Com ‘God’s Favorite Customer’, Father John Misty ainda é mais o favorito
Josh Tillman, comumente conhecido por Father John Misty, é uma das facetas mais luzidias da música composta nos últimos cinco anos. Fear Fun, I Love You, Honeybear e Pure Comedy mostraram a faceta singular de uma personalidade musical que foi marcando e se autonomizando das suas diversas associações, nomeadamente nas baquetas da bateria dos Fleet Foxes. Mais do que uma surpreendente capacidade vocal, a riqueza lírica das suas letras e o virtuosismo imprimido nos seus espetáculos e concertos complementam um vulto que não se vem aventurando nas lides a solo recentemente. Já remete para 2003 a ocasião em que protagonizou as primeiras experiências nesse percurso, ainda na denominação de J. Tillman, com oito trabalhos de um folk que serviria de aprimoramento até aos moldes que lhe conhecemos nos dias de hoje.
Misty, como o próprio apelido indica, fez-se munir de uma riqueza espiritual que advém da sua educação, que atravessou a Igreja Batista, a Episcopal e a Messiânica Mundial. É muito nesta abrangência filosófica e metafísica em que se faz a eloquência musical da sua irreverência visual e pessoal, que regressa à nossa estima com God’s Favorite Customer. Em vésperas de contemplar o Porto, no seu NOS Primavera Sound, com mais um espetáculo, o cantor já deslumbrou Lisboa, a capital do país, no passado mês de novembro. Chegam até nós 39 minutos de uma recorrência musical que nos já habituou, mas que tem o dom de nunca cansar, tanto pela novidade que introduz no que compõe, que revela a sua evolução na identidade pessoal e artística.
O arrojado folk que lhe é caraterístico regressa logo com “Hangout at the Gallows”, mais uma daquelas que promete perdurar no ouvido por algum tempo. As perguntas aos céus do quê e porquê das coisas, do bem e do mal, de si e da sua vida. A sua denominação de God’s Favorite Customer apresenta todo este olhar para cima, de questionar a sua conduta, o seu pensamento e aquilo que acontece consigo e com todos aqueles que vivem na sua órbita, na pluralidade do planeta Terra. O artista continua a abrir-se a nós com “Mr. Tillman”, para lá das personalidades exuberantes nas quais se impõe nos palcos. Num discurso de si para si, a sua felicidade está nas nuvens, acima do que a sua mente pula e pulula, entre os seus hobbies e os seus quotidianos atribulados. O registo intimista sobe de tom em “Just Dumb Enough to Try”, em que as relações humanas voltam a sair da pele e do coração do artista, que se deixa corroer pela dor em vez de a tentar superar. Uma das faixas mais densas e emocionantes, que nos coloca no seu lugar, a sentir as suas turbulências e a apiedarmo-nos dos seus dissabores.
“Date Night”, com um ritmo mais animado e mexido, convida a que a sua personalidade, vincada e destacada, seja motivo de conquista, apresentando-se como algo mais acalentador e otimista pela sua diferenciação. No entanto, “Please Don’t Die” desnuda o desespero que a interlocutora da canção, sem voz ativa, planta na personalidade artística e pessoal do músico, descoordenado com essa omissão. Desse amor perdido pelo decurso do álbum, “The Palace” continua construído e sustentado, resultado do amor sincero e sentido que o deixa seguro na sua estrutura. É esse vínculo que o segura à vida, que é ocupado por um vulto que a memória não deixa que seja esquecido.
O amor continua a viver e a presenciar-se como uma pedra preciosa em “Disappointing Diamonds Are the Rarest of Them All” com o fervor instrumental e vocal que se lhe merece. Mesmo que conformado com os limites da vivência, o amor continua a ser o fim último da vida de Father John Misty, vida essa que é elevada às questões com Deus em “God’s Favorite Customer”, das mais emotivas e tocantes de todo o seu repertório desde que assumiu a sua nova personalidade artística. Deixou de ser o cliente favorito de Deus e voltou-se para uma espécie de súplica de companhia, que o alguém por quem tanto suspira surja e o acompanhe nas dissidências interiores declaradas na própria música. A despedida desse amor formaliza-se em “The Songwriter”, em que o “songwriter” é o próprio cantor, consternado, mas sem deixar de a interrogar sobre como seria ela no seu lugar, no de compositora da sua ligação afetiva. O final do álbum é tomado por “We’re Only People (And There’s Not Much Anyone Can Do About That)”, em que todos nós nos resumimos à condição de pessoas, não havendo muito que possamos fazer por isso. Somos seres de viver, de sentir, de apaixonar, de encantar, de deslumbrar, mas também de sofrer, de doer, de desiludir, de desacreditar, em que as amizades permanecem como os vínculos que nos suportam.
God’s Favorite Customer é mais um tratado de vida sobre a vida, da autoria sublime de Father John Misty. As questões filosóficas que orbitam em torno do amor e dos seus passos subsequentes não se remetem às normais desolações, mas às suas profundezas. Por mais impiedoso que se torne o amor com o cantor, aquilo que nos une é mais do que o que nos separa, numa articulação que perdura, por mais perdido que nos aparente. O encontro vai-se marcando entre nós, ele e Deus sempre que a música corresponde à tradução do que se vive e do que se sente. É por estas e por outras razões que vamos estimando, como muito, muito poucos, o terno sofrimento do fraterno Father John Misty, um dos semblantes do momento.