da Estrela, estreada há meses na Internet. A voz de Teresa Salgueiro dá o pontapé de saída para uma viagem que dá a volta ao mundo, detendo-se por mais tempo nas geografias crioulas que nos são particularmente próximas em termos afectivos. Esse é, aliás, o trunfo da carreira e do espectáculo de Branko: a viagem, a aproximação à expressão cultural própria, embrulhada na visão e na proposta artística do produtor.
Assim, dos fados modernos dos Madredeus e de Rita Vian (que veio interpretar ao vivo “Sereia Remix”, como uma das duas convidadas do concerto), passamos a África e à América do Sul. O ambiente aquece. Branko parte o espectáculo em cinco ou seis segmentos, em cada um fazendo cruzar canções e deixando deslizar os temas uns nos outros. Gostamos particularmente da intensidade do segundo, em cujo centro aparece talvez o mais clássico tema que Branko lançou nos últimos anos: “Tudo Certo”, com Dino D’Santiago a surgir na tela iluminada. Mas passam também pelo ecrã Mayra Andrade, Sara Tavares, Mallu Magalhães… num percurso pela discografia mais recente e mais recuada de Branko.
Branko apresenta uma performance viva, frequentemente adicionando percussões em tempo real, quer com baquetas quer com os dedos, sempre com o entusiasmo que a expressão corporal não sabe esconder. Está a viver a música que está a propor e o público também se alimenta disso.
Destaque para a apresentação de “Tempo Torto”, tema lançado horas antes do concerto e cantado por EU.CLIDES, que viajou de Paris de propósito para ali o interpretar ao vivo. O encadeamento melódico do refrão interpela, adocicado pelo timbre do cantor. Mas EU.CLIDES brilhou também na guitarra, tocada com alma e intenção, a interagir com todo o calor harmónico e texturado da palete electrónica de Branko. O single gravado não inclui as coisas mágicas que a guitarra ali foi capaz de propôr — e isso é também parte da magia exclusiva que uma performance ao vivo nos oferece.
O ambiente era de excepção. Branko manifestou inúmeras vezes ao longo da noite a sua gratidão pela presença, o carinho, a atenção e a coragem do público. Em pleno recolher obrigatório, pudemos viajar pelas geografias físicas e emocionais da música do produtor. No Campo Pequeno, coube esse mundo que mal pode esperar para se poder levantar e dançar sem restrições.