“Charmed”, de DJ Sabrina The Teenage DJ: uma festa utópica e o nosso nome na guest list

por Tiago Mendes,    25 Novembro, 2021
“Charmed”, de DJ Sabrina The Teenage DJ: uma festa utópica e o nosso nome na guest list
A capa da cassete de Charmed. Fotografia: Tiago Mendes / CCA
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É importante para mim deixar explícito desde já que Charmed é o meu álbum preferido entre os lançados nos últimos quinze anos. Esta não é, pois, uma crítica com pretensões de isenção, desligada da minha vida ou da história que os meus ouvidos, corpo e sensibilidade foram construindo na relação com este disco. Esta é a apresentação e a partilha de um álbum que creio ser importante para o mundo, dotado de uma rara qualidade e ambição, embutido de êxtase e esperança sem querer fugir às emoções mais difíceis da vida. A cor e a criatividade vibrantes com que são pintadas estas músicas ao longo de três horas, com um fluxo de entusiasmo praticamente ininterrupto, faz-nos questionar como é sequer possível, em tão pouco tempo, compor uma obra desta ambição e consistência. É por aqui que queremos começar, apresentando a maestrina desta épica viagem; mas como abordar a história de alguém anónimo e que nunca se deu a conhecer?

Quem é DJ Sabrina The Teenage DJ?

A carreira de DJ Sabrina The Teenage DJ começa oficialmente em 2017, com o lançamento de um trio de dj mixes e do primeiro álbum daquela que viria a ser a sua “Pentalogy“: Makin’ Magick é uma incursão densa e entusiasmada no território da outsider house, um subgénero que dá ênfase a uma produção lo-fi e, no geral, fora da caixa. À procura de uma editora e sem obter uma resposta favorável, DJ Sabrina continua a compor, e sete meses depois volta a optar pelo lançamento independente de Witchkraft, mais um portentoso álbum com o seu próprio mood e (pelo menos) mais uma mão-cheia de temas incríveis. A artista pensou, na altura, que era o ponto final do projecto.

Mas a história escreveu-se de outra forma. Por um simples motivo: embora os ouvintes de DJ Sabrina continuassem a ser ridiculamente poucos, e continuasse a não haver nenhuma editora interessada, a criatividade da produtora não dava sinais de estancar. Recentemente, numa entrevista, a artista deu conta de que ao longo dos últimos quatro anos o fluxo de produção tem sido incontrolável. Os outputs comprovam-no: desde o final de 2017 até hoje, DJ Sabrina lançou cinco longos álbuns de estúdio (num total de quase 10 horas de música!), a que se somam uma dúzia de dj mixes de substancial qualidade artística. Ao longo deste processo de criação e edição manteve-se cem por cento independente, com uma fanbase imensamente reduzida (embora no último ano tenha escalado alguns patamares de popularidade entre certas comunidades underground). É obra.

Primeiros quatro álbuns da Pentalogy de DJ Sabrina The Teenage DJ

Uma pergunta que se impõe é: quem é DJ Sabrina The Teenage DJ? A resposta é que ninguém sabe ao certo. A artista (mulher?, homem?, um par de pessoas?) mantém desde o início um resoluto anonimato por detrás do divertido moniker. Sabemos que mora no Reino Unido, e que já tinha uma carreira musical prévia. Todas as restantes informações são ou fruto de especulação ou de um grau de cruzamento exaustivo de dados que, estamos em crer, não respeita esta proposta: DJ Sabrina é esta entidade que se afirma pela sua música e pela fantasia cartoonesca de uma personalidade que, até agora, não se encontra sediada no mundo real. Abracemos a ideia.

Crónica de uma descoberta

É em Charmed, capítulo final da pentalogia da artista, que me proponho mergulhar hoje. E faço-o por necessidade pessoal, depois de um ano de repetidas audições: quer do álbum inteiro (umas quantas dezenas), quer de faixas isoladas que justificavam uma visita regular, terapêutica, banda-sonora da vida interior.

Recordo-me da circunstância em que o ouvi pela primeira vez. Eu tinha o “Makin Magick” na calha para vir a descobrir um dia; mas eis que leio, de soslaio, uma breve referência ao novo álbum que DJ Sabrina The Teenage DJ tinha lançado naquele mesmo dia. Eu, na biblioteca da universidade a fazer um trabalho mecânico de recolha e compilação de dados, a meio da tarde, achei que aquele seria o timing perfeito para me pôr a um ouvir um disco de três horas – se gostasse, e o continuasse a ouvir, assim que a música terminasse seria tempo de arrumar as coisas e ir para casa. Só um álbum me separava do descanso. Carrego no play com expectativas médias-baixas. Mergulho no que estou a fazer. “Uh, esta é gira”, vou espreitar o título, e volto ao trabalho. “O que é isto??”, e o nome de mais uma canção guardado na minha memória. As três horas passam, objectivo de produtividade cumprido, e uma resolução satisfeita: “amanhã volto a ouvir isto”.

Os três CD’s de Charmed. Fotografia: Tiago Mendes / CCA

Foram muitos os amanhãs no decorrer da semana seguinte. À segunda audição tinha já as minhas primeiras impressões retiradas (“isto vai competir com o Fetch The Bolt Cutters como o meu álbum preferido do ano”, pensava), e as minhas primeiras músicas preferidas identificadas: “My Baby, I Become Unhinged”, um hino propulsivo de crescendo épico, a permitir a digivolução de “Realize” de Colbie Caillat; “Charmed”, a faixa-título, cuja segunda metade me fez saltitar na estação de comboio, e suar ao serão em casa; e “Next to Me”, o impactante e emotivo statement inicial que os meses seguintes continuaram a revelar-me em ainda mais camadas. A este primeiro lote somaram-se outras, muitas outras; destaques inestimáveis com que as sucessivas audições me iam presenteando.

Charmed: uma festa utópica

O que acontece em Charmed é um fenómeno raro de consistência artística: num álbum de três horas, mais de dois terços do tempo (incluindo a totalidade da segunda metade!) são dotados de um brilho que não se apaga, de um embalo carinhoso e próximo, dançante, vigoroso, dinâmico e – embora já tenhamos utilizado anteriormente esta palavra, nunca é demais repeti-la: – repleto de êxtase. Charmed é o enérgico abraçar do que não conseguimos pôr por palavras, da emoção incontida e incompreendida que impõe aos músculos da nossa cara um sorriso sincero e impulsivo; assim como, não raro, uma gargalhada parva.

A torrente de luz, cor e movimento é imparável. Charmed ocupa espaço físico: conduzido por apontamentos cénicos e diálogos soltos – alguns, mera suposição, possivelmente provenientes da série televisiva Sabrina The Teenage Witch – o álbum flui suavemente de faixa para faixa, cosido com cuidado e mestria, numa paisagem densa, urbana e onírica. Vivemos a vida e os dramas destas personagens incorpóreas; e festejamos com elas, celebramos juntos (mesmo que sozinhos no quarto) a contínua catarse emocional desta novela, críptica mas irremediavelmente contagiante.

Uma das cassetes de Charmed. Fotografia: Tiago Mendes / CCA

Musicalmente, o que se passa em grande parte do álbum é a construção elaborada de ambiências densas, luminosas e texturadas. A tela em que se pinta esta paisagem é a da música house – o ritmo e a forma não enganam – mas é vasta a multiplicidade de abordagens à mesma. Em “Still Cool“, por exemplo, tanto a guitarra eléctrica como o saxofone assumem a dado momento a dianteira, sem deturpar a house, abrilhantando-a com apontamentos que a dotam de carácter. Nem um nem outro instrumento são, de resto, presença rara ao longo do álbum. Agradecemos que nos cheguem à caixa de correio exemplos de casamentos tão bem-sucedidos entre guitarras e música house (para além de Daft Punk, uma das influências assumidas de DJ Sabrina).

Ao nível da mistura, os elementos nem sempre aparecem brilhantes ou particularmente nítidos, e por vezes a sua apresentação é como que compactada. Pode ser uma opção; ou uma consequência colateral do tratamento que DJ Sabrina escolhe dar aos samples, alterando-lhes o tom e o timbre, filtrando-lhes determinadas frequências para poder cosê-las com as dezenas de outros elementos que decide convocar.

Esta mescla de sonoridades entrecruzadas conduz-nos a um dos principais atributos de Charmed: a forma como se assume herdeiro de Since I Left You, dos The Avalanches, no uso dos samples (muitos deles desconhecidos!); mas DJ Sabrina apresenta este catálogo de referências com uma sensibilidade pop mais apurada e, arriscamos dizer, com uma nuance emocional mais rica e ampla que a da banda australiana (de quem somos também fãs). “Charmed Life” prova-o: a mais longa composição do álbum, com quase quinze minutos de duração, escolhe uma mão-cheia de temas e mescla-os com um chocante bom gosto e um desolador efeito sentimental.

A força dos samples é também parte do segredo destas canções: Charmed é dado à luz num contexto em que as canções pop das décadas de 1990’s e 2000’s estão finalmente a ser revisitadas com o valor que por vezes só a distância permite discernir. Este é o timing certo para esta visita e reavaliação, e o épico trabalho de DJ Sabrina The Teenage DJ pode ser o mapa para esta máquina do tempo, o empurrão nas costas para este exercício mais ou menos exigente de desconstrução dos nossos preconceitos a partir da escuta activa.

Charmed e a Pentalogy Box. Fotografia: Tiago Mendes / CCA

A arquitectura de boa parte destas composições segue uma fórmula vencedora: a apresentação faseada e progressiva de novas linhas melódicas, de timbres ora mais difusos e sujos, ora claros e mais convencionalmente produzidos (por exemplo, quando as cordas da guitarra soam escandalosamente orgânicas em dados momentos). Estes fluxos cruzam-se na aproximação ao clímax de cada tema, numa sobreposição gloriosa a que se torna impossível permanecermos indiferentes. “My Baby, I Become Unhinged” e “Next to Me” (que já referimos anteriormente) serão talvez dos exemplos mais óbvios disto mesmo. Já em “How Did You Know?”, a chave está na repetição cada vez mais sublinhada do pacote de dezasseis compassos em loop; “mais uma moedinha, mais uma voltinha”, mas em que, como numa brincadeira de crianças, cada regresso ao ponto inicial concretiza e coroa a nossa total satisfação.

Em “Not Your Fault”, quebramos com a voz que nos assegura a nossa inocência; em “Wedding Night” embarcamos num ciclone festivo que nos tira os pés do chão; em “Alrighty, Then!” assumimos o papel de um protagonista adolescente numa sitcom dos anos 90, a conduzir um carro com mais amigos do que lugares, e nenhum com cinto de segurança colocado. Não conseguimos abarcar aqui todas as canções que nos emocionam ou nos evocam imagens vívidas, nem todos os momentos que ameaçam transfigurar-nos: as percussões e a voz entrecortada no final de “Nothing’s gonna stand in my way”, bem como o som sombrio, profundo e ascendente que volta e meia emerge em “End of an Era”, são apenas dois apontamentos entre dezenas possíveis de enunciar. O álbum está recheado deles.

Ao ouvir Charmed, por vezes esqueço-me deste facto entusiasmante e estimulante: DJ Sabrina The Teenage DJ existe algures no mundo real; embora nunca tenha dado um concerto nem revelado a sua identidade. Compôs e produziu este álbum ao longo dos confinamentos pandémicos, e lançou-o no final de um ano em que ninguém pôde dançar: três horas de uma festa que começa bem, segue bem e termina melhor. Absoluto êxtase. Bangers atrás de bangers atrás de bangers, adubados com emoção e substanciais doses de nostalgia. A festa utópica de um reino de luz, e a certeza do nosso nome – o de cada um, escrito à mão – na guest list. Os recantos e universos de Charmed são muitos, mas há uma intimidade que não nos deixa sentir perdidos. Esta verdadeira obra-prima é prova de que a música e a vida são, muitas vezes, uma única coisa, um mesmo plano. Esta é a proposta: vivermos “Always Charmed”, dançarmos com este álbum, na certeza de que estarmos vivos no nosso turbilhão de emoções é uma oportunidade para partilharmos com o mundo a centelha com que nascemos.

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