Christopher Nolan, o pós-moderno ousado e vanguardista
Quando falamos de cinema pós-modernista e ousadamente vanguardista, explorando tanto as peculiaridades mais viscerais do Homem como as temáticas metafísicas e o enquadramento deste nas mesmas, é o nome de Sir Christopher Nolan que vem, desde logo, à tona. O realizador, ordenado comandante da Ordem do Império Britânico em 2024, também se notabiliza como argumentista e produtor e detém um vasto número de galardões especialmente no seu habitat natural, isto é, a ficção científica e viagens pelo tempo, contando com passado, presente e futuro no seu meio de exploração e exposição.
Christopher Jonathan James Nolan nasceu a 30 de julho de 1970 em Londres, apesar de ter crescido não só na capital inglesa como na cidade norte-americana de Chicago. Filho de um diretor de marketing e de uma hospedeira de bordo e professora de inglês, foi bem cedo que o pequeno Nolan se apaixonou pelas câmaras e pela produção cinematográfica, fazendo alguns com os seus bonecos de animação com uma Super 8 Camera. Aspirando ser um realizador profissional desde os 11 anos, o inglês tem, nos seus trabalhos, influências de Star Wars, saga que começou a admirar desde também tenra idade. Já na faculdade, na University College London, o jovem correlacionou literatura inglesa que estudava então com as suas primeiras curtas-metragens, trabalhando já com câmaras 16 mm e até chegando ao posto de presidente da Union’s Film Society.
Após mais algumas curtas e filmes industriais, nasceu “Following” no ano de 1998. Acompanhando a vida de um jovem escritor londrino (representado por Jeremy Theobald, também produtor), este é engolido pela complexa e ampla sociedade e acaba por se ver enredado no panorama criminal dessa cidade. Com muito parcos recursos , o realizador tentou economizar ao máximo com a sua câmara de 16mm, trabalhando essencialmente em pouco mais que dois takes por cena e recorrendo à luz que dispunha nos espaços onde filmava. Este conjunto de esforços era custeado do seu próprio bolso, deduzido daquilo que era o seu vencimento mensal, e decorreu durante um ano inteiro. Todo o trabalho teve o seu cunho pessoal, desde a produção, realização e edição até à redação do guião e à filmagem. vindo a público no ramo independente a preto-e-branco. Por sua vez, a narrativa, de um ponto de vista lógico e cronológico, mostra já pouca linearidade, caraterística que seria vincada em alguns dos seus trabalhos futuros. Tudo para estimular o interesse pela história e para dar um fôlego diferente à incerteza e imprevisibilidade de cada personagem e do próprio sentido dos acontecimentos.
No entanto, o seu primeiro grande filme foi independente e produzido em 2000, de nome “Memento”. Neste êxito, Nolan explorou de forma bem-sucedida a condição psicológica do protagonista Leonard (representado por Guy Pearce) para criar uma estrutura temporal inovadora do desenrolar da história do filme e aproximando o espectador da incapacidade da personagem criar memórias a longo prazo. Para além de recorrer a metalepses (tomando o antecedente como consequente e vice-versa), o realizador consegue convergir tanto valores narrativos derivados da sua base de formação na literatura inglesa como valores cognitivos para o enredo criado. O realizador viria também a potenciar estes recursos em “The Prestige” (2006), onde os vários truques de magia, o enredo bifurcado e as constantes ilusões (fazendo um paralelismo com o facto dos protagonistas serem dois mágicos) modelam a construção do filme.
“Every film should have its own world, a logic and feel to it that expands beyond the exact image that the audience is seeing.”
Christopher Nolan
Após “Insomnia” (2002), em que contava com Al Pacino, Robin Williams e Hillary Swank e que retratava uma investigação por parte de dois agentes de Los Angeles a um assassinato metódico perpetrado no Alaska, Nolan produz, em 2005, o seu primeiro filme da trilogia “The Dark Knight”, cujo nome era “Batman Begins”. Explorando os medos e a infância titubeante do protagonista Bruce Wayne (interpretado por Christian Bale), o inglês enfatiza a componente psicológica dos seus protagonistas, tal como em filmes vindouros, e frisa também a natureza ambivalente do que é a verdade a partir da dissecação do papel do vilão, aproveitando a base do conceito dos super-heróis e dividindo a supracitada natureza. Para além disto, a trilogia (com “The Dark Knight”, 2008; e “The Dark Knight Rises”, 2012) explora temáticas que amedrontam o público na sua generalidade, como um hipotético caos motivado pelo terrorismo, manipulação financeira das massas e sua constante vigilância, conflitos de classes dentro destas, o utilitarismo implícito nos vilões (nomeadamente Joker e Bane, e com o primeiro a conceder um Óscar póstumo a Heath Ledger, ator australiano) e até a associação de Batman a uma espécie de Übermensch (Além-Homem), conceito criado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche na sua obra “Thus Spoke Zarathustra”.
“We all wake up in the morning wanting to live our lives the way we know we should. But we usually don’t, in small ways. That’s what makes a character like Batman so fascinating. He plays out our conflicts on a much larger scale.”
Christopher Nolan sobre Batman
Com a exploração da personagem de Batman, o realizador recolhe um argumento que seria usado amiúde nos seus filmes seguintes que é a paternidade (“Inception”, 2010, onde o protagonista visa mais do que tudo reencontrar os filhos; e “Interstellar”, 2014, em que também o protagonista possui uma relação bastante estreita com a sua filha; em ambos os casos, o enredo dispõe de uma dependência desta temática). Em 2010, com “Inception”, o inglês volta a explorar temas mais existenciais e epistemológicos e a alimentar controvérsias éticas, nomeadamente no estudo do tempo e da sua natureza e das experiências subjetivas. Nolan aflora os sonhos e a sua sobreposição de forma a desafiar os conceitos de tempo e de realidade, existindo uma navegabilidade entre os diversos planos de sonhos pelo qual o filme percorre. Sedimentando noções freudianas nas ideias intrínsecas do enredo do filme, as diversas personagens do grupo primordial do mesmo tentam inserir uma ideia concebida na mente de um milionário, à luz do trabalho desenvolvido por parte de Sigmund Freud com o inconsciente dos seus pacientes, mas com as personagens do filme a viajarem nos supramencionados painéis de sonhos.
“I have been interested in dreams, really since I was a kid. I have always been fascinated by the idea that your mind, when you are asleep, can create a world in a dream and you are perceiving it as though it really existed.”
Christopher Nolan e os sonhos
Já em “Interstellar”, Nolan destaca a temática do tempo e, à imagem do que transpõe de Freud em “Inception”, faz o mesmo com as leis da física vertidas na teoria da relatividade de Albert Einstein e com os conceitos preconizados pelo físico Kip Thorne – que fez amizade com Nolan -, opondo o protagonista ao tempo e constituindo-se este como o antagonista incorpóreo. O protagonista (Matthew McConaughey) faz parte de uma tripulação da NASA que fará uma viagem interestelar de forma a alcançar as barreiras mais distantes do conhecimento científico até então detido, deixando para trás a sua família e especialmente a sua filha, que partilha o amor pela astronomia que o pai possui. O filme desenrola-se, assim, num combate contra o tempo, tempo esse que é variável em certos locais espaciais em relação ao do planeta Terra, em que a verdadeira missão da tripulação é salvar a população do seu planeta, descobrindo um planeta onde esta possa ser acolhida. O tempo de vida dos seus filhos vai escasseando e o protagonista tarda em conseguir rever a sua filha, confrontando-se, assim, o amor e o tempo. O realizador recebeu, após a conceção e exibição do filme,rasgados elogios pela minúcia científica explanada no filme, sendo galardoado consistentemente por organizações ligadas à ficção científica.
Num plano mais histórico e contextualizado, Nolan traz “Dunkirk” em 2017. Este projeto tem como objetivo apresentar a evacuação de forças aliadas, – ou Operation Dynamo – que decorreu nesta cidade francesa em plena Segunda Guerra Mundial, em três perspetivas diferentes: no mar, na terra e pelo ar. Esta operação primaveril, que decorreu no ano de 1940, findou na bem-sucedida intervenção das forças britânicas perante o exército nazi, conseguindo libertar quase 390 mil homens da armada francesa. O elenco conta com velhos conhecidos da carreira de Nolan, entre eles Tom Hardy e Cilian Murphy, para além de jovens, como Harry Styles ou Fionn Whitehead.
O diálogo é reduzido ao mínimo, dando espaço para que o som, em especial do ambiente e das suas máquinas, e a imagem contem toda a história; história essa que assume o efeito de bola de neve, um efeito já usado anteriormente, começando em proporções reduzidas e casuais até ao aparato massivo perante o qual que a evacução decorre. O protagonismo partiu, assim, para a exploração dos sentidos e para a imersão que Nolan possibilita ao longo deste trabalho. Os seus méritos reviram-se em três Óscares, que foram conquistados nas categorias de Edição e de Mistura de Som, assim como na Edição de Filme.
Três anos depois, é apresentado o filme “Tenet” (2020), encabeçado por John David Washington e por Robert Pattinson, num enredo que demorou mais de cinco anos a ser escrito. Num ambiente futurista, a organização “Tenet” procura antever e deter aquilo que parece ser a Terceira Guerra Mundial. Nolan procura desafiar, novamente, conceitos da física, nomeadamente as leis da termodinâmica e os desafios impostos pela ciência quanto às viagens no tempo, colocando em causa a entropia e a irreversibilidade deste tempo. Assim, subjacente a todo o enredo, está a capacidade de manipular o tempo, que pode, para o bem e para o mal, encaminhar o futuro a distorcer o presente.
Três anos depois, em 2023, “Oppenheimer“, com Cilian Murphy, Matt Damon, Robert Downey Jr. e Emily Blunt em destaque no elenco, traça um retrato biográfico – adaptado da biografia “American Prometheus”, da autoria de Kai Bird e Martin J. Sherwin – dessa figura ultra controversa que é J. Robert Oppenheimer, um físico que se tornou determinante no estudo da energia nuclear e, posteriormente, no desenvolvimento de armas nucleares. As mesmas que foram instrumentalizadas pelas instâncias governamentais dos Estados Unidos em torno do seu Manhattan Project, tendo armamento nuclear à disposição para os seus objetivos geopolíticos. O seu próprio escrutínio público, por eventuais ligações ao comunismo soviético, é um tema dominante do trama. Nolan volta a dar um grande ênfase aos efeitos visuais, sem cair na tentação de imagens computadorizadas (CGI), puxando ao máximo das potencialidades do IMAX, com altíssima resolução e qualidade. O próprio padrão de cores usado oscila entre as objetivas cores e o subjetivo preto-e-branco (em IMAX, é absolutamente inovador), jogando com as particularidades da energia quântica e das ondas energéticas. O resultado final foi, nada mais, nada menos, do que sete Óscares, cinco Globos de Ouro e sete BAFTAs, reconhecendo a direção de Nolan e o argumento adaptado, assim como as prestações de Murphy na figura de Oppenheimer e de Downey Jr. na de Lewis Strauss.
Com um corpo de influências bem enraizado, este é composto por realizadores como Stanley Kubrick, Alfred Hitchcock, Orson Welles ou Fritz Lang, para além de obras literárias com enredos intrigantes e extrapolativos de conceitos pré-definidos e da linguagem verbal transmitida por outros filmes e até videoclips de músicas, como as de Pink Floyd. Para além disso, colaborou regularmente com o compositor alemão Hans Zimmer, tanto na trilogia “The Dark Knight”, como em “Inception” e “Interstellar”. A música proporcionada por este complementa os filmes do realizador na medida em que estimula ao movimento, à quebra dos cânones então predefinidos, ao dinamismo tempo-espacial e à introspeção psicológica. O espectador é, assim, levado até ao íntimo da personagem destacada, percecionando as suas preocupações e atribulações e sendo impulsionado para a ação e para a sucessão dos acontecimentos.
“If I could steal someone’s dream myself, I’d have to go for one of Orson Welles.”
Christopher Nolan sobre a quem roubaria o sonho.
Desafiando as conceções do tempo, da realidade e da produção cinematográfica, Sir Christopher Nolan sustentou o sucesso de uma carreira que, apesar de não tão profícua quanto outros realizadores, é vanguardista e que não deixa de marcar impacto em relação aos tradicionalismos vigentes. Nolan é também conhecido pela geometria intuitiva empregue na construção ideológica dos seus filmes, descartando um ênfase exacerbado em efeitos especiais alicerçados em tecnologia e pela personalidade flexível e acessível na filmagem e no trato com os atores com quem trabalha. O realizador, filma com várias câmaras nos famigerados stunts e com somente uma em cenas dramáticas, marcou o novo século pelo novo paradigma que impôs com os seus filmes. Paradigma esse que arrebatou dos mais jovens aos mais graúdos do conformismo científico-psicológico com o qual se deparava e que, aliando arte à ciência, motivou a indagação dos espectadores sobre os conceitos mundanos com os quais lida diariamente. Christopher Nolan deu o click para que a população percecionasse e desafiasse a realidade, para que, criticamente, lhe estimule a compreender melhor o seu ser. Nolan é às no triunvirato cinema-ciência-psicologia e motiva a dúvida e a crítica. Como muito se ambicionava, fez despertar a sociedade. Como muito se sonhava, apresentou um novo lado da realidade, possível de se viver e de se conhecer.
“Films are subjective – what you like, what you don’t like, but the thing for me that is absolutely unifying is the idea that every time I go to the cinema and pay my money and sit down and watch a film go up onscreen, I want to feel that the people who made that film think it’s the best movie in the world, that they poured everything into it and they really love it. Whether or not I agree with what they’ve done, I want that effort there – I want that sincerity. And when you don’t feel it, that’s the only time I feel like I’m wasting my time at the movies.”
Christopher Nolan sobre a ambição e sinceridade na realização cinematográfica.