Entrevista. Como usar processos em proveito próprio: Diogo Batáguas apresenta a série “Processado”
Quiseram os avanços civilizacionais invalidar os duelos como forma de mediar conflitos. O que antes se resolvia por meio de dois tiros, um para cada lado numa cerimónia de ímpar dignidade, é hoje longamente dirimido nas instâncias judiciais, num esgrima estéril e inconclusivo, onde o pulmão que cansa e aleija deu lugar à carteira — atribui-se a vitória da contenda à que escavar mais fundo. A noção de honra está também mais sensível: outrora, dificilmente a nobreza faria caso do que havia dito o povo; mas o Twitter veio igualar o alcance da ofensa, e lidos serão tanto um como outro. Com uns balázios, era dito e feito, e no final ainda ficavam amigos.
A esse propósito, Diogo Batáguas lançou, no final de 2020, uma pequena série de cinco episódios através do Youtube. Chama-se Processado, e decorre na (não tão) hipotética situação de se ver confrontado com processos em tribunal. Ele planeia convidar uma série de outros humoristas, agregar os depoimentos e opiniões sobre tudo o que sabemos dizer respeito ao humor (a liberdade! a necessidade! etc.), e com o auxílio de todos bater-se pela nobre causa — agora, se isso lhe granjear mais alguns milhares de seguidores nas redes…junta-se o útil ao agradável. O resultado final confunde realidade com ficção, e documenta um objectivo de exposição pública enquanto mostra o que atrás do pano lhe precede. Estivemos à conversa com o Diogo, a propósito da série e do seu novo solo de stand-up.
“A ideia que nós tínhamos para a série nasce ainda em 2019, com as ameaças de processo e processos efectivos, porque houve uma altura em que houve questões jurídicas que de facto avançaram, por muito que depois não tenham tido nenhuma conclusão, ou tenham ficado perdidas no esquecimento”. Estes mecanismos foram alavancados por queixas de Neto de Moura e David Carreira. “Tivemos contactos de advogados, e providências cautelares aos nossos vídeos…chatices jurídicas. E isto aconteceu tudo em 2019, que remete para o primeiro episódio, onde a minha personagem assume uma persona exagerada daquilo que foi acontecendo ao longo destes dois últimos anos comigo mesmo”.
Batáguas, na expectativa da chegada de um processo, procura um ângulo que o beneficie, e nesse primeiro episódio discute com Ricardo Soares, seu agente da Kilt, a forma de melhor beneficiar de toda a situação. “A dada altura, quando vês que estás a ser processado por duas figuras públicas, tentas perceber de que forma é que isto pode ser vantajoso para ti. E isso aconteceu, claro — não é mentira nenhuma. E depois obviamente tiras várias conclusões que são disparatadas, ou tolas; e esse primeiro episódio é uma sátira às várias discussões que tivemos na Kilt sobre o que fazer com estes dados, estas duas figuras muito mediáticas que estão a processar uma figura menos mediática, que era eu. Estava a chuchar na tetinha dos processos, para perceber que de forma é que poderíamos fazer com isto fosse porreiro para nós”.
É aqui que surge o primeiro ângulo com Nuno Markl, exemplarmente aproveitado tanto para o progresso da narrativa, como para vários momentos de humor. Existe uma constante tensão entre os objectivos egocêntricos de Batáguas e a penosa experiência do Markl, e a amplitude cómica é explorada tanto no guião como na condução filmográfica da cena. “Só há uma coisa que eu não estou a perceber bem: como é que isto eleva o debate sobre temas como a liberdade de expressão, os limites do humor…as questões da decência humana?”, pergunta o Markl, ainda no início na série. De forma nenhuma, poder-lhe-ia ter respondido Batáguas.
“A ideia inicial teria um convidado por episódio, que tivesse passado por algum tipo de chatice por via das suas piadas; o primeiro episódio seria para o Markl, que teve aquela microchatice [por se ter rido de uma piada do José Cid sobre transmontanos] e íamos tendo uma escalada de convidados [com situações cada vez mais gravosas], à medida o meu personagem passa por um processo de crescimento — porque no início estou muito, digamos, otário, que só quer chuchar em proveito próprio sem se preocupar com o que as outras pessoas têm para dizer”.
O problema, então, é que tudo isto começa a nascer no final de 2019, e as primeiras cenas filmadas — o resgate do carro — decorreram em Janeiro de 2020. Metendo-se a pandemia pelo caminho, há uma série de planos que necessitam reformulação, e a estrutura da série altera-se completamente: “Até com pessoas estrangeiras havia mesmo viagens marcadas…portanto, obviamente que a série original foi amputada, e tivemos que fazer uma coisa que fosse mais uma sátira à nossa própria existência, e às nossas próprias conclusões”. Gorado então o plano inicial, a série remenda-se e segue outros caminhos, avançando por meio de conversas que parecem improvisadas, de uma função utilitária em prol da narrativa; quando se juntaram à mesa Batáguas, Rui Cruz e Manuel Cardoso, para uma refeição de óptimo aspecto, em cinco minutos fica gravada uma cena essencial para a história; mais tarde, há uma viagem à casa da infância e um encontro com um amigo muito especial de longa data, mas não sem antes passar numa acção promocional do seu clube de coração, o FC Porto. O conteúdo é criado a propósito da realidade, e não o contrário.
“Nós estávamos numa espécie de barco à vela no meio de um oceano tranquilo, e sabíamos para onde íamos; mas de repente vem uma carrada de ondas gigantescas, que nos empurarram para outro lado qualquer, e tivemos que nos aguentar, sem leme nem vela, tentar perceber para onde levar o que restava do barco. No entanto, fiquei satisfeito com o resultado. Tive medos a meio, é verdade, e durante algum tempo fiquei ali meio confuso — isto, na verdade, esteve parado talvez um ano, porque gravámos a primeira cena em Janeiro de 2020…é é inacreditável, mas eu estava com medo de falhas de raccord, porque há alturas em que corta de uma cena para a outra e esse corte tem um ano e meio de diferença.
Esta é um produção da Kilt, com o apoio na realização da Go Solo; repete-se a fórmula por trás d’O Resto da tua Vida, e do Clube da Felicidade, ambos de Carlos Coutinho Vilhena, que neste último partilha créditos de guião com Pedro Durão; também essa co-autoria se apresenta outra vez no Processado. “O Pedro foi fundamental, porque ele desbloqueia questões. O processo de criar uma narrativa pressupõe uma catrafeda de possibilidades e caminhos, e a maior parte são becos, e é preciso andar para trás e para a frente; e o Pedro é muito importante nesse aspecto, porque ele está ali quase como treinador adjunto do manager, o gajo que dá os treinos e que sabe daquilo. Adapta-se muito bem à visão da pessoa com quem está a trabalhar”.
De facto, há semelhanças entre os dois trabalhos, sobretudo na exposição muito crua do processo criativo, mas seguiram caminhos distintos na forma de construir a narrativa. “O Carlos é, na minha perspectiva, muito mais caótico na forma como grava; guarda muito mais para um improviso controlado que conduz para onde quiser. Nós tínhamos muito mais guião, que estava escrito, e havia uma direcção clara do ponto A para o ponto B. O Pedro consegue perceber o que se quer; ele dá o que é preciso sem ser impositivo, e sem haver uma luta de egos. É um conciliador, um desbloqueador de ideias fenomenal, e fundamental neste processo todo”.
Volvidos os cinco episódios da série – com participações especiais de João Quadros, Bruno Nogueira, Silvestre Varela, entre outros – Batáguas volta à estaca zero; conclui-se então que vai voltar aos palcos, com um novo solo de stand-up, Processo, que chega aos palcos de todo o país, em breve. Também isso mereceu alguma reflexão: “acho que a grande diferença entre actuar ao vivo e criar uma história, seja ela um filme ou uma série, é a ausência de um imediatismo que o stand-up traz”. A aposta parece ter corrido bem: no mesmo ano, a Kilt lança dois projectos com muita qualidade, que projectam os seus criadores para novos patamares na comédia portuguesa; e no que toca a esta nova forma – a série narrativa – Batáguas também encontra alguns encantos: “gostei deste processo de criar absurdos. Temos muitos ao longo da série, mesmo nas partes dramáticas: pequenos pormenores, como quando o Ricardo se irrita e transforma em super-guerreiro duma cena para a outra…temos imensos detalhes que nos divertiu imenso a criar, a quebrar a barreira da lógica e do que seria natural, e isso não seria possível em stand-up, que é muito mais puro. Aqui é possível construir um universo, carregado de pequenos disparates e absurdos…é um jogo diferente, e eu gostei muito de jogar isto. Gostava de fazer mais coisas destas, mas não sei como vai ser isto daqui para frente, porque não é possível tirar um ano para fazer outra série. Um gajo vai à falência”.
Para o solo, fica prometido que se falará um pouco destes processos, mas doutras coisas também, e o único objectivo é fazer rir. “Eu só quero que a malta se divirta um bocado”. Ainda discutimos a possibilidade de usar o humor, genericamente falando, para o bem, mas a sua resposta foi peremptória. “Não tenho essa missão para o humor, que se traduz numa posição altiva que não me parece fazer sentido”, diz-me, no final da entrevista; porque, feitas as contas, “foste lá rir, e voltaste para casa”. O Diogo Batáguas não tem a pretensão de iluminar um caminho para se tornar um paladino da liberdade de expressão, nem nada que se pareça. O que faz, e fá-lo bem, é pôr-nos a rir dos pequenos absurdos das nossas vidas.