Cinema e o talento, a meritocracia e a incompetência
Hoje não falo sobre um filme em específico e, tampouco, sobre um realizador, mas sobre vários. Os vários e várias realizadoras que, por não viverem na grande metrópole, acabam por desistir das suas carreiras por falta de oportunidades, mesmo tendo talento.
No geral, o talento é inato e construído. Alguém pode nascer com um talento imenso para algo, mas, tendo em conta as oportunidades, acaba por desistir dele ou continuar nele.
Diz-se, então, que qualquer pessoa que se esforce alcança todos os seus objetivos. Bem, de facto, para alcançar sonhos e objetivos é preciso esforço — não nego — no entanto, há quem tenha de se esforçar mais e, tantas vezes, esse mais nem sequer é o suficiente ou porque não é branco, não é homem ou não nasceu ou não mora no local onde são oferecidas as oportunidades. E é sobre este último ponto que me quero focar.
Onde moram os atores com carreira consolidada, realizadores e técnicos especializados? Lisboa, ou Porto, em menor escala. Onde estão as produtoras de cinema? Lisboa, ou Porto, em menor escala. Onde estão os decisores políticos? Em Lisboa. Quem oferece oportunidades para fazer cinema? As produtoras (que são especialistas das candidaturas aos apoios do Estado). E recordam-se onde estão as produtoras? Ah, pois — Lisboa. E de quem estas produtoras se irão cercar? De realizadores de Viseu, atores de Portimão e técnicos de Castelo Branco? Não, porque isso impõe que se gaste mais dinheiro em logísticas, restando menos para cada um.
Chegando a brasa à minha sardinha, imaginem agora um realizador — vamos-lhe chamar Otávio — que nasça em Leiria e fique por cá a morar. Como consegue o Otávio as oportunidades se não se cruza nos cafés, bares e cinemas de Lisboa? Se não faz as amizades com as pessoas certas? Por mais talento que tenha, ao Otávio nunca serão dadas as mesmas oportunidades de brilhar que outro — vamos-lhe chamar Gualter — que more em Lisboa, assim como Lisboa tem mais probabilidade de aparecer num filme do que Leiria. Está tudo lá. O que significa que, mesmo que alguém não tenha o mínimo de talento, só por morar em Lisboa, onde tudo acontece, faz com que acabe por ter mais oportunidades, mesmo que não tenha talento.
Laurence J. Peter, psicólogo, juntamente com o dramaturgo Raymond Hull lançou, em 1969, o livro O Princípio de Peter. Nessa obra, defende que «com o tempo, cada cargo tende a ser preenchido por um funcionário incompetente para cumprir suas funções». Ora, o Otávio pode ser a pessoa ideal, se lhe derem um empurrão, de ter um filme português nomeado aos óscares. No entanto, ele vai ser, sempre, preterido porque mora a 1h15 de distância, como “não dá jeito”, vão sempre chamar o Gualter. O Gualter pode não ter tanto talento, mas vão-lhe ser dadas as oportunidades. E será o cinema do Gualter melhor que o do Otávio? Ou vice-versa? Nunca saberemos. Não lhes foram dadas as mesmas oportunidades.
Com isto, não digo que o talento mora todo em Leiria, ou que Lisboa está cheia de incompetentes a quem foram dadas oportunidades mesmo sem ter talento. Nada disso. O que digo é que Portugal é mais amplo que Lisboa e que, ao serem fornecidos os apoios, deveria haver uma cláusula que os distribuísse pelo País. Até porque o Cinema acaba por ser um registo de um povo, a determinada altura. E, sinceramente, estamos atolados de registos de Lisboa e contam-se pelos dedos os registos de Leiria. O que é certo, é que ainda nenhuma longa-metragem portuguesa ficou nomeada aos Óscares.
Esta crónica foi originalmente publicada no Jornal de Leiria, tendo sido aqui publicada com a devida autorização.